José Carlos Fernandes

Alzeli Bassetti, em carne viva, em cores

José Carlos Fernandes
30/09/2018 20:00
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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Rola baixaria – da grossa – na campanha eleitoral do nada santo ano de 2018. Mas tem salvação. Desde que a mulherada se uniu em palavras de ordem nas redes sociais, o pleito tirou o pé da lama, ganhou estatura e graça. Resultado: pode entrar para a história como aquele em que elas em pessoa, as eleitoras, trouxeram lucidez ao sanatório geral. Há quem diga, inclusive, que viveu para ver este dia. Seu nome? Alzeli Bassetti, 80 anos recém-completados, tradutora, militante de longa data, feminista escancarada.
“Eu me sinto parte desse movimento. As mulheres saíram da casca. Foi preciso peito”, avisa, ao comentar seu gozo diante da pororoca feminina. “Trabalhei a vida toda para isso.” Não se trata de um escorregão no autoelogio. A folha corrida dessa curitibana faria corar a mais empenhada das sufragistas, a mais entusiasta das queimadoras de sutiãs. Suspeito que nem a própria Alzeli tenha um inventário completo de seus feitos – o que há de ser uma estiva para quem pesquisá-lo. Desde o fim da década de 1960 – quando ainda lhe pesava nas costas ser uma moça de fino trato –, engajou-se em tantas e tamanhas empreitadas que se tornou quase impossível saber em que peleja ela não estava.
Completou bodas de ouro de militância – merecia um prêmio por isso. E uma contabilidade – do número de bombas que desarmou, chuto, já na manhã seguinte do baile de debutantes. Do mesmo modo, cabe-lhe uma comenda diplomática. Em nome das causas das mulheres, sentou-se ao lado de políticos que mal podiam se ver, sem que as garras lhes saíssem das patas. A despachá-la, por saberem ser amiga de desafetos, preferiam a segunda opção: tê-la por perto. Personagem de uma missão impossível, Alzeli trabalhou com Jaime Lerner e Roberto Requião. Com José Richa. Fala de Rafael Greca com ternura. Derrete-se – como a maioria, a rigor – ao tratar de Maurício Fruet. Sem dizer das pencas de secretários de governo e encrenqueiros de plantão, com os quais conviveu como se fossem passarinhos do quintal que ainda tem, num recanto do velho Batel.
Não foi bolinho, é bom que se diga. Em décadas passadas, ao receber telefonemas dos eleitos que a julgavam mais perto de “a” ou “b”, convidando-a para assumir projetos, pensava ser trote. Sua régua era a da desconfiança. Mas sempre errava – os caras do poder a queriam na redondeza, o que só conseguiam se não lhe pisassem os calos, se não lhe dessem nos nervos. A educada Alzeli não é vara que verga com qualquer ventinho. Na lata, pedia que não se metessem no seu trabalho, e uma sala perto de um auditório – no Palácio ou na Assembleia. “Para quê?”, perguntavam, mocassins batendo nos ladrilhos. “Ora, para enchê-lo de mulheres”, respondia. Assim foi. Alzeli Bassetti é um animal político – ela não pôde evitar.
Há três hipóteses para explicar por que a guria alta e bonita – dona de olhos verdes de farol e de um sorriso de iluminar catedrais –, criada numa mansão da Rua 13 de Maio (ainda em pé), educada no Colégio Sion, foi se fiar em comitês sebentos, cheirando a cigarros e a café das piores sacas. Uma vem de casa. O pai de Alzeli, Altivir, era médico, poeta e… futebolista. Criou as duas filhas nas lides do esporte inglês. E com tanto esmero que até hoje a vascaína fanática e atleticana moderada fala back, striker e sweeper. Quando jovem, lembra de estar pronta para um baile no Clube Curitibano, ou algo assim, expedientes que a colocavam ano após ano na lista das mais bem vestidas. Mas ninguém saía – mesmo estando o patriarca em black tie – até que acabasse a transmissão dos jogos pelo rádio.
Sim, os Bassetti gritavam como fossem torcedores do Vila Fanny. O futebol foi recebido pela guria como esporte bretão cheio de garbo, mas praticado como esporte popular. Ainda hoje, de peladas a Copas do Mundo, tudo lhe tira do sério. Se precisar, escreve para editores de jornal, para lhes dizer umas verdades. Suspeita-se que foi falando de bola que Alzeli entrou no mundo masculino sem pedir licença. De muito lhe valeu quando teve de enfrentar os engravatados, que julgavam fácil colocar para correr – ou para chorar – aquele típico exemplar da alta sociedade. Pois se enganaram. Ela bate um bolão.
