Gazeta do Povo - Colunistas

Etel Frota conta Joaquim

Gazeta do Povo - Colunistas
13/08/2017 19:00
Thumbnail

Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A paranaense Etel Frota, 65 anos, tem uma forma peculiar de se apresentar. “Sou ex-médica”, diz, às vezes, para surpresa geral da nação. Não, não guarda mágoas da medicina, praticada até se aposentar, como funcionária do Banco do Brasil. Mas aconteceu. Uma soma de recados da vida a fez entender que devia experimentar outra história que não aquela na qual trajava jaleco, estetoscópio e protocolo na mão. Seu plano B? Entregar-se (sem reservas) à poesia e à prosa, à composição musical, ao canto, pois são da sua natureza. O céu não podia mais esperar. Assim tem sido, por mais de uma década, tempo em que se tornou um barulho bom no circuito cultural paranaense.
É um alento cruzar com a ex-doutora na porta de um teatro, num show, no lançamento de um livro – e ela desafia a natureza. Está em todos os lugares, na medida do impossível, de posse do maior de seus dons: o de aumentar à sua volta o Índice de Felicidade Bruta. Etel é uma festa. Mas, verdade seja dita, ainda cumpre plantões. Desde que saiu do armário da saúde pública, acumula feitos, com a pressa e graça do coelho de Alice. Ostenta uma música gravada pelo canário do rei Mônica Salmaso. É parceira habitual de Oswaldo Rios e das meninas do Tao do Trio. Longa lista, que inclui tititis e trançados com Nasi, Bethânia, Zé Rodrix, roteiros de espetáculos – uma lenha. Ainda este ano, perdeu gloriosamente o 28.º Prêmio da Música Brasileira… “para o MPB 4, não é máximo?”, festeja. Quiseram os deuses colocá-la na estiva da criação – e ela não seria nem louca de se entregar à lixa de unha.
Ah, e como fala bem.
Não é possível precisar como era o linguajar de Etel nos tempos das consultas marcadas. Mas se pode dizer que progrediu muito desde que fez a opção preferencial pela arte. Nascida em Cornélio Procópio, Norte Velho, e com raízes mineiras, é dona de um sotaque que parece acarinhar os ouvintes, mesmo quando lhes solta os cachorros, uma de suas habilidades. Os muitos palavrões cabeludos que costuma soletrar – para dar mais ênfase – soam doces de leite. E divertidos, até porque os reinventa: “Carácolis” é um deles. Os demais não serão aqui reproduzidos porque pode haver crianças na sala. “Bicho, o bom de ter chegado a essa altura é que não tenho nenhuma reputação a zelar”, brinca a âncora do programa de rádio Poemoda, na e-Paraná, ativista, agregadora e, agora, autora de um romance histórico – O herói provisório, com lançamento no fim deste mês pela Travessa dos Editores. Tomara ela consiga dormir até lá.
Há 14 anos, Etel conheceu detalhes do chamado “Incidente Cormoran”, ocorrido em 1850, na Ilha do Mel. O episódio tem tinturas épicas de uma tela de Pedro Américo e estranhezas merecedoras de uma novela da Glória Perez. Bipolar assim. A esquadra inglesa Cormoran, que vigiava o litoral brasileiro para fazer valer a lei que proibia o tráfico de escravos, flagra quatro navios negreiros próximos à costa paranaense. Com a ajuda de um prático, os britânicos cruzam a Baía de Paranaguá e tomam de assalto as navegações, ancoradas na cotinga rasa, depois do respectivo delivery dos africanos. O tal do horror. A ação não acaba em flores e vivas à rainha, mas em tiros saídos da Fortaleza, debaixo do comando de um certo capitão Joaquim Ferreira Barboza, um especialista em canhões. Guerra.
Em tese, a esquadra estava autorizada a se aproximar. A ação era protocolar. Mas se instalou ali uma doideira tragicômica. O passa-fora contra os ingleses gerou uma euforia patriótica, uma catarse, um grito de basta à ingerência estrangeira. Joaquim foi dormir um cumpridor de ordens e acordou herói patriota – pelo menos por uns dias, antecipando em um quarto de século o culto às celebridades. Mas não tardou a provar do último degrau da fama, uma “rebordosa diplomática”: viu serem confiscadas as medalhas que conquistou nas Guerras Cisplatinas, conheceu o ostracismo, a doença e a penúria, a desonra, o desamparo na velhice, entre outros dissabores que fizeram dele um perdedor de marca maior. Era justo um drama assim – passional, fatal, contraditório e pastelão – o que interessava a Etel.
