José Carlos Fernandes

Felicidade é…

José Carlos Fernandes
22/04/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

Admiro uma cena do “muito pirado” filme Melancholia, de Lars Von Trier. Às vésperas das núpcias, um homem entrega a sua noiva a foto de uma macieira. Sugere que – enfim casados – uma árvore como aquela dará a ela a sombra, na qual será feliz. É o que basta para que os astros entrem em coalizão. A jovem de branco (Kirsten Dunst), em vez de mirar com estupor a aliança que mete no dedo, fará de tudo para triturar a festa de casamento. É como se estivesse tomada pelo espírito de porco. Nem a Vani, de Os Normais, nem Romina, a vingativa nubente portenha de Relatos Selvagens, serão páreo para ela.
Qualquer um que tenha mais de 40 anos, lido Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, escutado Joan Baez na vitrola e chorado a miséria na Etiópia há de se identificar com a personagem criada por Lars. Ela é real. Há toda uma geração que cresceu desconfiada da palavra “felicidade”, cuja promessa de bem viver – eternamente – goza da credibilidade de uma Fanta Uva.
Haveria uma maldição implícita no termo, pelo profundo egoísmo que carrega. Por parecer desdenhar a brevidade da vida e as imposições da morte. Por fazer pouco da tristeza de Baudelaire. Por desconsiderar, como sugeria Aldous Huxley, que a felicidade não passa de uma gota de suor depois do exercício físico. Os sábios e os sãos, em resumo, curtem uma fossa.
Não lembro se foi Segundo Galilea, ou outro teólogo da libertação em voga nos anos 1980, quem disse que só poderia ser feliz no dia em que não houvesse nenhuma criança faminta na Terra. A frase tinha um tom de manifesto – manifesto contra a cegueira dos seres saltitantes. Era esse o espírito das coisas. Felicidade? Só nas horinhas de descuido burguês.
Pois também nesse quesito fomos vencidos. As selfies estão aí para comprovar. Ninguém mais precisa gritar “sorria”. Num mundo Uber – promotor de derrotas em série para todas as categorias, dos taxistas aos jornalistas –, a felicidade se impôs como ideia absolutista, ou “ideal dominante”, de acordo com o psicanalista Contardo Calligaris. Mais – instalou-se como tema, onipresente em todas as agendas, as públicas e as privadas. Na última década, poucos assuntos mereceram tantas palestras, filmes e livros. O mundo corporativo a transformou em meta, ao lado da produtividade, passando a planejar equipes felizes. As religiões e movimentos pentecostais a tornaram num slogan preso à garganta, num adesivo à janela do carro.
Nas políticas de governo, o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, ganhou um competidor, o Índice de Felicidade Bruta, o IDF. Quem quer que deseje estatísticas sobre a felicidade não vai passar vontade. Teses sobre o IDF da Colômbia e da Nigéria – às pencas. A curva do “U” se tornou mundialmente aceita: somos mais felizes quando mais jovens e quando mais velhos, mais infelizes entre os 40-50 anos. Quem quer provas, que observe o laboratório de felicidade da cidade de Somerville, perto de Boston, onde, diz-se, há um pão de chapa servido na padaria que deixa todo mundo feliz. Virou uma condição humana. Experimente dizer, numa entrevista de emprego, que “não é lá muito feliz”. Acredita-se que tristeza pega. A felicidade se estabeleceu como dever – um troféu de guerra desfrutado à sombra da macieira.
Taí uma tendência que parece fácil de criticar. Pode-se acusar a felicidade de mercadoria barata, um slogan de loja de departamentos. De estado insuportável de alienação e escapismo. De overdose emocional, sustentada à custa de picos de bipolaridade. De estratégia da indústria farmacêutica para vender Fluoxetinas. De preguiça de encarar a psicanálise. Mas, mesmo com todos os argumentos contrários, e debaixo de todos os perigos contidos no desejo de ser “feliz e mais nada”, como na canção do Roberto, demos de professar a felicidade como o fim de todas as coisas.
