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José Carlos Fernandes

E a palavra se fez Alice

José Carlos Fernandes
10/11/2023 14:35
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Alice da Silva | Prefeitura Municipal de Colombo

Não perguntem a Alice da Silva, “87 anos e meio”, como gosta de frisar, que profissão ela exerce. É doceira, costureira e lavadeira, enfermeira, parteira, camareira e bilheteira, figurante, benzedeira e, agora, também escritora. Coube a ela o último ato do Festival da Palavra de Curitiba, encerrado dia 1º deste mês, e que movimentou a cidade com autores das melhores cepas. Em meio a um sarau de poesia afro, batuques e rodas, a matriarca lançou a autobiografia Doces memórias. Causou axés, não à toa.
O livro seria um feito por si só – relata os dias de uma anônima da Região Metropolitana, precisamente do Jardim Osasco, em Colombo, onde a autora estreante é um rosto na multidão. Mas ultrapassa a magia das chamadas “vidas em segredo”, tema que encontra entusiastas em tudo que é esquina do planeta. Há quem investigue com paixão este tipo de relato sem frescura, como o pesquisador francês Philippe Lejeune, tarado por diários pessoais. Ou os transforme em teatro, como faz Denise Fraga, atriz do fenômeno de público Eu de você – uma coletânea de relatos de gente comum.
Às falas, Doces memórias foi escrito por uma mulher alfabetizada aos 65 anos, e cujo desejo pelas letras nasceu dentro do Teatro Paiol, na capital paranaense, onde se empregou como ajudante geral, aos 45 anos. Seu primeiro chefe percebeu que a funcionária não sabia ler. Preocupou-se, esboçou um socorro, mas outros gerentes vieram e Alice permaneceu no gargarejo, sem graça, condenada ao papel de uma estranha no ninho da cultura.
O contato com artistas, nas coxias, só lhe aumentava a coceira de aprender – mas... andava sempre às voltas com dinheiro curto e parentes em apuros, nove filhos e mais dois adotados, marido doente e uma dezena de bicos para liquidar o mês. Calou. De resto, até que era divertido tirar fotos com os famosos com os quais trombava no Paiol e nos demais espaços da Fundação Cultural de Curitiba. A atriz Suzana Vieira é uma das que cita. “Como ela está nova, né”? – diz, e se acaba de rir quando ouve que ela sim é que está muito mais enxuta e bonita que a global.
Um dia, decidiu que ia ler e escrever, nem que doesse. Em vez dos livros da escola, jornais velhos lhe serviram de cartilha “para formar palavras”. As letras grandes das manchetes, separadas, embaralhadas e combinadas de novo traduziam o que queria dizer. Dominados os sujeitos, verbos e predicados, deu de olhar para trás e ficar doida para contar como enxergava o mundo. Tinha, afinal, feito e vendido sabão por uns trocados. Costurado vestidos com retalhos. “Achei que os mais novos iam gostar de saber como é que a gente se virava”, explica.
Foi quando começou a rascunhar sua primeira biografia, toda a mão, A história de Alice, abandonada, porque era difícil para diabo exercer o novo ofício, o de leitora e escritora. Doces memórias viria depois, com a ajuda de uma das noras, Melissa Reinehr, e do filho mais novo, o militante negro e editor Kandiero.
A obra nos pega de jeito já na capa. Ali está Alice, num registro antigo, em sépia, com o mistério protocolar dos retratos em três-por-quatro. Uma Monalisa do RG. Na primeira linha, apresenta-se: “Eu sou Alice da Silva...” Quem para de ler é bobo. A autora surpreende ao desviar de uma cilada típica desse tipo de livro – a de nos fazer chorar ou sentir culpa. Pelo contrário, prefere rir e nos levar pela mão, na direção do cotidiano das vidas que ninguém vê.
Cada capítulo tem uma foto de família – as velhas Kodaks trazem a intimidade das mesas postas, com toalha xadrez e garrafas de Coca-Cola, exibidas como um troféu. Ou varais cheios de roupa, cruzando um terreno de chão batido. Os relatos podem ser fantásticos casos da roça – como o da cobra que mama no peito de uma mãe –, mas sempre ditos com a suavidade do vento. “Se fosse hoje em dia, tinha filmado”, avisa, para surpresa dos incrédulos que não acreditam em lobisomem.
Sem cerimônia, somos apresentados às comadres e às crianças, pelo apelido: a Vane Deva, a Nane, a Dila. Os motivos das prosas podem ser um eclipse do sol em 1940; a passagem do circo por Bela Vista do Paraíso, em 1952; a construção da primeira casa dos Silva, nas bandas do Rio Atuba. De uma história “de machucar”, a narradora faz salto triplo – pode tratar de dicas para tirar bolor ou para quarar panos de prato. Sente-se na prosa o odor do alvejante, ouve-se o barulho monótono da camisa sendo esfregada na tábua de lavar roupa. Sobe pelas narinas o cheiro do doce de jaracatiá – mesmo que a gente nunca tenho provado algo igual, como nas melhores ficções.
Serviço: Doces memórias de uma mulher negra da Grande Curitiba, de Alice da Silva (Editora Humaitá – www.humaitaeditora.com.br)