José Carlos Fernandes

Eros na caixinha de Íris

José Carlos Fernandes
26/08/2018 20:00
Thumbnail

Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Difícil contabilizar quantas vezes ouvi a frase “você precisa conhecer a Íris Boff”. A recomendação vem de fontes tais como o performer Hélio Leites, a poeta Adélia Maria Woellner ou o psicólogo Antônio Carlos Moreira, para citar três que só faltaram picotar minhas orelhas. A frase traz implícita uma afirmação: “Não é possível que alguém escreva sobre personagens da cidade e não tenha falado da… Íris Boff”. Pois é. Não tinha recebido esta graça até há uma semana.
Íris é irmã de dois de meus ídolos confessos – os teólogos Leonardo Boff e Clodovis Boff. O primeiro, lido e relido nos tempos em que a Teologia da Libertação fervia nosso sangue. Onde frei Leonardo estivesse, tietávamos. Depois de enfrentar um ruidoso processo de silêncio obsequioso ordenado pelo Vaticano e se secularizar, passei a admirá-lo pela unção com que trata o tema da “hospitalidade” e do “viver junto”. Quanto a frei Clodovis, estive com ele em duas-três ocasiões, no convento da Ordem dos Servos de Maria, no Bairro Alto, em Curitiba. Tudo o que me disseram a seu respeito procede – é profundo e suave como a chuva fina. Soube agora que está no Acre – na paz do silêncio que faz a alegria dos contemplativos. Fico me perguntando se é possível rezar com temperaturas acima de 40 graus.
Devo confessar que há mais de um ano tenho o telefone de Íris pendurado na estante. Das vezes em que tentei ligar, não dei sorte. Tomei por recusa. Explico a dedução. De outra feita, registrei aqui a barra que é entrevistar idosos. Ao contrário do que muitos pensam ao vê-los no papel de vovô power em reportagens de tevê, sentem dores contínuas, amargam decepções irreparáveis, recalcam desejos. Viram pencas de amigos partirem. Falta-lhes dinheiro. Qualquer projeção para “daqui a dez anos” os entristece. Por trás dos edulcorados “seu João” e “dona Maria” – tratamento morno para amestrá-los – estão não raro pessoas com medo do esquecimento. Duplo, se me entendem. Para lidar com esse campo minado, é preciso ter a perícia de uma Ecléa Bosi, autora do genial livro Memória de velhos.
No mais, as informações que me chegavam sobre Íris intimidavam tanto quanto o peso do seu sobrenome. Uma das amigas dela me contou que a ilustre professora – conhecida por ter feito avançar anos-luz o debate sobre educação religiosa ecumênica nas escolas – escreve poesias eróticas. Fake news, julguei. Mas esse é de fato seu hobby pós-aposentadoria, impresso em livros de circulação escassa, como Desejo e Poemas de corpo e alma.
Ao saber da peripécia, a produtora cultural pernambucana Manoela Leão chegou a cogitá-la para participar do Sex Libris – sarau de versos marotos que acontecia em espaços como o Wonka Bar e o Ave Lola. Em se tratando de uma mulher de quase 80 anos, muitos suspeitariam, enfim, ter encontrado a narradora misteriosa do irresistível A casa dos budas ditosos, libelo à luxúria assinado por João Ubaldo Ribeiro. A quem interessar possa, o Sex Libris encerrou suas atividades antes que Íris o pontificasse.
O exotismo em torno da Hilda Hilst dos pinheirais só fez crescer. Alguém me contou que sua originalidade não se resumia à palavra, estendendo-se às artes e ofícios. Em sua casa, por exemplo, copos e xícaras lascados nunca vão para o lixo, mas para os galhos das árvores. Viram enfeite. Essas e outras historietas de realismo fantástico reforçaram o temor de não conseguir enxergar Íris Boff para além dos jujus e balangandãs.
Nos primeiros cinco minutos do nosso encontro, a suspeita parecia se confirmar. Dois cachorros me esperavam na calçada, ambos com os dentes à mostra. Tive de telefonar para ela do outro lado da rua, me pelando. Levei pito: “Empurre o portão e entre. Não vão morder”. Não morderam. “Mas como você demorou”, ouvi da dona da casa em meio a um abraço destinado aos chapas. Nunca saberei se falava da hora marcada ou do longo ensaio que fiz para chegar até ali.
Íris tem cabelos brancos, presos em rabo. Suas roupas são customizadas – na lapela, em vez de broches, dois bonequinhos de tricô que puxam nossos olhos como ímã. Não parece preocupada com moda, mas a combinação anárquica de cores, texturas e estilos a fariam destaque numa dessas coleções largadonas das fashion weeks. Confirmou-se o que dizem sobre o destino que dá aos copos (e também às cascas de ovo). Enfeitam o quintal da frente, no qual parece ser Natal o ano inteiro. “Um dia alguém morre eletrocutado nesse pisca-pisca”, diverte-se a mulher de voz grave, pensamento afiado e sotaque categoria “Contestado”: um mix de Concórdia (Oeste de Santa Catarina, sua terra) com o jeitão de falar nas colônias polonesas da Zona Norte da capital – seu endereço faz uma data.
