Gazeta do Povo - Colunistas

A capelinha da “João Wislinski” não vai passar

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01/04/2018 20:00
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Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Deu a louca nos deuses. Depois dos motins pela salvação do Bosque Gomm, no Batel; das “barricadas” em prol de um parque na área do antigo Hospital Bom Retiro; dos desaforos em série para garantir a integridade física da Praça do Japão, na Água Verde, agora é a hora e a vez das capelinhas do bairro Santa Cândida. Alerta máximo: essa luta é polaca, ou polonesa, como prefere boa parte da comunidade que tem “wsky” no nome. Não esperem silêncio – esse povo é bom de briga.
Faz uns meses, a empresária Danusia Walesko soube de uma daquelas fofocas de paróquia, justo as melhores. Um terrenão dos bons, na Rua João Wislinski, altura do número 240, foi vendido e destinado à construção de meia dúzia de sobrados. Nada contra, garantem os “cândidos” quatrocentões, não fosse o proprietário procurar o padre com um pedido que bradou aos céus: retirar uma antiga capelinha de beira de estrada, que fica bem na frente de onde o conjunto habitacional vai nascer.
Faz tempo que o Santa Cândida deixou de ser aquela colônia que impressionou o presidente Lamenha Lins, no fim do século 19. Tem 33 mil habitantes, 11 mil domicílios. Novos ricos e novos curitibanos deram de se mudar para lá, atraídos pela facilidade de acesso, pelos 118 metros quadrados de área verde por pessoa e, arrisca, para ficar mais perto da Polícia Federal. A PF, como se sabe, foi convertida em ponto turístico e sucursal informal das empresas de comunicação da cidade. Não há notícia de tédio na vizinhança.
Mesmo com toda a fama alcançada pelo bairro – hoje uma imagem à mostra no Jornal Nacional –, alguns costumes dos tempos das babas permanecem. Não se está falando de pierogis ao dente nem de casamentos com três dias de festa, mas dos símbolos arquitetônicos e religiosos da região. O Santa Cândida é uma Terra Santa dos eslavos que chegaram naquela área em 1875. Quem faz pouco caso mete a mão no vespeiro.
Danusia – uma historiadora diletante de sua gente – recorreu às redes sociais para, digamos, provocar um debate cívico em torno da capelinha. Não precisou se descabelar. Fez uma busca na internet e copiou imagens de uma dezena de construções semelhantes, à prova de guerra, ainda em pé na velha Polônia. Repitam comigo: kapliczki przydrozne. Recado dado – se a castigada pátria mãe tem pencas de capelinhas na rua, a filial do Santa Cândida não vai ficar atrás. Teimosia lá, teimosia cá. De resto, diante da ameaça declarada, as memórias deram de sair dos baús, cheias de som e fúria – quem do passado nunca acendeu uma vela, ou deixou um pedido secreto no encalço da capelinha?
Foi o que bastou para começarem a pipocar assinaturas em defesa do minúsculo memorial da imigração polonesa. Só falta reabilitar o exército de Nova Polska. A expectativa é conseguir, no bafo, 2 mil adesões. Mas o número deve extrapolar. Há simpatizantes da causa nos bairros do Pilarzinho, Vista Alegre, Órleans e Barreirinha. Tudo parente. A capelinha da João Wislinski aos polacos pertence – incluindo os de Brusque. A depender dos ânimos, mais fácil a catedral sair da Praça Tiradentes do que o oratório do lugar onde está – e faz tempo.
Ninguém sabe ao certo quando a capelinha surgiu, mas o jornal Lud – um dos fenômenos da imigração polonesa no Paraná, tendo alcançado picos de 5 mil exemplares nos seus idos – registra a existência da ermida já em 1880. Dom Pedro II e dona Theresa Cristina, ao visitarem a região naquele ano, teriam feito hora naquelas paragens, vai ver, enquanto a carruagem recebia manutenção. A localidade – então um ponto perdido no mapa – ganhou o tal do plus. Acredita-se que ao ver a belezura do Santa Cândida o imperador aumentou ainda mais sua simpatia pelos imigrantes. Quem duvida que prove o contrário.
Caso se tome 1880 como referência, as duas torrezinhas modestas da capela estão plantadas no terreno faz 138 anos, tempo o bastante para que nenhum Skroch, Kulik, Skora, Kachel, Gbur, Barcick, Macioszek, Prodlo, Spisla, Manika, Kania, Walesko, Kubis ou Schluga (para ser bem sintético na lista) admita o desaparecimento ou – como diz a grita – a transferência para outro local. Tal hipótese, aliás, faz arder em fogo as bochechas naturalmente rosadas da turma. Os moradores do sobradinho que convivam com o monumento colonial, ou que se mudem para paraísos artificiais, como o Ecoville.
