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José Carlos Fernandes

“A noiva do céu estrelado”

José Carlos Fernandes
27/02/2023 17:26
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A jornalista catarinense Dinah Pinheiro Ribas se sente em casa ao circular pela exposição “Os significadores do insignificante” – aberta em dezembro, numa das salas do Museu Oscar Niemeyer (MON). A mostra – um dueto – traz uma coloridíssima seleta de trabalhos assinados pelos artistas plásticos Hélio Leites e Efigênia Rolim, ambos utilizadores da sucata como matéria prima. Vale adiantar que é uma das melhores montagens da estação 2022-2023. As visitações encerram no final de março.
Dinah assina a curadoria em parceria com a crítica e pesquisadora de arte Maria José Justino; a proposta é da também artista Estela Sandrini – ex-diretora do MON. A lista de colaboradores do projeto é boa e bela. Houve uma senhora força-tarefa para dar corpo à mostra, cuja melhor das intenções é “ocupar” um dos espaços mais nobres de arte da América Latina com dois nomes quase sempre associados à arte popular, à performance, à ingenuidade e ao naïf, no sentido “arte menor” do termo. Pode-se dizer que foram bem-sucedidos na tarefa.
No meio desse coletivo articulado que entroniza Rolim & Leites como dois criadores que não devem nada a ninguém há, contudo, uma personagem imaterial e invisível. Trata-se da amizade entre Dinah e Efigênia, fruto de uma espetacular conspiração do universo. As duas se acharam de uma vez por todas, num dia qualquer dos anos 1990. Às falas.
O sonho de todo jornalista da área cultural – tarefa na qual Ribas se especializou ao longo de sua carreira, iniciada ainda na década de 1960 – é revelar alguém, seja um escritor, um pintor, um músico... Descobrir um talento é a prova máxima do faro fino do repórter. Parece simples, mas não tem tutorial de internet que dê conta da tarefa.
Um dos exemplos que melhor ilustram essa estiva vem dos anos 1940, quando o jornalista norte-americano Joseph Mitchell, da The New Yorker, julgou ter descoberto um mendigo quatrocentão e historiador, Joe Gould. Parte das suspeitas de Mitchell sobre seu personagem iluminado – disfarçado num terninho puído e num cabelo desgrenhado – se confirmaram. O resto era delírio de quem tomava sol e chuva nas calçadas. O episódio serviu mais para revelar o gênio do perfilador Mitchell do que o ineditismo do perfilado Gould.
Pois Dinah teve mais sorte do que Mitchell. O episódio, ela gosta de narrar, com requintes de sua voz maviosa. “Conto só o milagre...”, inicia. A história começa com uma agente cultural que dispensa Efigênia, ao ver algumas das colagens em papel que a então artesã fazia nos verdes anos de sua produção, embora já próxima de completar 60 anos. Num gesto de despachante, a avaliadora distraída aconselhou-a a comprar santos de gesso e a pintá-los. Faria melhor.
Baleada pela recusa, a senhorinha minúscula, pobrezinha, com tranças de Rapunzel saiu sem rumo pelo Centro de Curitiba. Puxou conversa com um tipo qualquer, contou a desfeita que tinha acabado de sofrer, falou que não queria pintar gesso porcaria nenhuma, no que recebeu do desconhecido um papelzinho, com um nome: “Dinah Ribas Pinheiro”. Que a procurasse ali perto, na Sede da Fundação Cultural de Curitiba, na Praça Garibaldi. Efigênia foi, achou a sala da desconhecida, colocou as colagens sobre a mesa e o Mar Vermelho se abriu.
Dinah viu a obra de Efigênia e saiu em missão diplomática. Passou a mão no telefone e convenceu a amiga do Solar do Barão que ela não tinha reparado direito no trabalho, e que havia ali uma artista de grande criatividade. Deu certo. Efigênia ganhou expedito um espaço na “Sala de Pedra”, voltada para artistas populares, e não demorou a fazer mais duas mostras, no Instituto Goethe e na Fiep – eventos que só reforçaram sua posição de a Rainha do Papel de Bala, figura onipresente, assim como Leites, nas feiras dominicais do Largo da Ordem. Exagero dizer que Curitiba nunca mais foi a mesma? Pois Curitiba nunca mais foi a mesma.
Nos anos 2000, com a amizade já consolidada, Dinah e Efigênia se viram em Copacabana, de frente para o mar, para a entrega da Comenda do Mérito Cultural, oferecida pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil. “Olhe onde foi que eu cheguei...”, disse Rolim à mulher que considera um anjo enviado pelos céus. Nada mal para quem chegou a esmolar, nos momentos mais dramáticos da vida.
Em tempo. Na ocasião do prêmio, Dinah ficou surpresa com a quantidade de brasileiros, dos quatro costados, célebres ou não, que conheciam a mineira-paranaense. Corriam para tirar foto com ela. Claro, a artista causou no Rio de Janeiro, tornando-se centro da cena com seus vestidos de sucata e chapéus maluco, declamando versos singelos (“Todas as estrelinhas moram no céu, coberto de véu. Mas a minha é tão pequenininha”) e dando cambalhotas. Suspeita-se que todos gostariam de ser Efigênia por algumas horas.
