Opinião

José Carlos Fernandes

Casa da Videira, nossa vizinha

José Carlos Fernandes
21/10/2022 14:11
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A Casa da Videira – um misto de ONG e comunidade visionária – está no melhor momento, desde sua fundação, em 1991. Depois de ter sedes nos bairros Fanny, Mossunguê, zona rural de Palmeira, nos Campos Gerais, e num convento de Santa Felicidade – vive uma experiência radical no tradicional bairro São Francisco, em Curitiba. Ali, num sobrado espaçoso, pautado pela arquitetura dos anos 1970, o grupo, liderado pelo ativista fluminense Claudio Oliver provou o impossível: dá para produzir comida no espaço urbano, em abundância e com qualidade. O desenvolvimento de práticas de alimentação sustentáveis é uma das políticas do grupo.
O local é o que há. No quintal do casarão – um caixote cinzento, que antes da chegada dos inquilinos se confundia em sisudez aos muros de seu vizinho mais próximo, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula – são cultivadas 98 espécies comestíveis. Crescem soltas e juntas, em vasos comuns, desses em que a gente planta antúrios, dracenas e costelas-de-adão. Some-se a produção dos queijos artesanais, os cogumelos e as kombuchas, além dos bolos e pães assinados pela pedagoga e estudante de Relações Públicas da UFPR, Débora Feniman, chefe da cozinha local. Resultado – a Casa da Videira fica lotada nos sábados de manhã, com vizinhas e vizinhos que não resistem aos odores que saem dos fornos, espalhando-se pelas janelas da Rua Paulo Graeser Sobrinho e redondezas. Eles não só compram os produtos da Casa como se sentam à mesa com Oliver e sua grande família.
A notícia é que, justamente por tudo estar tão bem, os moradores decidiram, como se diz, “sair da zona de conforto”. “Viver em comunidade é muito peculiar. Não é universal. Mas viver com vizinhos, sim, é um caminho para todo o mundo”, ensina. Antes de tentar provocar esse modelo, em escala maior, a turma entendeu que há uma tarefa a cumprir: enfrentar a tormenta de dentro, e não como observadores. “O modelo energético faliu, a crise climática está instalada. Nossa proposta é se fragilizar, colocar-se em risco, como os outros, e perceber que respostas emergem dessa fragilidade”, avisa Oliver.
Até meados de outubro deste ano, estima-se, o sobrado será devolvido a seus donos e a Casa da Videira vai entrar numa nova era geológica. Já entrou, inclusive. Parte dos membros da comunidade partiu ou se prepara para partir rumo a comunidades alimentares, por assim dizer, em outras partes do globo, a exemplo da Alemanha. Os equipamentos semindustriais da residência – em especial os voltados para a produção de cogumelos – deve ser instalado numa escola pública da Vila das Torres. Oliver, e sua companheira, a médica Katia, se preparam para uma inserção rural em Portugal. Em março de 2023, o grupo todo vai interromper a diáspora e se reunir novamente, em local a ser definido, para ver o bicho que dá. Tudo indica que a fase curitibana da Casa da Videira chegou ao fim.
Na visão de Claudio Oliver, nada a temer. Com a experiência do bairro São Francisco – acalentada seis anos atrás – os videirenses provaram que se pode produzir comida, no vaso de plantas encostado no muro do quintal, sem precisar morar na roça. Mais: a turma da Casa da Videira entendeu que o melhor dos mundos seria produzir com os vizinhos, em pequenas glebas, etapa que deixa para os que ficam, como provocação. Com base na observação, entende-se que um grupo de moradores em acordo teria todas as condições de gerenciar serviços básicos e cultivar alimentos de subsistência, livres das contaminações, mesmo com o transporte público e o caminhão do lixo apitando na frente das residências.
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“É Davi contra Golias”, brinca Oliver, não sem antes reinterpretar a passagem bíblica, das mais populares. “Não se trata de jogar pedrinhas na cabeça do gigante, mas de ignorá-lo”, diz, a respeito do mundo da alimentação, governado de forma imperial pelas commodities. Na Casa da Videira – e não é de hoje – ignora-se, solenemente as comidas ditadas pelo mercado, com base na soja, arroz, trigo, milho e cana de açúcar. A exceção fica para o dia da semana em que a chef Débora não abre mão do brasileiríssimo feijão. De resto, saibam que nossa imaginação não alcança o que a turma da Casa é capaz de fazer com plantinhas desconhecidas que brotam na calçada. Lasanha? Como não. Pães? Paguem para ver.
