José Carlos Fernandes

“Helena” contra o medo: a escola de Colombo

José Carlos Fernandes
13/10/2018 20:00
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Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Adão Aparecido Xavier, 54 anos, assim chamado em honra de Nossa Senhora Aparecida, é um homem pequeno e discreto. Fala baixo o bastante para que lhe prestemos atenção, mas sempre de modo que possamos escutá-lo. Estar com ele é um convite à conversa – essa grande arte. Mas, cá entre nós, mostra-se tão bom quanto em outra artesania: ouvir. A essa virtude se pode creditar uma boa porcentagem dos seus êxitos. E por seus êxitos se entenda o combate à violência, no cotidiano, ao rés-do-chão, justo onde brotam as agressões de alta escala.
O palco em que Adão atua, há 26 anos, é o Colégio Estadual Helena Kolody, plantado no Jardim Monza, um daqueles redutos da Região Metropolitana que cresceram mais do que deviam – a partir da década de 1970. Olhando de fora, ninguém diz que aquela escola tem algum poder na inibição da criminalidade, esse bicho de sete cabeças que mexe com nossos nervos. Pois não só tem como serve de inspiração a muita gente. Quem entende do riscado cita a “Helena Kolody” como atalho na encruzilhada das estatísticas de criminalidade. Ah, lá não se fala em tiro, porrada e bomba, feito crianças brincando de bangue-bangue – essa barbaridade consentida no pleito de 2018.
As instalações do colégio são franciscanas. A rua que lhe dá acesso não tem asfalto – e não é difícil imaginar o que acontece quando chove. Fundado em 1987 – ainda com o nome pouco inspirado de Colégio Estadual Jardim Monza –, o prédio cobra a conta do tempo nos fios de luz, nos canos, nas janelas. Por esses dias, os pintores passam uma demão de tinta na fachada, mas a lógica dos puxadinhos impera. Tudo informa: está ali uma escola da periferia, para a qual nunca são destinadas as melhores telhas nem os pisos mais adequados. A ligação com a rede de esgoto chegou há pouco, o que fazia da operação limpa-fossa um transtorno sem tamanho. Dispensa descrições. Mas nem o prédio sem atrativos, nem a rua virada num chapéu velho impedem que o estabelecimento de ensino seja um desses espaços sonhados, criados pela educação, à revelia de tiranos que surram educadores e ganham votos insensíveis (a escola tem um memorial em desagravo ao 29 de abril de 2015, aliás).
Difícil dizer ao certo quando foi que a escola de Colombo se tornou, também, uma escola de segurança pública, um território de afeto, uma trincheira contra os discursos de ocasião. Arrisco que foi por volta de 2005, quando um plebiscito de professores – Adão entre eles – decidiu mudar o nome do colégio. A turma da Geografia defendeu que se chamasse “Milton Santos”; a da sociologia optou por “Florestan Fernandes”; a das artes defendia “Poty Lazzarotto”; a da literatura ponderou que bem faria rebatizá-la de “Helena Kolody”, poeta paranaense morta poucos meses antes. A votação trouxe astral de gincana, o que ajudou barbaridade para que o colégio acordasse e se espreguiçasse. Rebatizou-se – como ocorreu com muitas instituições norte-americanas da controvertida era Bloomberg.
“Helena” venceu por mais de 500 votos, o que trouxe algum encanto ao labirinto de 18 salas, que em tempos idos chegavam a abrigar 2,3 mil alunos em três turnos – uma crueldade que os docentes suportaram heroicamente. Hoje, são 1,1 mil. Mesmo com os desconfortos da superpopulação, surgiu à época o alívio de emplastro sabiá, o da poesia. Não é difícil virar um corredor e se deparar com versos escritos nas paredes, tais como “Deus dá a todos uma estrela. Uns fazem da estrela um sol. Outros nem conseguem vê-la”. Foi um refresco. Mas aconteceu que a escola teve de pagar alguns tributos à realidade antes de se aquietar em versos brancos.