Efigênia Rolim, 91 anos completados em 21 de setembro de 2022, é a protagonista de uma história bem brasileira. Nasceu de sete meses, de pais agricultores de Matipó, Zona da Mata mineira. Na família tamanho gigante, fadada à lavoura, ela era a mais frágil. Nos álbuns em que aparece com seus irmãos, “é pequenina, é miudinha, é quase nada”, como diz a canção “Cigarro de palha”, de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, eternizada por Maria Bethânia. Sem muita saída, reproduziu o destino da mãe. Casou-se com Francisco, a quem amou, teve nove filhos e migrou para as fazendas de café do Norte Paranaense, de onde saiu com toda sua turma, por força da Geada Negra, de 1975.
Procurava um tratamento para o marido, adoecido crônico pelo frio. Aqui, acabou na periferia, com crianças pequenas, sendo um dos meninos, Geraldo, portador de necessidades especiais. Radicaram-se todos na Vila Autódromo, um entreposto entre o Cajuru e o Capão da Imbuia. O enredo dos Rolim ficaria reduzido à luta pelo pão de cada dia não fossem os desejos secretos de Efigênia – pela escrita, mesmo sem ser alfabetizada – e pela arte plástica, mesmo não tendo um tubo de tinta a seu dispor.
Uma das passagens que a própria Efigênia gosta de reproduzir é que um dia saiu atrás de um papelzinho de bala, achando que era ouro. Catou-o. E ali teria começado sua saga de acumuladora de lixo que vira arte. Outra versão – não de todo incompatível –, é que com a morte do companheiro, Francisco, se sentiu livre para viver seu sonho de poeta e artista. Matriculou-se numa escola de jovens e adultos, a EJA. Depois, pôs as tralhas recolhidas na rua para conversar. Sim – os restos falam nas mãos de Efigênia – e se não acredita, espere até vê-la conversando com as embalagens.
Foi nesse momento que bateu primeiro na porta do Solar do Barão e, depois, orientada por um sujeito que ninguém sabe quem diabos é, materializou-se na frente de Dinah Ribas Pinheiro, sua futura biógrafa. Em 2012, Ribas lançou A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador, um livro terno e definitivo.
A tradição visual com a qual Efigênia dialoga é a de um Arthur Bispo do Rosário, o interno de um hospital psiquiátrico que usava chinelos de dedo, garrafinhas de água e bordados por dar asas a uma espécie de doce insanidade. Tramava seu encontro com Deus. A força da natureza que rege a criação de Rolim é tão convulsiva quanto.
Ela vê os objetos em movimento, credita-lhes personalidade e os aproxima, como se tivessem ímãs. Cabe a ela compor esse novo poema da criação. Tal animismo – que nada tem de conceitual ou de intelectualidade – faz parte do que entende como uma missão: Efigênia acredita ser chamada a salvar o mundo da destruição, e para isso trabalha tanto, há mais de 30 anos – tempo em que corre atrás dos reles papéis de bala. A vitalidade que esbanja é o inverso de seu próprio tamanho. Algumas das bonecas que esculpiu com sobras podem chegar a dois metros de altura. São um farol – as bonequinhas colocadas sobre a mesa de Dinah, cresceram.
Um dos melhores momentos da mostra “Os significadores do insignificante” é o registro em vídeo – dirigido por Lisa Storti – do erguimento da obra “A noiva do céu estrelado”. A peça foi concebida a partir de um paraquedas branco, em vias de ser descartado, logo convertido num vestido rodado, para casar. Por meio de um edital, uma dezena de voluntárias colaboraram com Efigênia na concepção das flores que ornamentam a peça monumental e o resplendor. Em depoimento, não escondem que fazer uma oficina com Rolim foi o primeiro momento do resto de suas vidas.
A artista toda está ali – fala a Storti de sua fixação em amores, fadas, castelos, anjos, qual um conto infantil que não lhe sai da cabeça ou no qual gostaria de viver. O registro em vídeo da montagem de “A noiva...” – em exibição contínua no MON – é pleno de sororidade e emoção. “Pode ser minha última obra”, diz a artista no documentário.
Efigênia vive faz alguns meses no Asilo São Vicente de Paulo, no Juvevê, debaixo dos cuidados que sua saúde necessita. Já não dá mais as cambalhotas que outros filmes registram, a exemplo do pioneiro “Rainha do papel”, de Estevan Silvera e Tiomkim (1999).
No mais, o MON é só alegria. Ao longo de aproximadas 200 obras selecionadas por Maria José Justino e Dinah – incluindo as de Leites – pode-se visitar as “benzedeiras”, bonecas com poderes curativos com as quais a artista presenteia amigos. Seus animais imensos e indecifráveis. Os sapatos enfeitados com sucata. Livros de poemas bordados e até a mítica “Tibúrcia”, animal inventado, dotado de dispositivo para o depósito de moedas. Na Feira do Largo da Ordem, por anos, sua autora a utilizava como chamariz. Declamava poesias, muitas à moda dos cordéis, e faturava uns trocos. Já mandou avisar: “Tibúrcia” não está à venda. Faz sentido.