José Carlos Fernandes

Curitiba pertinho do céu

José Carlos Fernandes
20/05/2018 21:00
Thumbnail

Pesquisadoras Elisabeth Amorim e Zulmara Posse, autoras do livro sobre a verticalização de Curitiba. Foto: Albari Rosa. Arte: Felipe Lima.

Convidadas a fazer contas – sobre o quanto produzem – a arquiteta e urbanista Elizabeth Amorim de Castro e a historiadora e antropóloga Zulmara Sauner Posse se espantam. Conhecem-se há exatos oito anos. Neste curto espaço de tempo, assinaram juntas quatro livros, todos tão volumosos que, empilhados, sustentam uma mesa. Ponha-se no cálculo três sites (agrupados na página Memória Urbana), uma exposição no Memorial de Curitiba e a publicação da tese de doutorado de Beth – um caudaloso estudo sobre a arquitetura de 260 escolas públicas paranaenses entre 1853 a 1965, pronto para sair do prelo, com o apoio incondicional de Zulmara. Há ainda dois projetos iniciados porém arquivados e um terceiro curso – sobre cujo teor fazem mistério, com a peraltice de colegiais.
Ao somar e dividir, é como se a cada dois anos a dupla colocasse na praça um estudo que a maioria levaria a eternidade e mais um dia para concluir. Elas reconhecem que são boas de estiva, mas não dão margem para a vaidade dos gabolas. São meio que a tampa e a panela. Deram a sorte de se conhecer e de descobrir que o casamento perfeito não existe apenas nos filmes de amor, mas também no mundo da pesquisa. A cidade é que lucra com a parceria: a capital paranaense ocupa o centro dos estudos de Posse & Amorim, alçadas ao posto de autoridades em CWB.
Quando lembram como se encontraram no palheiro, é de achar graça. Um amigo em comum – o arquiteto Humberto Mezzadri – contou a Zulmara que Beth procurava uma historiadora para dividir uma tarefa. Recém-saída da cúpula do Museu Paranaense e do Departamento de Antropologia da UFPR, não deixou para depois, como é do seu estilo – o elétrico coletivo. Sempre pesquisou em conjunto, a seis mãos de preferência. Precisava de parcerias novas. Pegou o telefone, ligou para a amiga do amigo, marcou um café.
“Desde esse dia, não nos largamos mais”, diz Zulmara, sobre a colega, então, um bocado às turras com o monólogo da pesquisa. “Fiz bastante coisa sozinha, mas é muita responsabilidade. Nossa parceria é franca. Temos formações diferentes, discussões, mas as leituras se aproximam muito”, pondera Amorim. Falam-se sempre que precisam – de manhã, à tarde e de noite – e alimentam um pacto inquebrantável de amizade intelectual. “Nossa receita? Não fico emburrada quando Beth muda as vírgulas do meu texto”, brinca Zulmara.
As pesquisadoras podem até ser até diferentes no temperamento – algo como “o feijão e o sonho” do conto de Orígenes Lessa – mas se revelam donas do mesmo relógio interior. “Somos disciplinadas”, dizem em coro, sobre a cláusula pétrea desse contrato informal: não vale procrastinar. E se uma – hipnotizada pela empolgação – não sabe a hora de parar uma tarefa, cabe a quem estiver em dia com as virtudes da pragmática dizer a palavra de ordem: “Chega”.
Não causa espanto que precisem se autorregular. À revelia das horas expostas aos fungos, desfrutam daquela alegria própria de quem faz o que gosta, como perdão ao clichê. Estudam Curitiba – a cidade que escolheram para chamar de sua. Beth é carioca e vive aqui desde os 3 anos. Zulmara – gaúcha criada em Santa Catarina – desembarcou adolescente, de uma vez por todas. Conta que adoraria viver em Cusco, no Peru, ou em Bruxelas, na Bélgica. Mas a capital paranaense continua sendo sua casa. “Quando viajo, volto cheia de saudade”, confessa a estudiosa que – em parceria com Beth – escreveu sobre os matadouros do Atuba e do Guabirotuba, sobre as mansões do engenheiro Eduardo Chaves na primeira metade do século 20 e – da última lavra – o livraço de 352 páginas Morar nas alturas: a verticalização de Curitiba entre 1930 e 1960. Ainda em lançamento, figura entre aqueles trabalhos já com lugar cativo nas estantes paranistas.
