José Carlos Fernandes

Considerações esparsas sobre a intimidade

José Carlos Fernandes
04/02/2018 20:00
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Felipe Lima

Minha avó Martinha – assim a chamávamos, num brinde a seu 1,4 metro de excelsa bravura – tinha três assuntos prediletos: comida, dinheiro e casamento. Saíra aos seus. Portugueses, não importa se doutos ou se apartados da escola, são iguais na devassidão com que se entregam a assuntos da mesa, da cama e das cifras. As cifras, sobretudo.
O curioso é que ela só se deu bem em um dos quesitos da trilogia lusitana da felicidade. Aos 49 anos sofreu uma pane no sistema gástrico. Sua sobrevivência era tamanho mistério que o médico que a tratou, Giocondo Artigas, levava acadêmicos para conhecê-la, como prova de que exceções no prontuário existem. A avaria do pâncreas e arrabaldes se mostrava tamanha que passou quase metade da existência sem poder desfrutar de frituras, molhos e cremes. Morreu aos 93 anos, salva pela teimosia e pelas panelas de tefal.
Tampouco ganhou dinheiro. Foi bordadeira de enxovais – babeiros, mandriões, lençóis, toalhas de mesa. Tudo à mão. Teve na lista de clientes a nata da sociedade paranaense. O povo graúdo que saía na coluna do Dino Almeida não se importava em sentir ranger o chão da casa de madeira em que ela morava, na Vila Leão, só para vê-la, pequenina, estender seus tesouros em linho sobre a mesa. Era mágico. Entre seus fãs, gente ilustrada nas artes, como o galerista Waldir Simões de Assis e os arquitetos Dilva e Orlando Busarello.
O diacho é que não sabia cobrar. Criou nove filhos e uma das netas no cobertor curto. Lembro bem do dia em que se deu conta de que seu modelo de negócio estava fadado à extinção: na tevê, viu reportagem sobre a Xuxa saindo do hospital com a Sacha nos braços… “enleada” numa fralda. Se até a “Rainha dos Baixinhos” – com tamanho saldo bancário – desconhecia a fineza de um vira-manta bordado em ponto sombra, nenhum dos novos ricos deveria ser diferente. Estava certa. A última encomenda que recebeu foi um lençolzinho para a cama de um cachorro do Batel. Para coroar, levou um retumbante calote da dona do mascote, seguido de desaforos.
Quanto ao casamento – tudo azul. Aos 19 anos, tida como a mais catita de sua aldeia, uniu-se ao homem que escolheu. Chamava-se José. Era alto, bonito e bom. Morria por ela. Nunca lhe ergueu a voz nem o braço. Martinha podia não ser autoridade em gastronomia nem em finanças, mas se fez protagonista de um romance da vida real. Dispunha de credenciais para dar conselhos amorosos a toda gente. Nenhuma armadilha conjugal lhe parecia estranha.
Um de seus esportes, casar qualquer mulher que passasse no rabo de sua saia. Patriarcal e machista – pois ninguém é perfeito –, julgava a solteirice uma tragédia tão grande quanto a ditadura de Salazar. Tornou-se lendária a sabatina que aplicava aos namorados das filhas, netas e até das sobrinhas. Assim que os candidatos cruzavam o portãozinho do quintal para conhecê-la, arrancava-lhes um compromisso de enlace. A Igreja Senhor Bom Jesus do Portão lhe deve uma plaquinha de agradecimento. A Vara da Família também: combatia separações com a sanha de um cruzado.
Ocorreu que uma das netas mais novas ousou discordar do cerimonial. Defendia o direito ao namoro rotativo e de curta duração. Marta, que dividia a população feminina entre as “moças pra casar” e “as outras”, perguntou-lhe, com o scanner ligado, que homem haveria de querê-la. Recebeu uma modernice qualquer como resposta, algo como “um beijinho no ombro”. O piso da cozinha por pouco não se abriu. A velha senhora merecia um papel em novela bíblica da Record por sua performance. Num misto de praga e profecia, replicou: “Hás de arrumar um bom divorciado com filhos”.
Virou anedota. Diante das desditas afetivas de alguma parenta, a brincadeira era botar a mão nas costas e dizer: “Calma, você vai arrumar um bom divorciado com filhos”. Arrisquei variações para o tema – “olhe, você vai arrumar um bom divorciado com filhos adolescentes problemáticos. Com dependência psicológica da ex-mulher. E que more com a mãe…”.
