Perfil

José Carlos Fernandes

Íris Khoeler Bigarella: uma mulher no fim do arco-íris

José Carlos Fernandes
30/09/2022 17:43
Thumbnail

Íris Khoeler Bigarella, autora do livro Chegando feliz aos 100 anos – a história de uma apaixonante jornada | Maryane Vioto da Silva/ Gazeta do Povo

“Procuro gente da minha idade para conversar, mas nunca encontro”, brinca a curitibana Íris Khoeler Bigarella, dona de impronunciáveis 99 anos, completados neste mês de agosto. A data - que abre o centenário da escritora, iogue e artista plásticas, entre outros atributos - foi comemorada à moda de dona Íris. Ela caprichou no figurino - uma de suas marcas - reuniu os filhos e netos. E lançou um livro.
Chegando feliz aos 100 anos - a história de uma apaixonante jornada (Editora Chiado) reúne  episódios da vida ocorridos em meio a “vastas emoções e pensamentos imperfeitos”. São fatos recolhidos a esmo, sem a pretensão de ser uma autobiografia convencional. Foram dois tratamentos editoriais. A primeira versão da veterana para a obra lhe pareceu muito didática - como se estivesse ensinando outras pessoas a chegar na boca do túnel do tempo. “Ficou chato”, diz, aos risos. Descartou tudo e começou de novo, falando de si como se estivesse começando uma amizade com o leitor. “Quero atingir meus semelhantes de uma forma amorosa”, resume.
É a especialidade dela. Treino de um século.
**
A primeira vez que ouvi falar de Íris Bigarella foi por intermédio do artista plástico Edílson Viriato. Nos anos 1990, sabia-se que em seu concorrido ateliê de arte contemporâneo havia uns tantos jovens, dispostos a aprender com o enfant terrible da arte paranaense. Mas também tinha entre seus aprendizes pessoas mais vividas, em busca de expressão para além das amarras acadêmicas. Em entrevista, Viriato citou que entre suas alunas estava Íris, apresentada com um pedigree que até hoje a acompanha: “... a mulher do cientista João José Bigarella”.
Estar com o geólogo João José Bigarella (1923-2016) era, de fato, estar com Íris que, à revelia da beleza e da elegância, sempre esteve longe da função de acompanhante do marido famoso. E famoso para além das fronteiras brasileiras. Exemplo? Qualquer panfleto ou registro tosco que seja, sobre a luta para impedir os avanços da Estrada do Colono, Parque Nacional do Iguaçu adentro, vão trazer o nome “dos” Bigarella, unidos na luta ambiental, militantes sem medo de chuva, sol ou cara feia.
De modo que construir o perfil de Bigarella, reportagem a reportagem - pois ele assim o mereceu - era não só estar ao lado de Íris como enxergá-la devagarinho, sem arrombos, como cabe às estrelas que exigem de nós olhos treinados.
Permitam-me uma inconfidência, tive uma história curiosa com Íris Bigarella. Desejava conhecê-la, desde os elogios que Edílson Viriato lhe rasgou. A curiosidade aumentava ao vê-la do lado do esposo cientista, nos momentos em que ele pontificava. Até que um dia qualquer de 2002-2003, chega à redação da Gazeta do Povo um envelope - daqueles com timbre verde e amarelo - trazendo uma carta de Íris endereçada ao cronosta Jamil Snege. Toda a correspondência endereçada ao autor de Como eu se fiz por si mesmo e Viver é prejudicial à saúde era colocada numa pasta e enviada à casa dele. Mas Jamil andava doente, às voltas com o câncer que o levou. A carta não lhe foi entregue e descansou em paz na minha gaveta por uns bons cinco anos.
Até que decidi entregar pessoalmente a mensagem - como se houvesse uma trilha sonora interpretada por Isaurinha Garcia -, na pretensão de que essa pequena história rendesse uma crônica. O papel de carteiro tardio e atrapalhado, que devolve a uma carta ao remetende porque o destinatário “mudou de endereço”, até que funcionou. íris topou a brincadeira, mas para minha frustração não abriu o envelope na minha frente. Mal se lembrava de ter enviado a mensagem, quanto mais de seu conteúdo. E nos pusemos a conversar de assuntos que ela escolheu. Não me perguntem o por quê, mas achei que Clarice Lispector e Íris Bigarella eram parecidas - e eu queria a ferro e a fogo falar dessa minha suspeita para os leitores.
