José Carlos Fernandes

Escreva um ensaio em 2018

José Carlos Fernandes
18/02/2018 20:00
Thumbnail

Arte: Felipe Lima

Uma das mais deliciosas lições da filosofia é – por assim dizer – que nossa inteligência funciona como um armário cheio de gavetinhas. Diante de um problema a resolver, de uma equação cotidiana qualquer, as partes do móvel em que depositamos conhecimento tendem a se abrir, com molas automáticas. Duas ou três gavetas acionadas ao mesmo tempo oferecem saberes que se conjugam – em sinapses não raro escalafobéticas –, de modo a formar um discurso possível sobre todo e qualquer assunto. Sem essa engrenagem de gavetas que dançam – qual uma página de Lewis Carroll –, a vida seria um peso, posto que moramos nas palavras.
O tatibitate acima – passível de ser reproduzido para crianças – bebe na fonte de Kant e de Wittgenstein. À revelia de soar uma explicação simples para um treco rocambolesco, importam as consequências deste raciocínio: no meio da pantomima, algumas gavetas se mostram vazias, ou quase, o que explica nossa incompetência supina diante de certos impasses. Outras gavetas estão até a boca. Por motivos que cabe a cada um responder, tendemos a privilegiar um conteúdo a outros. Mais: nossa régua para escolher o que sobra e o que fica para mais tarde é a preguiça.
Barthes dizia que só os preguiçosos aprendem. Que a preguiça é um pressuposto do aprendizado. Em miúdos, tem aquela hora em que a gente diz “não” à tabela periódica porque precisa de muita energia e tempo para dizer “sim” à obra de Clarice Lispector ou à música de Egberto Gismonti. Longe de mim sugerir algum demérito à química. Um dos caras mais sensacionais do século 20, o neurologista britânico Oliver Sacks, era um tarado pela tabela periódica. Enxergava a própria personalidade em mercúrio, o 80. Um dos seus textos-testamento – escritos quando estava batendo na porta da eternidade – pode ser classificado, sobretudo, como um elogio à… tabela periódica. Está publicado num livro chamado Gratidão, seu ensaio em torno do fim da vida.
O contato com a alegoria kantiana sobre a engrenagem do saber – as tais gavetas que se abrem – e a máxima de Wittgenstein de que nosso mundo é do tamanho do nossa linguagem (Rubem Alves comparava essa dinâmica a uma caixa de ferramentas e a uma caixa de brinquedos, às quais recorremos sempre que precisamos dizer algo) permitem fazer perguntas bem divertidas. A elas: “Qual das tuas gavetas está mais cheia de palavras?” Ou – “qual o assunto de tua vida?” A quem preferir – “o que você guarda na sua caixa de ferramentas e na sua caixa de brinquedos?”
Permitam-me contar uma experiência vivida em sala de aula. Nos 15 anos em que trabalhei no curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, ganhava sempre uma turma dos últimos períodos. Era ótimo – em especial a parte da disciplina que previa desenvolver gêneros textuais pouco contemplados no início da faculdade. Poderia ser a crônica, o artigo, o comentário. Ou o ensaio. À época, havia pouca bibliografia a respeito, à revelia, claro, da possibilidade de simplesmente se fartar num texto de Montaigne, com quem tudo começou, ou de Benjamin, autor onipresente no campo da comunicação.
Quanto às provocações a respeito de ensaios – de sobra. Um desses perrengues se deu quando o renomado crítico e ensaísta português Eduardo Lourenço veio ao Brasil. Sua passagem por aqui chamou atenção para a baixa popularidade dos ensaios no mercado editorial do país – realidade que revistas como a Serrote, dedicada ao gênero, se ocuparam de reverter a partir de 2009. Outro marco foi o lançamento, em 2003, de uma deliciosa coletânea assinada pelo sociólogo Otávio Frias Filho, publisher do jornal Folha de S.Paulo.
Os ensaios de Frias não se assemelhavam aos ensaios escritos por acadêmicos ou por literatos, não raro traições mal humoradas a uma produção de natureza circense. Tinham frescor jornalístico, a começar pelo título: Queda livre – ensaios de risco. Frias escreveu sobre sete pânicos que atazanavam sua biografia – coisas como medo de altura ou de estar num palco de teatro, além do próprio agnosticismo e de uma senhora falta de paciência com exotismos, a exemplo de clubes de swing e comunidades do Santo Daime. Pois enfrentou cada tema, o que resultou numa coletânea em que, sei lá, 150 gavetinhas se abrem ao mesmo tempo, cuspindo mil palavras por minuto. Pulsa ali, ao mesmo tempo agora, a intimidade do autor, a experiência dos outros a quem recorreu, a fortuna crítica que investigou cada um dos assuntos. Ensaios pulsam – daí a energia que tanto transmitem quanto exigem.