Tempos atrás, contei as táticas de guerrilha da minha avozinha a uma amiga, na tentativa de reanimá-la, e fazê-la rir, diante do triste fim de um longo namoro. Há um mês, mandou me avisar: “Zeca, achei meu divorciado com filhos”. Disseram-me que a guria estava cantando na chuva. Listei de pronto outros casos parecidos que conheço, de modo a confirmar que os vira-mantas e os namoricos seguidos de noivado viraram passado. A propósito, a neta protestante ficou só na ameaça de se desgarrar: casou-se nos conformes, com um rapaz solteiro que cruzou o portãozinho numa tarde de domingo. Martinha venceu a parada.
Lembro da primeira vez que ouvi falar de um pesquisador brasileiro que dera de estudar paqueras e namoros. Por sorte não havia o MBL para arrancar os cabelos, alegando desperdício de recursos na investigação de baboseiras. Era interessante ler análises profundas sobre a anatomia da cantada, o gestual dos apaixonados, as estratégias das conquistas. Mais. Foi uma surpresa saber que havia outras pessoas ocupadas do assunto. Uma delas se chamava Mirian Goldenberg, antropóloga que venceu a resistência da academia – então refratária a questões que não versassem sobre política, mundo do trabalho e opressão do capital.
O amor nos tempos de Goldenberg figurava entre os temas ditos burgueses, objeto dos alienados e dos noveleiros. Mas não para a estudiosa, que se pôs a escutar as coroas e as amantes, formando um imenso arquivo de histórias femininas de amor e solidão. Impressionam as saídas que as depoentes encontram para dar asas ao sexo e ao carinho num mercado desigual. O material que Mirian coleta permite fazer uma inédita estatística do afeto, que, à revelia da sua estranheza, ajuda a entender a sociedade tanto quanto o IDH e o Pnad. Em suma, as pessoas trabalham e votam, mas também se querem – e esse não é um dado restrito à esfera particular.
Embora sem ciência e limitada pela cultura de sua geração, era de Goldenberg que Martinha falava à neta quando lhe desejava “um bom divorciado com filhos”. Sabia que bordados não davam dinheiro, que doentes da barriga são privados da alegria de comer e que não tem parceiro nem parceira para todo mundo. Entendia também que para tudo que é deveras importante, sempre se dá um jeito. A máxima vale para os labirintos do coração.
Parece impróprio tratar de intimidade bem agora, em meio aos escombros. Mas penso que não. Estamos vivendo um momento pornográfico – e a pornografia não diz respeito apenas à turma do barco da Cristiane Brasil ou a Temer no programa do Sílvio Santos. Lembro a frase que fez a fama de Marta Suplicy – e que levou muitas netas enfrentarem suas avós: “A revolução passa pela cama”. Se não todos, muitos dos males que assombram o coletivo se nutrem das relações travadas entre quatro paredes. É ali que o velho se perpetua e também onde a liberdade bota seus ovos.
De minha parte – como que em busca de um respiradouro –, tenho me deliciado com o que dizem e escrevem os autores ocupados dos afetos privados em tempos de desafetos públicos. A lista é longa e preciosa. Passa por Zygmunt Bauman, que em Amor líquido equiparou os relacionamentos contemporâneos a uma pista de gelo, veloz e cansativa. Pelo “descartável” Alain de Botton, vulgo “De Botox”, que dá o troco a seus críticos na série de vídeos The School of life – um exímio roteiro para entender a exigente (e amuada) lógica amorosa. Some-se A revolução do amor, de Luc Ferry – um libelo sobre o que sobrou no momento em que ninguém dá mais a vida pela pátria, por uma religião ou por uma ideologia. Um bombom para quem acertar a resposta.
Vale lembrar que há verdadeiros boxeadores neste debate. Quase sempre nos levam a nocaute. O sociólogo britânico Anthony Giddens nos conduz – como uma guia turístico malvado – pelos abismos emocionais que mexem com os nervos da gente. E Giddens é fichinha perto da psicanalista brasileira Regina Navarro Lins – a corajosa intelectual que enfrentou um programa de auditório, o Amor & Sexo. Sua defesa aguerrida sobre as ilusões – e o fim – do amor romântico nos deixam na lona. É mais confortável pensar o assunto numa canção de Zeca Baleiro, para quem o amor é invenção do cinema e da tevê, do que nas afirmações secas e cruas do já clássico A cama na varanda e no recém-lançado Novas formas de amar.
Em tempo – não se trata de assinar embaixo de tudo o que Regina diz. O que afirma é duro de tragar. Mas de admitir que, por mais que o essencial não mude – a necessidade de comida, de dinheiro e de carinho –, a ordem dos fatores altera o produto nesses tempos estranhos às Catherines – a Deneuve e a Millet – e às Martinhas casadoiras. A política passa pelo corpo. Eis o ponto.