A pesquisa – sobre o início da era dos espigões na capital – traz pencas de documentos, como mapas, plantas, fotos e notícias de jornal. Trata de nada menos do que 124 prédios do Centro, selecionados com pinça. Alguns são velhos conhecidos, como o “balança-mas-não-cai” Brasilino de Moura, na Cândido Lopes esquina com a Ébano Pereira; ou o, um dia, arranha céu “Edifício Moreira Garcez”. Ler sobre essas paisagens urbanas beira o fetiche: Beth e Zulmara nos conduzem pelo Asa, Tijucas, Kwasinski, Santa Júlia e Marumbi, entre outros endereços que em segredo sonhamos circular. Fora os que nem imaginávamos existir – nem elas.
Numa conversa qualquer, ouviram dizer que o Edifício Nossa Senhora da Luz – ao lado da Catedral – abrigou a primeira galeria da cidade, ainda na década de 1940 (hoje são 20 e tantas). Duvidaram, mas foram vencidas. O tal local sumido virou o Pithecanthropus erectus da pesquisa. “A galeria era a maior modernidade possível. Foi um fervo. Essa descoberta só vem a provar que Curitiba estava no mesmo passo de outras cidades do mundo”, festejam. O “complexo de Província de São Paulo”, acusação que ainda nos pesa na cacunda, só lhe fez bem. “Curitiba não tem nada de acanhada. A urbanização aqui seguiu o que está acontecendo em todos os lugares do mundo”, ponderam.
Essa modernidade toda não se deve apenas ao Plano Agache – da década de 1940 –, ao Plano diretor de 1966 ou à criação da Faculdade de Arquitetura da UFPR, na mesma época. “O processo de intervenção se deu de forma contínua. Muitas ações atribuídas ao Agache, por exemplo, estavam sendo construídas antes. Impressiona como esses prédios conciliaram as necessidades do morar e do trabalhar”, pontua Beth. Em alguns momentos, o apetite cosmopolita da cidade sem mar, chega a dar nervoso. Os jornais refletiam a ânsia da população por mudanças urbanísticas. Saudavam os “palacetes de cimento armado” e erguiam bandeiras em nome da higiene e da estética. Ameaçavam motins se uma praça era excluída de um mutirão de melhorias, já na década de 1920. A derrubada dos chamados “casebres” do Centro, para dar lugar a edifícios – com moradia em cima, comércio em baixo – era saudada na primeira metade do século como a viagem do homem à Lua, como a volta de Jesus à Terra. Chega a chocar tamanha ânsia pelo que entendiam por progresso, expresso em demolições e ruas alargadas. Nem o futebol concentrava tamanho frisson. Parece bobagem, mas essas notícias, tão velhas, parecem pelando ainda hoje. Eis o encanto.
Em tempo – Morar nas alturas, acima de tudo, promove um encontro entre os leitores e os moradores do Centro, esses heróis da resistência. São 22 entrevistados e oferecem conversas saborosas o bastante para retirar do livro qualquer ranço acadêmico. Falam com tamanha paixão do bairro que plantam dúvidas sobre a pá de diagnósticos sinistros em torno da região.
“Ouvir as pessoas foi uma condição que a Zulmara impôs para que a gente trabalhasse junto”, pontua a reservada Beth sobre o talento indisfarçável da amiga para a prosa. Fosse juíza, arrancaria sem esforço a confissão de um condenado. Comentam com barulho as histórias ouvidas de personagens como Munira Calluf Salomão – cujo pai, o mítico comerciante Miguel Calluf, dona da loja O Louvre, construiu o Louvre Hotel (mais conhecido como Eduardo VII), na Tiradentes, em 1953. E do carnavalesco e estilista Ney Souzah – morador da Praça Santos Andrade. A precisão com que Ney descreveu a Curitiba que vê – das altos andares onde mora – e a que curtiu adoidado na mocidade, valeu cada pilha de documentos com cheiro de mofo.
É como se Ney fosse um “Dalton Trevisan às avessas”. “O Dalton é uma coruja que só vê a noite. A gente gosta do dia”, resume Zulmara, com trocadilhos, sobre o autor especializado na Curitiba cinzenta, dos personagens sinistros que colocam cacos de vidro no feijão, só de raiva. A propósito, muitos entrevistados formam um cordão com o carnavalesco, sem chance para o Vampiro. Em vez de encherem cestos de reclamações sobre a cidade – maldizendo o lixo, as pichações, os moradores de rua – se esbaldaram em declarar amor a lugares como a Praça Osório, a melhor “Vila Madalena” que poderiam sonhar. O Centro não morre tão cedo – que bom.