Sempre que flanava pela Ilha do Mel – e ela o fazia desde os tempos em que tal passeio não ajudava muito no currículo –, Etel Frota pensava em quantas batalhas teriam sido usados aqueles canhões. Logo descobriu que numa mixaria – apenas duas –, mas uma era o “Incidente Cormoran”, cuja narrativa vinha acompanhada do obscuro Joaquim, uma espécie de cavaleiro da triste figura. Deu de bisbilhotar o pouco que havia disponível sobre o sujeito envolvido num episódio que incluía imperialismo britânico, combate torto à escravidão e solenes pataquadas brazucas. Viu-se tomada de compaixão. Fez de Joaquim um tipo de amigo imaginário, a quem ofereceu o ombro, um século e meio depois. Não fosse ela a médica, teriam lhe receitado uns comprimidinhos.
Em encontros com sua turma – e a turma da Etel é grande e ruidosa –, volta e meia falava do Joaquim que o vento levou, e o fazia com a empolgação de um primeiro amor. Achando que estava de miolo mole, alguns colegas a consolavam com um caridoso “que legal”, “você vai terminar”, “força aí”. Mal sabiam. Pelas costas dos engraçadinhos, Frota gastava tempo, dinheiro, solas de sapato e horas em arquivos empoeirados em busca de pistas. “É o meu Catatau”, resume. Aos poucos, tinha uma-duas caixas de achados, cópias, anotações, o diabo. O grau de obsessão foi tamanho que seria capaz de mergulhar na baía, em busca de uma verdade mínima sobre o biografado. Não chegou a tanto, mas esteve em Cambridge, fuçando, sem perder detalhe. Era como se usasse da perícia que aplicava em laudos médicos para, agora, fazer história. “Sempre quis saber que narrativa havia por trás de cada doença”, confidencia.
Tanto mar, mas tinha de fato pouca matéria prima com o que se contentar – um relato impressionista de Davi Carneiro (de 1950), escritos de Antônio Vieira dos Santos (de 1850), informações vastas e imperfeitas replicadas por vetustos membros de institutos históricos do litoral, aos quais dedicou repetidas rodadas de conversa. De palpite em palpite, chegou à minúscula cidade de Cunha, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, onde Joaquim teria nascido. Depois, se atracou aos batistérios do município de Lorena, no Vale do Paraíba. De cada empreitada, saía abastecida de mais tormentas. E mais tentada a compensar a falta de documentação com doses generosas de imaginação. Para isso deixara a medicina, afinal. “Encontrei registros de uma fazendeira do século 19 cujo nome era dona Alfa, e sua moleca Jerônima. Como não querer que elas fizessem parte da trama?” Pois fez mais. Incluiu no pacote freis, escravas, enfermeiras, poetas – Eulálias, Manuéis e Ignácias –, cujas biografias são fiapos registrados aqui e ali nos arquivos que vasculhou. Joaquim pode ser uma sombra no passado, mas pelo menos não está mais sozinho no barco.
Para se valer de coragem e operar esses rocamboles, Etel leu três vezes Boca do Inferno, de Ana Miranda, um glorioso salto no escuro sobre a vida do poeta barroco Gregório de Mattos Guerra. Passou a colecionar dicas de outros leitores, a respeito de uma pá de romances em que a economia de realidade foi costurada com os préstimos da ficção. É o caso de Máquina de madeira, o soberbo romance histórico do paranaense Miguel Sanches Neto sobre o padre brasileiro Francisco João de Azevedo, que inventou o protótipo da máquina de escrever nos tempos do dom Pedro II. O empurrão definitivo veio quando lhe caiu no colo a reprodução de uma carta que Joaquim escreveu à filha. A voz dele estava ali, eis o homem. O herói provisório começou a sair da casca, já não era sem tempo.
A propósito, Joaquim e Etel não se separam tão cedo. A escritora prepara uma espécie de pós-romance, por ora intitulado Sobre epílogos e provisoriedades. Amarra ali novas descobertas sobre o herói provisório. É que deram de sair das frestas, dos ralos, dos baús de família novas informações. Ela as comenta. Não vai abandoná-lo – fez, afinal, um juramento de médico à cultura. E esse não tem fim.