José Carlos Fernandes

Dona Ida, a eternidade e mais um dia

José Carlos Fernandes
09/07/2017 19:00
Thumbnail

Artista plástica Ida Hannemann de Campos, decana das pintoras paranaenses, com 93 anos trabahando em seus dois ateliês cheios de quadros. – Foto: Albari Rosa – Arte: Felipe Lima.

O quintal da pintora Ida Hannemann de Campos – no bairro do Bom Retiro – ostenta um pinheiro que faz sombra, digamos, na Vista Alegre. Muitos se espantam ao saber que aquele gigante foi plantado e regado, mudinha, pela dona da casa. Havendo alguma dúvida sobre quantos anos a ilustre senhora tem, basta esticar o pescoço para cima, lembrar das aulas de Biologia e calcular o tempo que uma araucária leva para beijar as alturas: uma eternidade e mais um dia.
Ida soma 95 anos, o bastante para plantar pinheiros, mas pouco perto de tudo que inventou em nada menos do que oito décadas e uns quebrados de vida criativa. Começou guria, aos 10 anos, ruborizando os professores que manjavam menos do que ela. Em 1944, ganhou o primeiro prêmio importante, no Salão Paranaense. A tela laureada, “O bêbado”, nasceu de um tipo que frequentava o armazém de seu pai, na Mateus Leme. Beirava os 40 quando fez a primeira individual. Foi em 1959, na Galeria Cocaco. Apinhou a Rua Ébano Pereira ao reunir 200 das melhores cabeças da cidade – de Sofya Diminski e Nelson Matulevicius. Depois disso, viajou milhagens a perder de vista, é verdade, mas a maior parte de seus “milhões” de horas passou na mesma vizinhança de sempre, da qual é cronista nos pincéis e nos versos que escreve quase em segredo. “Sabe essa mulher na tela? Pois a via descer a rua de segunda a segunda”, comenta.
A artista ocupa com honras o posto de a mais longeva do Paraná. Seria o bastante para que a brindassem com banda de música, faixa cortada pelo prefeito, visita guiada de estudantes e coisa e tal. Mas isso é pura alegoria: há algo mais a dizer sobre essa senhora de fino trato. A exemplo de Goya, que deu de invencionices quando todos juravam que ia se entregar ao catre, Hannemann de Campos sofre da doença do bicho carpinteiro. Nem mesmo a memória – que deu de traí-la – faz com que encerre o expediente. Como a vida tem sempre razão afinal, informa que é boa em lembranças recentes, justo as que lhe importam. Assim segue, distribuindo beijinhos nos ombros.
Quanto aos números de sua produção, são um desafio matemático. Há pouco mais de 15 anos, decidiu catalogar o que havia produzido, para ver o bicho que dava. Àquela altura, somava 148 exposições – 46 delas apenas na década de 1970. Os trabalhos ultrapassavam mil obras. De uns tempos para cá, a filha Heloísa Campos assumiu a contabilidade. Segundo seus registros, apenas no casarão do Bom Retiro a mãe guarda 600 telas, uma cifra que não para de aumentar, lotando pelo menos três cômodos, de cima abaixo. Dos desenhos, mal pode imaginar, tantos são. E os desenhos é que são elas.
Como a matriarca dos Campos é insaciável, não raro, os filhos (José Luiz, Heloísa e Luiz Roberto, todos da longa união com o professor da UFPR André Campos, in memoriam) – buscam as papelarias mais próximas, em busca de socorro e alívio. Precisam entretê-la. Nenhum material lhe causa repulsa. Ela desenha, inclusive, com aquelas canetinhas que sujam as mãos e o nariz da piazada do jardim de infância. Até pouco tempo, levavam-na para as areias de Guaratuba. Quem sabe sossegasse ao sol. Pois nada: uma de suas séries de velhice mais extraordinárias são os surfistas, reduzidos a meia dúzia de traços que lhes dão movimento e graça, como se o Henfil lhe tivesse baixado sem pedir licença.
Se não há folha de papel que lhe escape, também no trabalho a óleo a veterana passa rasteiras e espalha cansaços. Não tem a ver com ser uma “vovó power” – essa bobagem televisiva – mas com intelecto. Não há tema ou técnica que lhe seja estranha. Se fica com fastio dos procedimentos tradicionais, vai com as mãos mesmo. Reparem: quem procurar na obra de dona Ida Hannemann o samba de uma nota só – aquela repetição estilística tática, comum entre os formados no modernismo – há de cair de bunda. Reza a lenda que seu mestre – o pintor italiano Guido Viaro – a teria liberado para fazer o que quisesse. Não podia com tamanha falta de freios. Impressionava-se com o apetite com que a pupila devorava linguagens e desobedecia regras. Os espartilhos e os arreios valiam para todos, menos para ela. Quem a toma por comportada, que aumente o grau dos óculos.
Seja nas paisagens, naturezas-mortas ou retratos, Ida Hannemann se permite colocar elementos estranhos às composições, a exemplo de mandalas e demais esoterismos. Essas inserções soam como uma mensagem cifrada. Reza a lenda que já o fazia, em tempos idos, mas ninguém dava muita pelota. Em miúdos, é como se colasse na tela uma figurinha daquelas do ciclé de bola. Os desavisados podem até achar que uma criança traquina grudou aquele elemento estranho entre uma árvore, um riacho e uma pedra. Mas que nada – a traquina se chama Ida, a própria. Também lhe apetecem as distorções, feitas, não se sabe, por causa dos achaques próprios da idade ou porque o quer.
“Talvez seja a maneira como ela enxerga agora”, arrisca Heloísa, crente que há mistérios em tamanha liberdade formal, vinda de uma mulher de 95 anos, educada nos rigores do cavalete. Explica: há quem veja algo de sobrenatural nas paisagens animistas e tortuosas que Hannemann inventa. Não se espere que diga algo a respeito. É “católica de missa”, como se dizia. Parte da família materna está colada ao desenvolvimento do espiritismo no Paraná, um capítulo e tanto da história local, em vias de ser mais estudado – do ponto de vista sociológico. Deu-se, por ironia, justo no bairro em que a pintora sempre viveu – o Bom Retiro. Talvez faça algum sentido, mas dona Ida parece estar se divertindo demais para se entregar ao arco dessa conversa.
Grosso modo, é como se emulasse Van Gogh e nos desse uma prensa: “E você, o que faz que não está pintando também?” Desenhar surfistas (“é lindo, lindo, lindo”, diz ela, com ênfase juvenil), gente que passa nas ruas, pedras e mais pedras, talvez nada mais seja do que um bônus pela longa existência. Sua única fidelidade é a Viaro, que a teria deixado à solta. Bendita hora. Pois suspeito que nessa hora plantou um pinheiro, deixou-o crescer e foi cuidar da eternidade – e mais um dia. Para isso se chama Ida, afinal.