José Carlos Fernandes

Curitiba tem um “álbum de retratos”

José Carlos Fernandes
22/10/2017 17:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Perguntaram pra mim se deu samba uma matéria publicada na Gazeta do Povo – não faz muito tempo – sobre o acervo fotográfico dos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná. Sei que pareci curto e grosso ao responder “nenhum”, “nada vezes nada”, “nem fumaça”, algo assim. Verdade. Poucas almas se interessaram pela superlativa coleção de 19 milhões de imagens, a maior do gênero no Sul do país, formada ao longo de cravados 60 anos, em boa parte com a assinatura dos melhores fotógrafos da redondeza. Não cabe numa frase.
Pra não dizer que não falei das flores, recebi mensagem de um leitor ali, de um pesquisador acolá – todos famintos para ter acesso à coleção, o que é muito natural, em se tratando de um banquete. Também com esses tive de ser lacônico como um vendedor do Shopping Crystal: “Não dá”. O acervo está guardado em 2.939 [duas mil novecentos e trinta e nove] caixas de papelão, que empilhadas chegam à altura de um prédio de quatro andares.
Escalá-lo, só com autorizações expressas. O lote está aos cuidados de uma empresa especializada, cuja função, entre outras, é impedir que algum aventureiro se enrabiche por uma imagem rara dos craques Aroldo Fedato ou Evílton Carazzai; um registro da famosa bandida Evinha do Pó; um flagrante sorridente do Richa, o pai; ou nada mais do que um dos manjados retratos do início do verão, quando belas curitibanas eram flagradas na Rua XV, caindo de boca bendita num sorvete de flocos e, por isso, merecedoras da capa da edição.
Tanto esforço é para informar que a coleção é supimpa, mexe com nossos sentidos, ou pelo menos devia. Um acervo de fotos de jornal, permitam, não se assemelha a uma coleção de assépticos cartões postais. Nasce da vida como ela é, logo tem tinta, poeira e, arrisca, meleca. Não há paisagens idealizadas ou parques sem um mísero papel de bala no chão. Em vez disso, corpos ensanguentados, políticos com ares imperiais, tristes papais-noéis na porta das lojas, filas na lotérica e personagens, muitos personagens, para repetir a palavra usada no jargão para designar homens e mulheres cujos depoimentos servem para confirmar a veracidade das notícias.
Em suma, acervos de jornal contam a grande história da humanidade à custa das pequenas histórias do cotidiano, flagradas no exercício insano de captar os movimentos do mundo – do aumento do preço da carne a um ataque na Faixa de Gaza. Simples assim.
Poucas coleções de fotojornalismo chegaram ao futuro com tamanha integridade quanto as do Estadinho, seu apelido, e da Tribuna. Em geral, acervos se perdem – por força das goteiras, das faxineiras desavisadas e da velocidade máxima que move uma redação. Como todo dia nunca é igual, a rapidez das rotinas costuma fazer toneladas de imagens descerem pelo ralo. Esses dois jornais formam uma exceção porque ganharam os cuidados do jornalista-arquivista José Antônio Assis Zerbetto (foto), vulgo Batata. Por quase 30 anos, ele fez quase tudo sempre igual, estivesse a redação ou não em polvorosa ao cobrir chacinas e Atletibas. Com a disciplina de um beneditino, carimbou as imagens no verso, datou-as, identificou o autor, do que tratava a pauta, postou em envelopes e guardou numa fileira de arquivos de ferro, em ordem alfabética. Ao fim de cada expediente, viu que o que fazia era bom.
Na mesa do Batata não podiam faltar canetas vermelhas – apropriadas para suas anotações cirúrgicas. Meses atrás, convidado para visitar o gigantesco acervo – ainda existente por força de seu ofício –, emocionou-se ao ver os escritos que deixou, agora zanzando em caixas grandes e pesadas, alçadas apenas à custa de uma empilhadeira industrial. A visão o colocou em estado de bipolaridade: feliz por saber que milhares de imagens não tinham ido a óbito no triturador de papéis; e muito puto ao sacar que tudo aquilo agora representa despesas, estorvo, um trambolho que só provoca gozo em quem cultiva poeira. Espera estar vivo para ver esse “álbum de fotografias da cidade” disponível de novo. Façamos coro com ele.
