José Carlos Fernandes

Com o sol na cabeça

José Carlos Fernandes
15/07/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

O ano de 2018 vai ser aquele em que fomos surpreendidos por Geovani Martins – o sujeito de Bangu, no Rio de Janeiro, que passou de atendente de barraquinha de praia, e das ingratas lides de homem-placa, para a literatura. A literatura porreta. Os elogios ao escritor de 27 anos, morador de comunidades cariocas como a Rocinha e Vidigal, são superlativos. Partem de quem entende do riscado, a exemplo do documentarista João Moreira Salles (Entreatos, Santiago), não por acaso um expert na obra do jornalista norte-americano Joseph Mitchell, repórter das antigas devotado a… anônimos. O perfil que Mitchell fez do mendigo novaiorquino Joe Gould é lido com apetite desde 1942, ano de sua primeira versão. É sinônimo do mistério que mora naqueles que não enxergamos. Tem a ver.
Geovani é um tipo que conhecemos. Recebeu uma penca de “nãos”, mas disse “sim”, como se repetisse um mantra de Yoko Ono. O sujeito Martins confirma o que profetizou certa vez o jornalista Carlos Heitor Cony: a cada dia nasce um novo Buda, um novo Cristo, o novo Lennon, o novo Machado. Detalhe: ninguém vai ler seu livro de estreia – O sol na cabeça, com 13 contos supimpas – achando que é bom pelo simples motivo de que o autor amargou maus bocados. Não vale pena, longe disso. A obra é excepcional porque põe a linguagem no fogo e a despacha por trilhos que levam ao fim do mundo – às Sibérias reais. Manda também pelos ares. Porque cada pequena narrativa termina como se fosse um começo. Ora pesa um contêiner, ora pesa uma folha ao vento. Isso tudo acontece porque Martins fala de dentro e daquilo que conhece. E porque dá um basta na lógica simplista que rege a classe média mediana. Em vez de ideais e bravatas, vertigem.
Na prosa de Geovani, a turma do morro não é pobre, violenta ou sobrevivente – ou não apenas isso: são pessoas com quem gostaríamos de estar. No mais, O Sol na cabeça comove porque vem ao encontro de uma urgência do nosso tempo: falar de si. Com o fim das ideologias, o processo universal de desencanto, a dificuldade em interpretar os fatos, passamos cada vez mais a acreditar na experiência individual, única régua confiável da vida. Martins não é teoria sobre comunidade carioca, é suor, moringa, ladeira. O século 21 é biográfico, testemunhal, umbilical, pessoal, parcial. Acima de todas as coisas está o “confesso que vivi”, de Pablo Neruda; o “viver para contar”, de Gabriel García Márquez.
É verdade que esse império do subjetivo pode se converter num mecanismo insano, um chatésimo documento confidencial do Faustão. Todos querem para si o papel de protagonistas. Como se gritássemos em coro nossos nomes, numa estação de metrô. O desejo de existir – ao estilo Show de Truman – pode ser uma senhora casca de banana. Uma banheira de ressentimentos feita para nos afogar. Tomando emprestadas as palavras do crítico inglês Terry Eagleton – um teórico que estimula à sanidade –, melhor é se ver num personagem de Shakespeare, de Tolstoi, dos grandes filmes, sabendo-se parte da humanidade, igual a tantos outros, do que se autoproclamar único, o centro da trama. Discursos encharcados do uso da primeira pessoa podem despertar uma preguiça atroz, o bocejo eterno.
A despeito dessa “sala de espelhos” de parque de diversões em que nos metemos, também pode ser fascinante esse período em que os homens e mulheres comuns deram de tomar a palavra. Alguém que se preste a ler os relatos que os joões e marias deixam por aí há de cair em babas. A maioria dos escribas de si mesmos não pode ser equiparada a um Geovani Martins. Mas não importa. Como professa a maior autoridade no assunto – o francês Philippe Lejeune, colecionador de relatos autobiográficos, diários e relatos de anônimos –, o que as pessoas invisíveis escrevem é “obra viva”, “uma aquarela que não suporta retoque”. Não tem igual.
