José Carlos Fernandes

Enio, Nicette, Leocádio e a enxaqueca

José Carlos Fernandes
25/03/2018 21:00
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Foto: Alexandre Mazzo / Arte: Felipe Lima

Em meados da década de 1980, um cartaz grande – desses que reinam numa parede – se tornou objeto de desejo entre os jovens paranaenses. Havia quem o traficasse – como se fosse uma pedra de garimpo, um animal exótico. Suspeito que uns espertos o vendiam no câmbio negro. Que luxuriosos ganharam noites de amor com suas namoradas, ao sacá-lo da mochila como um presente. Os dizeres que estampava não tinham fronteira ideológica. Enchiam de fleuma os rebeldes pós-ditadura, ocupados dos problemas agrários; serviam de alento para os cansados de guerra, que assumiam sem vergonha seus sonhos de consumo; serviam de poesia simples a quem era puro grito parado no ar.
O tal cartaz trazia um poema em prosa do escritor e publicitário Jamil Snege – “o meu Paraná eu faço, no cabo de uma enxada, no volante de um caminhão, na escola em construção, no risco de uma estrada…”. Era uma peça sob encomenda para o governo José Richa, mas a moçada deu de ombros. Sem se importar com o tom ufanista da propaganda, adotou-a como um dos símbolos da abertura política, deu-lhe status de manifesto paranista destituído de cacoetes de curitibanice.
Para quem não tivesse um exemplar para chamar de seu, havia o consolo de vê-lo na versão televisiva. Passava no intervalo das novelas e oferecia acréscimos de emoção. Na telinha, o mesmo ator que estampava o cartaz – todo de branco, com as mãos fincadas na Terra Prometida – declamava com pausas perfeitas cada verso de Snege. Foi filmado numa barranca qualquer do Parque Barigui, mas muitos juravam que o cenário era o Eldorado do Norte Pioneiro. Por causa desse sujeito com a boca cheia de versos, muitos bifes foram queimados e camisas arruinadas na mesa de passar. Dentre os que estavam por lá, atire a primeira pedra quem não parou tudo o que estava fazendo, só para vê-lo falar.
O nome dele: Enio José Coimbra de Carvalho, um gaúcho boa pinta que chegou aqui depois de fazer carreira como galã das novelas da Globo, da Excelsior e outras emissoras do eixo Rio-São Paulo. Nenhuma namoradinha do Brasil lhe era estranha. Janete Clair e Ivani Ribeiro; Paulo Goulart e Nicette Bruno, sim, eram próximos. O mesmo se diga de Raul Cortez, Ruth Escobar, Cleide Yáconis, Juca de Oliveira. Podia estar na capa da revista. Nos créditos de Meu primeiro amor, Minha doce namorada, A próxima atração, Meu pedacinho de chão. Mas quiseram os deuses que desembarcasse aqui para encarnar, em minutos, o mito do nosso sertanejo. Enio ganhou cidadania por decreto. Com sua performance, assoprou a ferida dos nossos séculos de complexo de província de São Paulo. “O meu Paraná eu planto, o pedaço que me cabe, seja de noite ou de dia…” Eita nóis.
Hoje, aos 77 anos impronunciáveis, Enio Carvalho encontra pouca gente que ainda se lembra da campanha. Tampouco se recorda do episódio com frequência – exceto pelo fato de achar engraçado que o confundissem com o matuto Othon Bastos, com quem guardava alguma semelhança. Não tem saudade daqueles 15 minutos de fama, pois se tornaram dias e anos. Qual Greta Garbo, saiu da grande cena para reinar nos bastidores do teatro paranaense, cuja história não se escreve sem citá-lo. Nas coxias é conhecido como “professor”, em alusão a suas atividades na antiga Escola de Teatro do Guaíra, assim como em outros centros (UFPR, Femp, FAP…). Ah, e por ser todo abraços aos atores e atrizes locais.
Não lhe pergunte quantas turmas de alunos teve até aqui. Difícil encontrar dentre os grandes – e os pequenos – do palco quem não tenha passado por sua batuta. Ele ameniza. “Nem tanto. O Alexandre Nero passou por mim. Mas o Edson Bueno [com quem fez Caim], por exemplo, não”, pontua, sobre o prestigiado diretor curitibano, de modo a relativizar a devoção que desperta na classe. Sem chance. Professor Enio é reverenciado pelos velhos e amado pelos jovens. Quarenta e cinco anos depois de se instalar em CWB e 30 e cacetadas após estampar uma propaganda de tevê, continua sendo uma espécie de mínimo múltiplo comum da comunidade artística.