Uma segunda hipótese para explicar o som e a fúria dessa mulher vem do casamento. Jovem, apaixonou-se pelo médico catarinense Régenis Bading Prochmann, um tipo. Figura digna das melhores biografias, era idealista, humanista, talhado nos catecismos da esquerda – militou na Ação Popular – e bonitão. Compunha com ela uma espécie de suvenir do Principado de Mônaco, ainda que estivessem ocupados da mais-valia, consciência de classe e alienação. Ressalta que aprendeu muito com ele, com quem teve quatro filhas (Valéria, Vanessa, Valquíria e Viviane) e 400 arranca-rabos que só lhe dizem respeito. De braço dado com Régenis conheceu militantes heroicos, mentes brilhantes e o budum das cadeias. O marido pegou quase um mês de cana assim que explodiu o golpe de 1964 e sofreu o diabo. Perguntada se é verdade que Prochmann atendeu mesmo Che Guevara, numa passagem – em disfarces – por Curitiba, repete que ele nunca lhe contou nada a respeito, ainda que ofereça um lacônico “se verdade, seria possível – a cara dele”. O episódio, até segunda hora, permanece na categoria das lendas urbanas.
Por fim, o “animal político” Alzeli Bassetti subiu um dia os degraus da Universidade Federal do Paraná, para cursar Letras, quando o mundo ainda ouvia canções de Rita Pavone. Àquela altura, já tinha demonstrado pendores para as línguas, o que seria seu ganha-pão: inglês, francês, italiano, espanhol e uma condução defensiva do alemão. Mas a entrada para a UFPR seria mais do que a diplomação da moça poliglota, talhada para o casamento e chás da tarde. Foi sua entrada no ringue da palavra. Aprendeu a expressar sua opinião e a ligar aquele botão que todo mundo sabe bem o nome. Fez-lhe bem. Alzeli se formou em Letras, aprimorou sua educação – como se fosse possível –, mas também a perdeu, se me entendem. Os bons modos ganharam colorido. E quem chegou perto de Alzeli sabe que ela não combina com tons beges. Nem sua casa, nem sua roupa, nem seus lábios. Ela faz o tipo “dos que têm fome, dos que ardem”, e não tem banho de água fria que a faça enfiar o rabo entre as pernas.
De suas muitas caravanas, uma é divertida em particular. Talvez a represente, tanto quanto as mais conhecidas, como a batalha para o surgimento das delegacias da mulher e o banimento do termo “condição feminina” dos órgãos de governo. Na década de 1970, fez uns frilas como tradutora para a Grafipar, a convite do editor Faruk El-Khatib, um nome que não se pode esquecer. À revelia de estar sempre vestida para uma sessão do Centro Paranaense Feminino de Cultura e similares, Alzeli se deu muito bem no ambiente desbundado no qual circulavam escritores, repórteres e artistas como Wilson Bueno, Nelson Padrella, Nelson Faria, Rogério Dias e Flávio Collin, todos do barulho. Tinha achado sua turma, creiam.
A Grafipar chegou ao pódio de 1,5 milhão de exemplares por mês em 49 publicações – eróticas para quem entende do riscado, pornográficas no idioma dos caretas. Cabia à ilustre senhora verter para o português textos comprados do exterior – em especial os os oriundos do Hospital John Hopkins, combativos ao obscurantismo na ciência. Não tardou para que o jornalista Nelson Faria a convidasse para ajudar a responder cartas dos leitores – e não eram poucas. Falava-se em mil por mês. Tida como maldita, a editora curitibana ajudava homens e mulheres do Brasil todo a lidar com desejo, repressão, identidade… De uma das mensagens, não esquece: uma mulher confidenciou estar apaixonada pelo homem que a tinha estuprado. Per-di-da-mente. Virou-se em quatro para responder a contento. Tratar do episódio foi uma de suas únicas pausas em três horas de entrevista. Deve ser mesmo uma alegria e tanto, no outono da vida, ver tantas mulheres com voz solta nas redes, botando pra quebrar, dando de sola no machismo.