Em 2006, um ex-aluno, Alexandre Lima Moraes, foi assassinado a facadas quando voltava da casa da namorada. O crime, em condições nunca esclarecidas, provocou um abalo sísmico na “Helena Kolody”. Podia ter acontecido com qualquer matriculado da noite. Não muitas semanas depois, outro homicídio reforçou uma crença alimentada entre os mestres: não podiam ficar apáticos, como se fosse um assunto da porta para fora. Tinham de bater o pé para conseguir iluminação, patrulha, compromissos dos vizinhos, dos pastores, dos padres, dos comerciantes. Controle da venda de bebidas. “Muitos alunos paravam de estudar”, exalta-se Adão.
A partir dessa virada, a “Helena” se tornou um laboratório de pequenas soluções – a exemplo da boa vontade em mudar de turno um aluno mais vulnerável à violência, da disposição nas canelas para visitá-los em ocupações lindeiras, como a “Anaterra”. Uma lenha. Entendeu-se sobretudo que só havia uma maneira de identificar o medo de cada um: ouvindo o que tinham a dizer, à revelia do tremelique que é abrir a boca depois de sofrer ameaça dos agressores que passam de moto, vomitando palavras de ordem.
Ocorreu que a prática da escuta se converteu em rodas de conversa. Recebeu o nome de Fórum de Combate à Violência. Lá se vão 11 anos. É fato que o fórum não tem mais o vigor inicial, mas não morre nunca. A “Helena Kolody” é o endereço em que falar de violência não é tabu. Os encontros costumam acontecer na sala de apoio. Atraem policiais, delegados, líderes comunitários, pesquisadores. Apesar da gravidade do tema, uma festa. “Promovemos cultura da paz”, diz-se por ali, de modo a manter vivo o termo ecumênico que deixou saudade.
Na última rodada do fórum, Adão – que é diretor da escola –, em parceria com os colegas de ofício, chamou toda a gurizada que teve celular roubado, vítimas de agressão simbólica (sim, as minorias “pastam”), e por aí afora. Vieram mais de 30 – todos botando o medo para correr. Ali, na escola em que estudaram ou que ainda frequentam, sabem que podem abrir a boca. A propósito, uma pesquisa feita pelo estudioso Josafá Moreira da Cunha, do Setor de Educação da UFPR , apontou que 64% de um universo de quase 400 alunos do “Helena” se sentem seguros no espaço escolar, o que é inversamente proporcional à rua: 83% temem se vão chegar em casa numa boa.
O efeito dessa prosa? Ora, o fórum ajuda a entender o mecanismo das agressões – a conspiração formada pelas ruas escuras e sem pavimentação, pelo silêncio dos moradores e indiferença do cidadão comum. Raro, muito raro sair de uma sessão dessas sem uma listinha de ações factíveis, redutoras da violência, ao alcance das mãos. Mais do que isso, a gente reunida, disposta a um pacto de colaboração, diminui o sentimento de impotência diante da criminalidade. Em miúdos, dá uma trabalheira danada, mas não se rende à sedução burra das soluções autoritárias, eivadas de marketing do ódio, cuja eficiência é a do tempo de vida de uma mosca.
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Adão – pai do fórum popular de Colombo – é mineirinho de João Pinheiro. Jovem, entrou para a ordem dos carmelitas calçados. Fez-se frade e veio parar em Curitiba – precisamente a comunidade da então Vila Fanny. Era a década de 1980, aquela que teve de juntar os cacos de 21 anos de ditadura militar. Paralelo à faculdade de Filosofia, atuava junto a crianças e adolescentes do “Beco 8” da favela do Parolin. Pediu aos superiores para se mudar para lá – mas acharam que ele era melhor no restauro de imagens. Fissurado nos escritos do padre Vieira, para quem a omissão é pecado sem perdão, mandou aquele abraço pro gaiteiro.
Sua saga a partir daí é matéria-prima para uma página da literatura. Morava em pensão e batia cartão numa metalúrgica – 12 horas sem parar. Seu propósito: vestir a sandália dos operários, para saber como o apito toca. Conseguiu não deixar a faculdade nem a atuação junto à gurizada do Parolin, assim como a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire. Formado em 1992, ganhou aulas no Jardim Monza. Difícil, hoje, separar a escola da figura do Adão. Tudo misturado – bendito o dia em que os educadores decidiram que a morte de Alexandre Lima Moraes não seria em vão.
Palmas a Santa Helena Kolody – nascida em 12 de outubro de 1912. Ela anda vivíssima da silva num capão empoeirado da velha Colombo, pedaço de mundo onde lei do silêncio não tem vez.