Enquanto a árvore dos canecos nos faz sentir raiva – de não ter feito o mesmo com todas as louças quebradas da nossa existência –, o quintal dos fundos causa impressão. Íris Boff ergueu ali dois pequenos palcos, que podem ser ocupados tanto por ela quanto pelas roupas do varal. Num declama poesias para os netos, às vezes na companhia do doidivanas Hélio Leites. No outro, menor e mais alto, sobe para observar a Vista Alegre. “Olhe aquele ipê amarelo. Tô namorando as laranjas dos meus vizinhos”, diz, antes de chamar atenção para o galinheiro rente ao muro. “Na minha família, quando as mulheres ganhavam juízo, ganhavam uma sala de aula para trabalhar. Todas fomos professoras. Foi bom parar. É uma delícia ser velho. Todo dia é domingo. Na hora que bem entendo posso vir aqui e falar com meus bichos”. Penso se os cachorros estariam de conversa fiada quando chegasse minha hora de ir embora.
O motivo da entrevista com Íris não foi a granja doméstica, nem os irmãos ilustres. Tampouco a casa que parece infinita – na qual criou sete filhos, todos homens –, povoada de fogão a lenha e de bilhetinhos espirituosos presos às portas. Falamos de Helena Kolody, para reportagem na revista Tinteiro, que a Editora UFPR lança em setembro. É uma história bonita – Íris amou a figura de Helena em segredo, “só de olhar”. Nunca quis ser apresentada, por crer no poder da distância em manter o encanto. “Vêm dela muitas das coisas que escrevi, relacionadas com a nossa natureza, com o rio interno que temos, com a montanha que a gente escala para viver.” Foi inevitável perguntar dos poemas eróticos – e ter a sorte de ouvi-la declamar o que escreveu em alusão a suas bodas de ouro com Brasílio Serbena – uma peça simples, em que o sagrado e o profano dançam coladinhos. “Antes que seja tarde, no altar do teu corpo eu consagro a minha carne. Ó meu amado, nada te nego, graça e pecado eu te entrego. Ó meu amado, amante e amigo, assim te digo: este é meu corpo, maduro e vivido, com você repartido. É céu, é inferno. Toma, bebe, come, para saciar a fome que temos do eterno…”.
Não sabe ao certo quantos “versos atrevidos” escreveu – talvez 70, entre 300 e 400 de sua coleção toda. Ao mostrar alguns deles a Leonardo, o irmão antidogmático, levou um sabão: “Precisa ser tão explícito?”, o que gera uma piada involuntária: por pouco Boff não vira o cardeal Ratzinger de Íris. E bem que ela, sem querer, participou de uma das pelejas eclesiásticas em que Boff se meteu. Quando o patriarca da família morreu, Leonardo estudava na Alemanha. Íris mandou-lhe num envelope a última bituca de cigarro fumada pelo pai. O episódio acabou sendo citado num dos volumes da suma libertária produzida pelo teólogo. Um de seus detratores escreveu algo assim: “Veja em que Leonardo Boff reduziu a Teologia – a uma xepa de cigarro”.
Fosse Íris a silenciada, teria no processo ter ensinado o Pai Nosso no feminino e a versão transecumênica do Credo. Ouviu mais de uma vez a acusação: “Essa mulher é herética. É erótica. É culpada”. Mas, como sugere, nada melhor do que ser uma Boff anônima. Ela entrega o que escreve a quem bem entende – dentro de rolos de papelão, nos quais acomoda versos místicos e eróticos, frases espirituosas e o que mais lhe der na telha. “Eu venho da Idade da Pedra”, define-se, sobre seu jeito descomplicado de ser.
A propósito, chama os rolos de papelão poéticos de “oráculos”. Quem tiver a alegria de receber um vai encontrar o kit paraíso. Nas licenças criativas de Íris se encontram o ético, o estético e o erótico – elogios ao que é bom, belo e desejável. “Eros é a primeira forma de vida. Uma bola de fogo separada por Zeus, formando o igual e o diferente. Não importa a combinação das bolas que se acham. O que vale é estar junto. Eros é a totalidade.” Pornografia? “Ah, isso é outra coisa…”
Prefere falar é de poesia, a qual chama de “caixinha secreta e misteriosa que pode salvar a humanidade”. Fora dela, “o que existe é prosa”. Prefere a caixinha, lugar onde mora. Depois de tudo, tomamos um suco de uva e falamos das galinhas. Estou arrependido de não ter rolado no chão com seus cachorros.