José Carlos Fernandes

Hermeto Pascoal e Breno, o jovem tenor

José Carlos Fernandes
28/01/2018 20:00
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Foto: Arquivo Breno Bortot / Arte: Felipe Lima

O tenor brasiliense Breno Bortot, 27 anos, não tem medo de vento encanado. Conversou com a Gazeta do Povo no hall de um prédio da Avenida Iguaçu – justo onde uma corrente de ar faz a curva, movida a mormaço e minuano. Tampouco a chuva lhe aflige. Sexta-feira passada, saiu sem cerimônias para uma apresentação – no Solar do Barão, Centro de Curitiba – em meio a um pé d’água que não lhe poupava as costas nem os pés. O Uber que o transportou mal fazia ideia do gogó de ouro sentado no banco do passageiro. O moço é mesmo um talento sem afetação, um sujeito a nervos expostos. Impressiona pelo avesso – circula descalço no solene universo da música erudita.
Quem me falou primeiro de Breno foi o jornalista veterano Francisco Camargo. Apesar do parentesco, a isenção é garantida. Quem o conhece sabe. O jovem cantor lírico é seu sobrinho por parte da mulher, Fátima. Soube que o levava, guri, aos jogos do Atlético, nos quais, arrisca, refinou a voz, gritando “ô Furacão”. O time merece crédito no dia em que Breno pisar, sei lá, no Scala de Milão. Que fique dito. Os anos em que o músico viveu na capital paranaense foram decisivos – além de engrossar as fileiras rubro-negras (um rodapé em sua biografia, admite), foi aqui que conheceu Hermeto Pascoal, com quem parte desta história começa.
É divertido e comovente. O pai de Breno, Ivanir – respeitado jornalista da área de economia – encasquetou que iria fazer uma matéria com Hermeto, mesmo não sendo sua praia, ou tampouco sabendo onde diabos publicá-la. Blefou. Aproximou-se, pediu entrevista e num passe de mágica a fera e sua companheira, Aline Morena, estavam sentados no sofá dos Bortot. Foi um encontro marcado. As visitas se tornaram frequentes, Pascoal virou “de casa”, compôs peça em homenagem aos anfitriões. Breno – que bem poderia seguir a tradição da família e ralar nas redações de jornal – achou seu guru a dois passos entre o abajur da sala e a mesa de jantar. Não dá para falar de um sem o outro.
Breno se tornou violonista clássico, com formação na Universidade de Brasília (UnB), sempre com a antena ligada nas dicas de Hermeto. Dele emprestou o tal do relógio interior – é preciso dar tempo aos instrumentos, como numa relação amorosa, como na criação de um filho. A obrigação de ser curioso é outro dos babados. Foi assim que, mesmo não sendo o canto uma paixão confessa, desembarcou em corais do Distrito Federal. Noves fora, virou um desses casos em que a vida escolhe a gente e não a gente que escolhe a vida.
Pouco tempo depois, ingressava no Conservatório Santa Cecília, de Roma, do qual ainda hoje faz parte. É lá que se tranca num gabinete e engata 12 horas de exercícios. Mas até disso fala sem causar impressão. “Faço essas maratonas de vez em quando”, avisa. Abaixo a mitificação e a aura. Diante do cidadão Bortot, esqueça todos os discursos espartanos sobre a arte elaborada, serões, masmorras e amarras estéticas. Não colam. Quer ver? Procure os vídeos dele na internet. Oficialmente, reza na cartilha do tenor lírico espanhol Alfredo Kraus. Mas é melhor dizer que tem a alegria de um Gene Kelly mesclada com a leveza de um Fred Astaire. Pode ter quebrado uma pedreira para chegar no lugar em que chegou, mas tudo lhe soa como respirar.
“Aconteceu”, resume o rapaz de cabelos fartos, branco como uma folha de papel, barba arruivada, risada com eco de catedral e alguns quilinhos de reserva. “Eu era um cantor de banheiro”, resume. Um dia, apontaram-no como uma promessa, como se tivesse nascido marcado por um segredo medieval. Dormiu feliz – acordou com solfejos, talvez com saudades de seus sonhos de AC/DC e Led Zeppelin. Pelo menos é assim que nós, os mortais, imaginamos acontecer com os fadados a graves e agudos que nunca teremos, nem por intercessão da Virgem. A propósito, ele adianta – a quem interessar possa – que talvez não haja relação entre balança e canto lírico, uma vez que o que conta mesmo é dominar o diafragma. Explica como se falasse de encher balões em festa de criança. Dá mostras com malabarismos vocais capazes de rachar as vidraças. Parece moleza “abrir as costelas para projetar o ar num canto não muscular”.