Depois de ler um ou dois capítulos de Frias, os alunos se viam incumbidos de identificar qual era o assunto sobre o qual poderiam, digamos, sapatear em cima. Foi sempre uma surpresa. Todos tinham um tema que amaram e cultivaram, à revelia de serem muito jovens. O que permite afirmar que qualquer um pode produzir um ensaio, porque não há quem não tenha forrado uma gavetinha que seja com alguma predileção. Ali está o nosso melhor, acreditem.
É bom lembrar que algumas escolhas quase sempre acabavam mal, das quais ocupava de vaciná-los antes. Dava zika falar do time de futebol do coração, de relacionamentos amorosos fracassados – e ainda em carne viva –, e da banda de música que embalou a adolescência. Nove entre 10 queriam escrever sobre a Legião Urbana. Cinco entre nove não conseguiam dizer nada de relevante. Penso que a proximidade e a paixão em estado bruto não são bons conselheiros do intelecto. Fora isso, orquestrar a produção de ensaios virava uma festa do avesso.
A lista do que resultou dessa aventura daria uma Summa theologica. Alguns exemplos: surgiram pencas de ensaios sobre doenças que os alunos carregavam – e sobre as quais falavam como quem brinca: leucemia, diabetes, déficits de atenção, síndromes que eu nem sequer sabia existirem. Lembro de um ensaio sobre o que acontece no corpo de uma mulher miúda que espera gêmeos. Outro sobre as maravilhas do globo ocular. A autora tinha feito uma odisseia para salvar o namorado da cegueira, depois de um acidente grave. Em meio a suas andanças, encheu a gaveta de informações, que dissecou para entendê-las. Virou uma especialista anônima. Inspirado nesta aluna, perguntei à minha oftalmologista se ela ainda se emocionava com o funcionamento do olho humano. Fez pausa comovida antes de dizer que sim. Ensaios mexem.
Houve quem escrevesse sobre algum aspecto da Segunda Guerra, sobre o cinema de Almodóvar – com acento na atriz Rossy De Palma. Mas também pequenos tratados da história da vida privada: périplos em torno do sutiã ou – um dos mais bacanas – sobre o salto alto. Nunca mais olhei para as reproduções de Olympia, de Manet, sem recordar desse ensaio em torno da sedução e da contravenção feminina. Em todos – dos mais doidos aos mais alegóricos, passando pelos confidenciais – a verdade era sempre a mesma. A gente até pode se perder no colorido do discurso – como quando adota a lógica do fã e do fanático –, mas ao mergulhar num tema, por muito tempo, e com muitas fontes, tendemos a ter muitas palavras na caixa de ferramentas e na caixa de brinquedos. E usá-las.
Para abastecer a proposta, não deu outra, tive de virar um caçador de ensaios, para oferecê-los como matéria-prima. E ensaios que, ao lê-los, os alunos pudessem dizer “ah, isso eu posso fazer”. Da coleção fazem parte quitutes como um excerto da paixão por Carmen Miranda, escrito pelo norte-americano John Updike; uma investigação do britânico Christopher Hitchens sobre a falta de mulheres no humorismo – ou por que diabos ser engraçado é uma qualidade da qual os homens se apoderaram; e um impagável texto de Danuza Leão a propósito do comportamento dos muitos ricos. Esses e outros não ostentam rigor científico, mas cutucam com vara curta os pensadores dos altos coturnos. Essa é a graça.
Toda essa conversa mole é para dizer que uma boa pedida para 2018 é desengavetar o tema de sua vida, pondo-se a escrever sobre ele. Anote a lista numa folha, cole na porta do armário. Não tem censura. Uma das delícias do gênero ensaio é que se trata de uma prática de liberdade, um salto no escuro, tudo isso sem ser uma roleta-russa. Diferente de gêneros mais duros e precisos – como o artigo –, o ensaio busca ser uma conversa inteligente. É um gênero sem-vergonha, nascido da curiosidade, e que permite escrever na primeira pessoa. Pode errar, mas o erro não nasce da ignorância, nasce da ousadia de não andar em linha reta, como ensina o filósofo Pedro Duarte, que manja da questão.
Qualquer um que tenha feito teatro sabe do que se trata. De repente alguém diz – “e se fulano entrar pela janela em vez de pela porta?”, “E se o ator ficar no meio do público em vez de no palco?” O ensaio é uma cascata de “e se?”. Permite ver como é que fica. Algo como mudar os móveis da casa de lugar. Pode ser um esforço perdido, com o saldo de solenes dores nas costas. Pode ser um novo jeito de morar nas palavras.