Dia desses, em conversa com o historiador Marcelo Sutil, diretor de Patrimônio da Fundação Cultural de Curitiba, e com a antropóloga Márcia Scholz de Andrade Kersten, veio à tona uma verdade inconveniente: o que será das coleções de jornais e de revistas em meio aos impositivos digitais. Dizer que “serão digitalizadas” é uma resposta tão quadrada quanto besta. A revolução informática, como se sabe, pode estar mais para Estado Islâmico do que para a prometida biodiversidade cultural, como propalaram alguns otimistas estabanados, Steven Johnson entre eles.
A internet tem poder para disponibilizar tudo, mas promove um passa-fora no narrador dos sentidos, que no português bem claro é o sujeito com capacidade para dar a letra – o tal do significado, contexto, conexões, consequências. Esses e outros imperativos da razão prática estão prestes a serem alçados à condição de obsessão senil, ou “coisa de velho”, caso dispensem o eufemismo.
A esse respeito, sugiro um texto iluminado do jornalista Álvaro Pereira Júnior. Chama-se “O YouTube matou o passado” e rouba pelo menos três noites de sono. Não muda nada, mas pelo menos chuta a canela de quem toma por “uns coitados os que nasceram numa época em que não havia internet, celular e Netflix”.
Juro pela avó mortinha que não se trata de depressão analógica, mas de peninha, esse sentimento minúsculo que salva uma joaninha do vento. Do jeito que a caravana passa, o que será, sei lá, de uma coleção como a do Diário do Paraná – o jornal dos Diários Associados no estado, entre 1955 e 1983? Quando a gente folheia, baba. Suspeito que a propalada reforma gráfica do Jornal do Brasil – apontada como pioneira – começou mesmo foi na Rua José Loureiro, em CWB, quase na frente do Bar do Luís, com o qual a sede do jornal se confundia. O que se encontra nesse acervo – hoje também mantido pela Gazeta do Povo – não tem no Google, nem no raio que o parta. A contar pela penúria dos investimentos em patrimônio, vai permanecer um saber escondido, à revelia do que tem a dizer sobre essa cidade – e sobre nós, afinal.
Conto um causo para ilustrar as raízes desse medo. Coisa de dois-três anos, em parceria com o jornalista Cristiano Castilho listei nada menos do que 17 acervos curitibanos mantidos em domicílio, à custa de heróis anônimos, também conhecidos como doidos varridos. São uns sujeitos órfãos de investimentos públicos, não raro ameaçados com cabo de vassoura pela própria família, que alega não aguentar mais tanta tranqueira no meio da sala. O recado é explícito – morreu de manhã, de tarde vai tudo para o carrinheiro. História vira bosta todo dia – como profetizou o sábio Moacir Franco.
A tal lista de acervos a perigo inclui gibitecas, bibliotecas, discotecas, videotecas, rios de fotografias, objetos – todos candidatos ao limbo ou a virarem fetiche nos leilões virtuais, comércio que isola peças dos seus conjuntos, condenando-as a virar enxoval de parede. Tragédias consolidadas não faltam – e não serão aqui citadas em respeito às viúvas, filhos, insensíveis ou surtados, não importa. Há finais felizes, a exemplo do acervo Aramis Millarch; o Museu Guido Viaro, mantido pela família; a biblioteca Roberto Campos, sã e salva pela Universidade Positivo. Temos os documentos do Mate Real, resgatados num projeto do historiador Edílson Chaves, do IFPR…
Tomara o acervo Estado/Tribuna encontre parceiros que o livrem da solidão dos fungos. E que o Batata não precise mais chorar a ignorância geral da nação.