O sentimento ganhou, inclusive, ares de ciência. Há quem diga que a felicidade é, em boa parte, uma benesse genética. Alguns a têm sem esforço, como outra personagem de cinema, Poppy (Sally Hawkins, ela mesma, a muda de A forma da água), dona de altíssimo astral no incômodo filme de arte inglês Simplesmente feliz, de Mike Leigh. Outros a podem conquistar, com as armas de uma heroína de novela das seis, merecedora da glória aos 45 minutos do último capítulo. As teorias se multiplicam, pois ser feliz pode ser muita coisa.
Uma das ondas é recorrer aos filósofos. Afinal, há milhares de anos eles se debruçam sobre a questão, com o mesmo afinco com que se ocupam da teoria do conhecimento e da lógica material. De Platão e Aristóteles, passando por Sêneca, Montaigne, Kant, Spinoza, até chegar ao tristonho Nietzsche e ao pacifista Bertrand Russell, raro quem – na pele de um pensador – não tenha dedicado algumas maltraçadas linhas ao assunto. Esmeraram-se em classificações e categorias. Ocuparam-se em nivelá-la por baixo, reduzindo-se a um tolo de estado de contentamento. Ou a elevá-la ao topo da pirâmide das virtudes, no que estão se saindo muito bem. Exemplo? O ensaísta Pascal Bruckner, um bamba.
Há quem diga que falte aos pensadores, em geral, digamos, temperamento apropriado para tratar da questão. O mesmo vale para os religiosos, insatisfeitos – e infelizes – por natureza, sempre com a testa frisada diante do “já-ainda-não” da existência. Quanto à turma da autoajuda, aiai, vive em busca de caminhos curtos e nada mais faz do que receitar a coluna “Chaves da felicidade”, da Seleções do Reader’s Digest. De modo que para tratar da ciência da felicidade surgiu uma categoria nova, uma espécie de intelectual orgânico, 1.001 habilidades e cujo guarda-roupa permite circular nas corporações, institutos de pesquisa e no chão de fábrica.
Apenas nos Estados Unidos existe uma dúzia de pensadores para quem a felicidade se tornou uma palavra-chave no currículo acadêmico e profissional. Jonathan Haidt, Frank Furedi, Richard Schoch, Richard Layard. Nicholas White, Darrin McMahon e Daniel Gilbert – para citar uma parte deles – são capazes de passar horas discorrendo sobre um tema que, não faz tempo, parecia interessar apenas aos fãs de Frank Capra e dos musicais da Metro. O que dizem ajuda a entender que a felicidade pode ser um estado de alma à prova de bala, tanto quando uma alegria passageira, com o tempo de duração de uma propaganda de automóvel. Pode estar nas coisas compradas, mas sobretudo nas dadas, sem nada em troca. Há, por fim, tantas teorias sobre a natureza da felicidade que listá-las equivale a perder o tempo necessário para conquistá-la.
Há um único argumento em que todos os discursos da felicidade parecem coincidir – o de que a felicidade a nós pertence. Durante séculos, a felicidade habitava o campo do acaso. Algo como a sorte de nascer com um nariz bonito. Como ter de se casar com um marido escolhido pelo pai – e o cara ser boa praça e boa pinta. Hoje não mais. A felicidade está em nossas mãos, livre da incidência da chuva sobre a colheita ou da mão pesada da genética. E aí é que são elas – instalada como ética, estética e erótica praticada por nós mesmos, a felicidade virou o brinquedinho novo de Natal: nos alegra, mas é difícil vencer o manual de instruções.
Tamanha dificuldade outra coisa não fez que nos ensinar algo sobre ela. Permanece, por exemplo, a máxima de que dinheiro não traz felicidade – uma ideia escorada na oposição entre o rico deprê e o pobre que leva a vida só no sapatinho. Mas nada que nos impeça de entrar na fila da lotérica do seu Auxílio, na Avenida Marechal Deodoro. Com grana, é melhor. Igualmente difícil discordar que ter amigos, amores, afetos ajuda um bocado. Sabe-se também que é preciso se vacinar contra clichês e trivialidades disfarçadas de vida feliz. Ler Tolstói, enfim. A vida é dançar coladinho, mas também é o tango e a tragédia.