Faz pouco, um grupo de atores que mal engordou o currículo lhe pregou uma peça, com perdão pelo trocadilho: batizaram a sala de espetáculo da Faculdade Doutor Leocádio José Correia, a Falec (e de outras instituições, como a Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas), de Teatro Enio Carvalho. Ele – que anda às voltas com os achaques da idade – quase teve um piripaque ao ver seu nome da fachada da casa, na Rua Mateus Leme, 990. Resiliente, pediu apenas que uma outra sala da casa de espetáculos – também a ele dedicada – fosse rebatizada de “Marcelo Marchioro” (com quem fez As Bruxas de Salém), em homenagem ao diretor paranaense morto em 2014. No mesmo local, um palco pequeno e intimista tem o nome de Odelair Rodrigues, que ali se apresentava. Em tempo, o Teatro Enio Carvalho não é só bonito e bem cuidado: também não tem problemas de memória.
Enio só falta levar a cama de dormir para o teatro que agora leva seu nome. No outono de sua vida, acontece-lhe algo espetacular. Em vez de se entregar com volúpia às chinelas e às flanelas, não passa um dia sem carregar um pouco de seu patrimônio para o local. Sua imensa biblioteca de doutor pela ECA/USP está quase toda lá. Também os figurinos, alguns móveis, o que lhe pedirem emprestado ele doa. Entendeu, permitam, que, qual os anciões do filme Lanternas Vermelhas, de Zhang Yimou, ou o velho boêmio de Memórias de minhas putas tristes, de García Márquez, a história do fogo permanece naqueles que ardem. Faz sua parte.
“Ainda tenho uma turma na faculdade – dou aula de economia”, diz, enquanto desce as escadinhas do teatro. Anda às voltas com limitações. A voz lhe sai abafada, mas os olhos que fitam – uma marca pampeira – permanecem fuzilantes. Enio faz discípulos. O ator Bruno Rodrigues, 27 anos, se alista entre os que se apressam não só em ouvi-lo, mas em ajudá-lo nas lidas diárias. É um rapaz graúdo, de sorriso largo, vozeirão de tenor de catedral, premiado no Gralha Azul por encarnar ninguém menos do que o doutor Leocádio José Correia, morto em 1886, mas cujo espírito, creem seus seguidores, opera milagres para além da barreira do tempo.
Bruno pede licença para interromper a conversa. Conta do acaso que foi conhecer o professor. Um dia desceu na Mateus Leme, bateu na porta do teatro. Conversaram, claro, como se fossem amigos de outras vidas. Em comum, a fato de terem ficado órfãos muito cedo – um trauma que os deixou livres para o palco. “Tem muita história”, avisa Carvalho, um ás na arte de conduzir por labirintos.
Impossível não fazer um paralelo entre ele e o personagem Mário Cardoso, protagonista do romance A glória e seu cortejo de horrores, de Fernanda Torres. Ambos passaram pela repressão do regime militar, descobriram no teatro a resistência política, ganharam bons papéis em novela – quase uma ironia brazuca. A diferença é que Enio não acabou seus dias num papel medíocre de um dramalhão bíblico – nem preso. Seu desfecho é uma crônica boa num tempo que tem se mostrado sem sol. Precisamos dela para segurar o rojão.
Um curiosidade. Naquela que talvez tenha sido sua primeira entrevista para a imprensa, nos idos de 1962, Carvalho disse a um repórter que seu sonho era ter um teatro na Rua da Praia, em Porto Alegre. Quis o destino que fosse quase isso. Enio ganhou asas depois da reportagem. Ao chegar ao Rio de Janeiro, no fim dos anos 1960, conheceu Antônio Abujamra e ganhou papel na montagem de As fúrias. A fina estampa o catapulta para os folhetins eletrônicos, nos quais lhe caem bem papeis de bom moço, um Tony Ramos. Um desses personagens se chamava Leocádio, presente do novelista também espírita Walther Negrão. Eis o ponto.
Á época, a competição de egos nos bastidores o deixava em frangalhos – às voltas com enxaquecas que só quem tem sabe o que é. A atriz Nicette Bruno lhe recomendou uma médium que vivia em Curitiba. Era 1973. Enio desembarcou, deu inicio a exercícios mediúnicos e encontrou sua Rua da Praia. “Pura concepção grega do destino”, brinca o mais erudito – e não menos gente boa – da cena curitibana. Ficamos devendo essa pra Nicette, pro doutor Leocádio e pras malditas enxaquecas.