É de fato impressionante que a capelinha ainda esteja em pé, quase um século e meio tomando chuva na moringa. O mesmo se diga de uma “prima” sua, dedicada a São Roque, na esquina da belíssima Rua Thadeu Mikaolka com a Rua Maria Noêmia dos Santos. Essa, mais nova, é de 1900 e bolinhas, segundo registros. Nos primeiros tempos, a capelinha hoje a perigo estava sob custódia da família Klenk – oficialmente a responsável pela construção. A outra é dos Walesko. Tal como na Polônia, aquele espaço religioso estava, digamos, a meio palmo da roça e a poucas léguas da Estrada da Graciosa. Ao passar, os agricultores faziam sua reverência a Nossa Senhora de Czestochowa, a Virgem Negra dos poloneses, a quem o local foi dedicado.
Os Klenk cuidavam de aparar o mato em volta, de manter a pintura em dia, das flores e das faxinas. Contavam com uma mãozinha dos compadres. Toda sorte de festa de igreja acontecia no entorno. Fotos antigas garimpadas por Danusia e seu parceiro na empreitada, o advogado Jaime Luiz Schluga, comprovam a importância do oratório para a colônia. Há registros dos festivais da colheita realizados ali, arrisca, desde o Paleolítico. Coroas de trigo enfeitavam o terreno – imagem que provoca encanto.
Mesmo quem nunca colheu nem sequer um feijãozinho brotado no copo plástico gosta de contar essa história. Natural – todo mundo sabe que o Santa Cândida foi erguido na base da enxada e da coragem. A zona da capelinha também se prestava a ponto de partida para procissões na Semana Santa e de cortejos no dia da padroeira. Acrescente-se ser um santuário informal para o cumprimento de promessas. Não é raro encontrar quem narre cura de espinhela caída, casamentos salvos, finanças saneadas, tudo graças à santinha. Seria uma ingratidão deixar o trator passar por cima.
É bom lembrar que o monumento sofreu atentados próprios do tempo. A rua em que está faz muito deixou de ser uma estradinha que levava à plantação de milho. A capital mais motorizada do país passa naquelas esquinas. O Santa Cândida esbanja 1,8 automóvel por habitante. Os Klenk não respondem mais pela manutenção, hoje à mercê da generosidade da veterana dona Filomena Kachel Schluga, do alto de seus muitos anos. Também faz uma data que o quadro da virgem de Czestochowa ganhou um nicho reservado num casarão preservado, perto dali.
No lugar dela, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, trazida de Aparecida faz mais de 30 anos. De modo que a padroeira do Brasil e a da Polônia se alternam no posto de titular. Não constam reclamações. Tampouco preconceitos. Vizinhas do maior terreiro de umbanda da RMC, o cult Pai Maneco, a capelinha de Czestochowa/Aparecida e a de São Roque recebem oferendas aos orixás. De modo que, se retiradas, hão de se tornar estopim para um conflito ecumênico.
O material reunido por Danusia forma um dossiê que, em breve, deve ser enviado à comissão do Patrimônio da Prefeitura Municipal de Curitiba. A capelinha de São Roque vai ser incluída no processo. Há chances de um final feliz. Em levantamento que fiz em 2013, para matéria na Gazeta do Povo, a capital e seu entorno somam uma dezena de manifestações religiosas semelhantes – “incluindo” os cruzeiros, e “excluindo” as capelinhas minúsculas que ficavam no frontão das casas, sinais de devoção que ajudavam na iluminação pública. Essas, sim, estão condenadas ao desaparecimento.
Um único exemplar de capelinha de beira de estrada está tombado como patrimônio, o Oratório São Carlos Borromeu, em Almirante Tamandaré. Teria sido erguido em 1939, para aplacar a ira de uma praga de gafanhotos. Em 1979, o governo do estado do Paraná reconheceu a construção e lavrou ata de preservação. Difícil sustentar que a capelinha do Santa Cândida não mereça honraria igual.
Com sorte, outros exemplares poderão se safar do perigo da especulação imobiliária e, de resto, da ignorância. É o caso dos cruzeiros da Colônia Dom Pedro II e uma capelinha supimpa da Colônia Rebouças, ambas em Campo Largo. A da Colônia Rebouças concorre ao título de uma das mais antigas de toda a Região Metropolitana de Curitiba. Teria sido erguida em honra a São Marcos, em 1884, quando uma peste tropical matou 13 italianos que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá. A capelinha é puída e pintada de vermelho, mas não contem para a turma que abre fogo contra caravanas.
A propósito, as capelinhas de rua não pertencem à Cúria Metropolitana nem a qualquer paróquia. São de ninguém. Dependem da caridade de estranhos e dos bons ventos a soprar na alma dos que podem, sim, derrubá-las. Rezemos.