Aliás, tudo soa simples para Breno: tomar vento, chuva, seguir carreira erudita e disputar espaço – nada menos do que na Itália – com alguns dos melhores timbres do planeta. Inútil arrancar dele alguma, digamos, fofoca sobre faniquitos e estrelismos dos candidatos a Pavarotti e a Maria Callas, com os quais convive lá na Bota. Parece não enxergar no horizonte nenhuma divindade à beira de um ataque de nervos. Prefere dizer que se descobriu tenor – e dos bons – e que precisava fazer alguma coisa com essa informação. Como o papel que lhe cabe é cantar, pôs-se a fazê-lo. Assim tem sido – “a pessoa é para o que nasce”, como repete o sertanejo.
É curioso vê-lo explorar a agenda de 2018. Fala com a mesma naturalidade das apresentações marcadas para o interior da Holanda e das feitas em Pato Branco, no sudoeste paranaense, onde vive sua família. Foi dia 21 de dezembro. Também esteve na Capela Santa Maria, em CWB. A tentação é chamá-lo de “o tenor de Pato Branco”, num impulso civilizatório para envernizar a popularidade da personagem Bozena, criada por Miguel Falabella para o humorístico Toma lá, dá cá. Ou de Alexandre Pato. Mas tudo indica que “Breno Pato” não cola.
Mais – discorre sobre a admiração por Puccini e Villa-Lobos no mesmo pacote em que trata de aproximações com o repertório caipira e de rock and roll, seara na qual se formou, em especial nos tempos passados no celeiro das bandas de garagem, Brasília. É tão alma de roqueiro (no sentido Rita Lee do termo) que empresta seus trinados aos gêneros mais diversos – o que inclui algum hit de Milionário e José Rico, gauchescas e quetais. A dedução é clara e elegante: tem erudito pra todo mundo, em qualquer canto de qualquer lugar. A propósito, Breno segue planeta Terra afora. Pelas regras que regem o estranho território dos tenores, barítonos e baixos, deve enfrentar mudanças na voz por volta dos 30 anos – e aí é que são elas. Um dia de cada vez – um em Pato Branco, inclusive.
O encontro com Breno Bortot é uma espécie de passaporte para 2018. Faz lembrar um texto inspirado da atriz e escritora Fernanda Torres. Diz se sentir a “velhinha da van” – vendo acabar o mundo em que vivia. No lugar de jornais, blogs ansiosos; o imperativo dos algoritmos; robôs substituem o querido latão de Perdidos no Espaço. Mesmo com tudo contra, como frisa Torres, um piá que puxou conversa com Hermeto Pascoal resolveu não ter pressa. Entrega-se lânguido a um instrumento e se deixa ao sabor dos ventos e tempestades. Dá gosto – Breno, e devem existir uns tantos outros iluminados, caminha na contramão do chamado “novo individualismo”, essa tiririca do inferno.
Por “novo individualismo” se pode entender o que define o sociólogo britânico Anthony Elliott: trata-se de se reinventar de forma idiota, para satisfazer as lógicas empresariais cada vez mais neuróticas. Ora, comportar-se como um kit de montar é se violentar, pondo o pé na própria garganta, de modo a acertar o passo com uma sociedade startup. Como se fosse possível atender a toda a fome da tecnologia sem se converter num monstro magro, sorridente, plastificado, munido de frases feitas sobre… resultados. Do pouco que entendi a respeito de usar o diafragma para cantar, posso deduzir que nada tem a ver com ações hedonistas de curto prazo, com as empreitadas breves, intensas e descartáveis. Boa notícia.
Mas, longe de mim aproveitar a alegria de Breno Bortot para desfiar um rosário de lamúrias ao narcisismo contemporâneo. Festa. No meio de tudo, alguém solta a voz, sem se render às pressões esquizofrênicas da nova ordem, essa ordem que se nutre de meter medo de a gente não servir para mais nada. Tortura. O moço entendeu que é preciso ouvir e respirar para poder dizer. Deve ter sido isso que Hermeto contou um dia ao menino.