Desse ponto de vista, um texto como Quarto de despejo – diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicado na década de 1960, não é propriamente literatura. É madeira em brasa, com os verbos e predicados próprios de alguém que escreve enquanto a vida passa por ela, na hora exata do tapa e do chute na canela. Segue o ponteiro do relógio, na hora em que as coisas se dão. Não tolera correções, frase melhorada, verniz de estilo e outras traições. Em vez de produzir efeito estético, imprime o cotidiano, sem pó de arroz.
Convenhamos, até gente como Lejeune – ou o jornalista Audálio Dantas, morto este ano, descobridor de Carolina Maria de Jesus – não havia muita boa vontade com os escritores amadores, acusados do mau uso da crase, de desconhecer o lugar certo da vírgula, de serem clichês. Os forasteiros da literatura pareciam condenados a uma equação cruel: a de que deviam ser reconhecidos por serem pobres e injustiçados, não pela literatura, via de regra ruim e nascida da boa intenção.
Acabava que não eram lidos por ninguém. Algo se perdia nesse embate. Mas aconteceu que eu, você, todo mundo precisou falar de si mesmo para ver se entendia a velocidade com que os destroços do século 21 foram se acumulando nos nossos quintais. Deu no que deu – em plena revolução informática surgiu um exército de autores que usam a rede, mas também o lápis e o papel para dizerem seu nome, o que fazem e o que pensam, a sangue quente. Temos uma Renascença via web, a era Zuckerberg, o escambau. Mas também temos prosa pura de quem escreve e lê com tropeços. Brota do ralo uma biblioteca universal, assinada por gente que não acaba mais.
Há uma década, ou por volta disso, os jornalistas Claufe Rodrigues e Gilberto Dimenstein chamaram atenção para um movimento literário que ficou conhecido como Bar do Batidão. Num boteco dos arrabaldes de São Paulo, escritores que eram rostos na multidão subiam ao palco e declamavam seus versos para a plateia. Tinha taxista, balconista, porteiro de prédio, lojista. O poeta Sérgio Vaz, à frente da Cooperifa, uma editora de autores marginais, comandava os saraus. Chamava o lugar de ágora dos escritores desconhecidos. Eles não produziam para serem venerados numa feira do livro, ou no caderno dois. Escreviam para existir.
Em Curitiba, sem a mesma repercussão que o Bar do Batidão, mais de uma vez o poeta Geraldo Magela reuniu no TUC – berço do rock paranaense, aquele túnel atrás da catedral – donas de casa, operário e até população de rua para fazer uso da ágora. Comovia ver os deserdados declamarem versos no puxadinho do teatro. Mais – Geraldo edita livros desses autores, a exemplo da sofredora de carteirinha Marlene Oliveira. Dá vontade de encher um contêiner com os textos em carne viva desse pessoal e mandar para o museu do Philippe Lejeune.
Não se acha um gênio da raça como Geovani Martins em cada esquina. Mas temos umas tantas Carolinas Marias de Jesus, cada qual com seu quarto de despejo. De minha parte, penso ter identificado 20 autores anônimos extraordinários em uma década de garimpagem. Foi ao acaso. Buscava leitores que liam mesmo com tudo contra, um pessoal que foi pouco à escola e que vivia em ambientes em que o livro não gozava de status. Na captura, dei de encontrar leitores com baixa instrução formal que se tornaram escritores. Do que tratam? Quase sempre de si mesmos, que é o que melhor tecem. Vivem do trabalho dos seus corpos, sabem onde lhe doem os calos. Minha conclusão até aqui é que escrevem para que o diabo pelo qual passaram não seja esquecido. No futuro, seus livros serão achados por algum distraído, como o escafandrista do Chico Buarque. Nesse momento, sairão da sombra da história, a que se sentem condenados, porque dormem no travesseiro bordado com a palavra “ninguém”, do Leonilson.
Da lista faz parte Aldo Brito, o ex-pequeno jornaleiro. Escreveu à máquina suas memórias de guri, assim que se deu conta de que passaria em branco. Ele confessa que viveu. Há também o poeta Cosme dos Santos, cujos poemas – de amor e de abandono qual uma doída toada sertaneja – guarda em caixas de frutas numa casinha na CIC. Os versos de Cosme são laranja colhida no pé. Ponha-se na conta o poeta haitiano Rei Seely, dono de um lamento de refugiado. Tem o Anderson Bordignon, que escrevia no rolo da caixa registradora de um supermercado. Tem alguém que você conhece. Repare – esses escritores ruminam as horas. Escrevem o que são, sem truques. E isso é muito bom.