No encontro, Íris Bigarella se mostrou o que sua figura prometia - uma espécie de esfinge a ser decifrada. Dona de um imenso conhecimento enciclopédico, fluente em alemão e em inglês, viajada por tudo que é canto, versada em saberes  orientais, culturas alternativas, uma equilibrista que circulava por filosofias que exigiam envolvimento e disposição para a vertigem. Sem se colocar no centro da cena, lembro de ouvi-la falar como uma menina de colégio sobre sua experiência de estudar no instituto criado por Jung - sua paixão confessa - na cidade de Zurique, Suíça. Entre um trago e outro na sua inteligência, mostrava seus quadros, donos de pinceladas largas, movimento e mistérios, construídos sem a intenção de mostrar nada em específico, mas tudo, em síntese. É uma arte de pura expressão. Sugiro que alguém a grave falando dessas pinturas.
“Eu consegui uma coisa muito feliz: expressar na pintura todas as indações do inconsciente. Eu pinto emoções. Algumas assustadoras”, avisa.
Quando da morte do cientista, apresentei a jornalista Marleth Silva para a família Bigarella. Pôs-se a recolher depoimentos da família, até que acabou por acontecer o que eu esperava: tornaram-se grandes parceiras de prosa e verso. Dsde então, recebo notícias da eterna Íris por meio de minha amiga, o que é uma experiência de relato e  tanto. Comprovo que não vi nem meia dúzia dessa mulher, e que ela são muitas, que só podem ser conhecidas devagar. Eis a regra.
**
“Não posso dar três entrevistas num dia”, avisou-me por email, em meio aos festejos dos 99 anos e do lançamento de seu livro. Encontro marcado, deu-se tudo da forma esperada - ou seja, uma ilha de inesperados. Bati em portas erradas, fiquei preso em elevadores e uma vez achado o apartamento e o andar, sua cuidadora me tomou por um assaltante que invadiu o condomínio. “Quer chá”, me ofereceu a anfitriã, alheia aos atropelos. “Devagar rapaz”, alertou logo de início, diante da velocidade das perguntas. Íris não é parceira para doidos e desesperados que se perdem em prazos, pois seu ritmo é espiritual. Lamenta tanta pressa à sua volta.
Respirações feitas, falou do inevitável - a experiência de chegar perto dos 100 anos. Sabe que é um ponto fora da curva, mas acredita que seu conhecimento sobre saúde mental e alimentar ajudaram um bocado. Some-se seu contato com o que chama de pessoas xamânicas. Mas isso, qualquer site pode ensinar. O que só ela sabe é dos salões em que sua alma dançou, muitas vezes ao mesmo tempo em que Bigarella, o marido, ea reverenciado nos bastidores da comunidade científica. Ela confessa que viveu, mas não lhe torrem a paciência perguntando sobre anos inesquecíveis e fatos históricos que presenciou. A vida, com perdão ao clichê, habita outro lugar - e é lá que ela gosta de estar. E não sem fazer uma meditação antes. “Eu queria mostrar através de um livro que envelhecer não é motivo para a gente se assustar. Quando a gente fica velho, a gente tem mais tempo para transcender as limitações do corpo físico”.
**
“Dona Íris está em horário de meditação”, avisa a cuidadora, num dos contatos preliminares. Também não lhe falta a ioga. “Sabia que não sinto dores, como os outros velhos?”. A conversa corre solta. Olho para Íris e acho que é parecida com a atriz Ingrid Bergman - famosa por Casablanca, pelo escândalo do casamento com Roberto Rosselini, mas também por ter sido uma das primeiras atrizes a elogiar as próprias rugas. Mas ela prefere falar de sua última paixão, o filósofo francês Luc Ferry. E se mostra interessada em ler Meus desacontecimentos, da jornalista Eliane Brum, de quem lhe falo. Ama o neologismo “desacontecimentos”, e reforça que a curiosidade nunca a abandona. Talvez seja esse o segredo da esfinge.