Gazeta do Povo - Colunistas

Como o crochê explica o mundo

Gazeta do Povo - Colunistas
17/09/2017 21:00
Thumbnail
A ativista Luciana Cortez de Oliveira, 39 anos, era apenas uma menina de tranças quando aprendeu a fazer crochê. Aconteceu em Colombo (Região Metropolitana de Curitiba) durante uma missão de religiosos norte-americanos. Entregou-se à tarefa mais do que às bonecas, crente de que a agulha e a linha serviam de remédio para sua timidez de guria da periferia. Depois arquivou tudo na nuvem dos esquecimentos. Passadas duas décadas, lembrou-se do que sabia, assim do nada, emplastro para uma melancolia braba que deu de lhe atazanar as ideias.
Começou por um tapete, tecido ponto a ponto, sofrido pra diabo, como se subisse descalça um Everest. “A repetição me ajudava a organizar as ideias”, lembra, morena dos olhos d’água. Deu-se assim um desses milagres do cotidiano, uma dessas coisas que ainda não existem – como bem dizia o poeta Manoel de Barros.
Uma moradora do Rio Bonito – loteamento popular do Tatuquara, onde Luciana vive com o marido, Fernando, e com os dois filhos, Juan e Artur – viu a vizinha triste e seu tapete bonito. Encantou-se com a cena que bem podia ser uma pintura de Vermeer. Dedicou um baita elogio à vizinha, com quem engatou um papo sobre a alegria que é saber fazer um crochê. Melhor que bater um bolo, concordaram.
O que aconteceu em seguida não é segredo. Luciana deu de chamar quem quisesse para rodas de crochê regadas a refrigerante, pão doce e conversa fiada, ali mesmo, na sala de casa. O mutirão logo ganhou o nome de Lucianas & Marias, uma espécie de clube de crocheteiras hoje espalhado por oito unidades de saúde de Curitiba, com braços em escolas e a quem interessar possa. De 2015 para cá, a iniciativa atingiu mais de mil pessoas. Não tem segredo. Um cantinho qualquer é reservado para as aulas, conduzidas por voluntárias. Em roda, mulheres – e uns poucos homens desencanados – se entregam ao risco do bordado. É terapêutico, afirmam os doutos. Luciana passa bem.
No livro Como o futebol explica o mundo, o jornalista norte-americano Franklin Foer explora o sentido de jogar bola em nações como a Irlanda, a Espanha e o Brasil. Tem a ver com mérito, com estar junto, com superar estágios primitivos de sociabilidade. Pois alguém que se arvorasse em escrever Como o crochê explica o mundo, a partir da microiniciativa de Luciana, encontraria uma bacia de verdades sobre o poder do artesanato em modificar o cotidiano, devolvendo às pessoas à capacidade de falar de si e da vida a partir de um treco que fazem com as mãos. É bem mais fácil que cultivar avencas.
No círculo de Luciana, a turma proseia enquanto arranca faíscas das agulhas. Deve ter alguma mágica na conciliação dessas duas tarefas. E algo a ver com antepassados em volta da fogueira, pondo em comum pequenas histórias. No caso das crocheteiras, vale contar uma anedota e até vantagem, algo como “Fiz essa toalha em menos de duas horas”. A propósito, as freguesias de crochê nutrem sonhos de formar cooperativas e tirar algum caraminguá para pagar a conta da água e da luz. Uma agulha e um novelo saem por pouco mais de R$ 10, com sorte rendem lucro em dobro.
“E economiza nos antidepressivos”, acrescenta Luciana, com a experiência de quem deixava sacos de dinheiro no balcão da farmácia. Pelo menos foi assim com ela, que se dedica à tarefa com tamanho apetite que já despertou o ciúme dos filhos. “A mãe já vai”, negocia toda hora e todo instante, tendo como trilha sonora o apito da panela de pressão e os solavancos da máquina de lavar roupa. Na semana passada, varou a noite para fazer um boneco de crochê em tamanho real, exposto na Rua da Cidadania da Matriz, na Praça Rui Barbosa. Virou selfie dos passantes.
A biografia de Luciana Cortez impressiona. Alta, magra e bonita, cresceu debaixo da profecia de que deveria ser modelo. Pois desfilou para lojas de vestido de noivas. Houve quem lhe dissesse que podia virar atleta, pois físico não lhe faltava. Concordou – fazendo-se corredora de rua. Não dispensou nem mesmo a sugestão de que com aquele porte de Deusa do Ébano devia arriscar a carreira de atriz: participou do documentário Preto no Branco, sobre negros de Curitiba, com direção de Luciano Coelho. Outros lhe destacaram a inteligência afiada, aos quais correspondeu ao passar num vestibular de Direito. Tem uma nada mole vida – trabalhou como entregadora de cartas e hoje é dona de um misto de brechó com sebo no Rio Bonito. Fica no puxadinho de casa, e tem 30 mil fregueses em potencial, a contar pelo número de moradores daquelas lonjuras.