Com o gesto de dizer “não” a modelos agros e ogros que condenam, e o de atrair pessoas às boas práticas de segurança alimentar, os moradores da Casa da Videira fazem uma equação das mais interessantes. Eles unem uma lógica revolucionária, típica dos coletivos de resistência, e o espírito das primeiras comunidades cristãs, que se espalharam pela força do exemplo e da comunhão. O que essa turma faz, de posse dessas duas crenças, deixa os deuses atordoados. A propósito, um dia, alguém fará justiça à Videira, compilando as estripulias das mais criativas dessa quase trupe. Ainda que combativa, distribui alegria aos ventos.
Um aperitivo: nos tempos de Fanny, o grupo transformou um barracão industrial em praça brincante para a comunidade, tomada por pula-cordas e tecidos acrobáticos. No Mossunguê – já então contaminado pela ideia estapafúrdia de virar Ecoville – uma heroica casa de madeira servia de QG para a criação de animais, de sabão e de preservação ambiental a partir do espaço urbano. Faziam frente à arquitetura burguesa dos condomínios, dos quais estavam cercados. Em Palmeira, a turma da Videira virou polo de pesquisa científica, visitado por gente bamba de tudo que é costado. E a Casa só não ficou em Santa Felicidade – pertinhos do céu da utopia – porque o imóvel foi reclamado pelas proprietárias. Entre um endereço e outro, a dezena de moradores fez ações deliciosas – ocupou terrenos baldios e ali plantou a nutritiva ora-pro-nobis; e catou comida dos lixos dos supermercados para fazer com ela divinos ratatuilles. Houve quem os tomasse por doidos. E a loucura é da missa nem a metade.
Só louco, afinal. Ao promover a comida saudável como estilo de vida, a Casa da Videira tocou em outras feridas contemporâneas – a destruição em escala do meio ambiente, a decadência dos centros urbanos, o individualismo que se impõe por sobre as relações comunitárias. Os moradores, claro, tiveram de brigar bastante. Viram o sequestro de suas galinhas e porcos. A implicância com a estética das espécies em convívio. A fúria diabólica dos que sabem estar em iniciativas como essa a nascente de uma água capaz de sanear a enroscada em que a humanidade se meteu.
Foi preciso peito, braço, garganta e pés nas portas, mas sobretudo estudo. O educador Eduardo Feniman, um dos moradores, se formou em Agronomia. Oliver, odontologista de formação e um homem renascentista, tamanho seu tutano nas mais diversas áreas, cursou Zootecnia e nos tempos de aluno fez tremer o chão da Escola de Florestas da UFPR. A afirmação da Casa da Videira como um espaço de investigação científica era urgente, para que não os tomassem apenas como uma comunidade carismática, cheia de boas intenções, sob medida para ilustrar reportagens de interesse humano – e tchau e bênção.
Um levantamento detalhado pode mostrar que na última década, pelo menos, Oliver serviu de fonte para a imprensa brasileira, em questões ambientais e de alimentação. O fechamento da Casa da Videira de Curitiba é quase uma consequência dessa projeção. Desde os tempos de Palmeira, observadores internacionais grudam os olhos na comunidade, que encontrou entusiastas mundo afora. Querem que Cláudio e Kátia, Eduardo e Débora, os idosos, jovens e adolescentes da moradia sejam seus vizinhos também. Nos últimos anos, as tentações de aceitar convites foram muitas, até que uma nova pergunta forçou a decisão de alçar voo.
“Qual o futuro da comida?”, resume Oliver. A ONG quer ajudar a responder essa questão, em parceria com cientistas, ativistas e demais homens e mulheres de boa vontade, todos cientes do esgotamento promovido pelo agronegócio. “Cara, 33 milhões de pessoas no Brasil não vão comer hoje...”, provoca, como que perguntando por que diabos a gente está vendo a banda passar. O que segue à provocação é um discurso de nos tirar o chão, sobre a crise climática, o esgotamento do solo pelos pesticidas e a selvageria capitalista que – diz o pesquisador – sabe exatamente o que está fazendo. “Hora de tirar a bunda da cadeira e agir”, conclama. “Clima, água, veneno, interesses... Como a gente vai vencer essa batalha? Seria por revolução, replantio da Amazônia, extinção do veneno... Poxa, 215 milões de pessoas têm de comer. O futuro da comida está na cidade, na proteção intensiva e diversificada, está num modelo ao contrário da monocultura....”, vaticina.
A Casa da Videira, em resumo, vai dar um abraço bem dado nos vizinhos – agora seus amigos – e fazer revoluções amorosas e de impacto em outras paisagens. Levam um pouco da gente com eles. Sentiremos saudades, como não.