Cá entre nós, de todos os papéis que os palpiteiros atribuíram a Luciana, o que melhor lhe cabe é o de agitadora política e social. Perguntem ao povo da vila. Por lá, ela é a “Luciana das cartas”. As cartas das quais falam não são as dos Correios e Telégrafos, mas as que a moradora deu de incentivar a comunidade a escrever. Explico. Assim que se mudou para o Rio Bonito, ela percebeu que as filas na Unidade de Saúde começavam às quatro da madruga. Uma dia se abalou até lá, insone, saber qual era a ladainha. Trouxe um rosário de queixas sobre falta de médicos e a odisseia para conseguir consultas. Indignou-se. Sugeriu que a turma se manifestasse por escrito.
Caso alguém tivesse dificuldade com a perninha do “a”, que deixasse com ela. Além de ajudar na redação, levaria as reivindicações à prefeitura. Funcionou. Diferente dos abaixo-assinados – que, tendo 500 ou 1 milhão de assinaturas, geram um único documento –, as cartas são documentos unitários. Buzinam mais na orelha das autoridades. Até a última contagem, as cartas do Rio Bonito somam um lote de quase 7 mil missivas. Há dois anos, a estratégia de guerrilha deu a Luciana 15 minutos de fama.
Tudo corria bem, até que numa véspera de Natal a escrevinhadora se sentiu um chinelo velho, uma sombra da mulher que incomodou prefeito e assessores com as montanhas de cartas entregues à repartição. Doeu. Até que se viu salva pelo crochê. “Olhe o meu dedo do jeito que está. Precisei comprar uma proteção”, avisa, diante da centena de peças de sua autoria, nenhuma à venda. Tem toalhinha de mesa e biquinho de pano de prato, claro, mas são de menos. A coleção é formada por brinquedos de crochê, utensílios domésticos de crochê, frutas e legumes de crochê, pratos de comida de crochê e até pessoas de crochê. Se vai com a cara de alguém, faz uma miniatura do sujeito, em crochê. “Já me perguntaram se é vodu, crendiospai”.
Fernando, 39 anos, marido de Luciana, não chega a bater o recorde de 12 horas seguidas de artesanato. Sabe pouco do ofício, mas tem lá sua contribuição à revolução dos crochês do Rio Bonito. Faz as vezes de motorista e carregador do acervo, exposto pela cidade, a cada vez que a esposa é convidada. Paralelo, tem seu próprio ativismo – é um agente de leitura. Sua coleção de livros soma cerca de 4 mil volumes e nasceu de um cestão de liquidação no Asilo São Vicente de Paulo. A “queima”, no bom sentido, fez dele o vendedor de livros do Rio Bonito.
Houve os que desdenharam quando ele passou a oferecer romances aos fregueses do brechó de Luciana. Quem é que iria se interessar por aquilo na redondeza das vilas Monteiro Lobato, Santa Rita ou Sambaqui, para citar três localidades próximas? Pois que escondam os caninos e enxuguem o veneno. “Esses dias uma freguesa levou R$ 120. Mal acreditei.”
O fascínio de Fernando pelos livros começou tarde. Beirava os 30 anos – idade em que, no senso comum, é mais fácil se entregar à mesa de bilhar do que à leitura. Não bastasse o súbito gosto pelas letras – Victor Hugo, Dickens e tal –, descobriu a filosofia. Fala de Schopenhauer com intimidade. “E tem o Nietzsche…”, acrescenta, com certa frustração. Pergunta-se até hoje com que miolos alguém consegue vencer Assim falava Zaratustra. Tentou mais de uma vez. Entre uma derrota e outra, consola-se com uma certeza que vem do fundo da alma: ele e Nietzsche se parecem – vai ver que pela mania de ambos em andar à beira de um abismo. Convenhamos, o sorridente Fernando leva uma vantagem: consegue ser dionisíaco, o que o apolíneo Nietzsche não alcançou nem em sonhos. O filósofo alemão nunca fez um crochê, não varou noites confeccionando bonecos com Luciana. Não conheceu o Rio Bonito. A vida tem sempre razão, afinal.