José Carlos Fernandes

Jairo, o paranaense chamado Maysa

José Carlos Fernandes
11/02/2018 20:01
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Nos tempos de criança, em União da Vitória – no heroico sudeste paranaense –, o aposentado Jairo Ramos enfrentou uma provação reservada aos fortes. No dia 24 de cada mês – com o consentimento dos professores –, os colegas de classe lhe cantavam um efusivo “Parabéns a você”. Era um festim diabólico. Doía. Jairo chegava em casa e dizia à mãe, Davina, que queria ir para bem longe daquela gente. Não raro, levava uma sova. Até que ganhou malas prontas para Curitiba. Do resto, ele mesmo se encarregou.
Ao longo de mais de 20 anos, viveu nos lugares que bem entendeu. Da capital – onde estagiou nos salões de beleza da alta sociedade e debutou nos bailes da Sociedade Operária – saltou para o Rio de Janeiro, depois de uma fracassada incursão pelo Exército. Dali, para Johannesburgo, Lisboa, Barcelona, Paris, Berlim, Roma, Zurique… A lista é longa e serve de passaporte para se aventurar pela biografia do menino que disse não à crueldade se fazendo viajante – inclusive de si mesmo.
A experiência de Jairo com a fronteira começou cedo. Nascido em União da Vitória, Paraná, foi registrado em Porto União, Santa Catarina. Não era a única informação da carteira de identidade com a qual não se sentia à vontade. “Meu guarda-roupa é dividido ao meio – metade para as peças de homem, metade para as de mulher”. As masculinas são de Jairo Ramos, um sujeito múltiplo que se fez profissional de turismo, coiffeur, ator amador, promoter, relações públicas. As femininas pertencem a Maysa Kauffman, seu alter ego.
Maysa é barroca, romântica e dramática sempre alguns tons acima do normal. Sua versão de Meu mundo caiu faz jus à original, eternizada pelo ídolo Maysa Monjardim Matarazzo. A Maysa de Jairo nasceu assim que ele desembarcou em Barcelona, num dia qualquer de meados da década de 1970. Lançou ali mais uma proeza de seu currículo, o de transformista, como se dizia nos tempos da Bibi Ferreira. Também aceita ser chamado de drag queen. Para alguns, é uma travesti de horas vagas, o que não lhe tira o posto de divina diva, ao lado Brigitte de Búzios, Fujica de Holliday ou Jane di Castro. Aos fatos.
Na adolescência, Jairo foi pressionado a seguir a carreira do pai, Pedro, um militar. Quem sabe os coturnos e os rigores da caserna lhe concedessem as benesses da grossura. Bem que tentou. Serviu em Deodoro, no Rio de Janeiro, estudou em Agulhas Negras, arrumou um namorado e iniciou sua campanha de guerra. Conquistaria nações, no que foi bem sucedido. Por sugestão de um amigo, mudou-se para a África do Sul e se empregou no salão de um bairro judeu. Mas havia o apartheid. E uma notícia que lhe buzinou nos ouvidos: soube que a travesti Rogéria fazia uma série de shows no país vizinho, Moçambique. Jairo, que a havia conhecido em Curitiba, num basfond da boate Jane 2, na Praça Osório, entendeu que aquela coincidência era uma senha do destino. Começou ali uma caçada inglória, pelas estradas de ferro, pelos mares e pelos ares.
Primeiro encarou 550 quilômetros de trem até Maputo. Rogéria não estava mais lá. Tinha se mandado para Barcelona, com contrato na Gambino’s. Jairo embarcou num navio até Portugal, e de lá para a Espanha. De novo, Rogéria não estava mais lá: tinha se mandado para o Carrousel de Paris. Foi quando o paranaense ganhou sua primeira peruca, com a qual deu à luz Maysa Kauffman. Os espanhóis gostavam de vê-lo cantar Ne me quitte pas, Ouça e Bronzes e cristais. Também os franceses, italianos e alemães, que aplaudiam as canções cheias de bossa e de fossa. “Meus amigos me entupiam de vodca para ajudar a fazer descer a Maysa”, conta, sobre os episódios que ambiciona registrar em livro.
Matéria-prima, de sobra. Além das fotos e da memória, Jairo/Maysa tem as notas que enviava para a imprensa brasileira. Saíam publicadas nos jornais O Globo e Última Hora. Na revista Amiga. Também o Cruzeiro e a Manchete o prestigiaram. Chegou a ser correspondente da coluna social de Dino Almeida, jornalista que fez história na Gazeta do Povo, e do também homem de imprensa Nelson Faria, um dos papas da editora Grafipar e suas 50 revistinhas eróticas. Dino – que não cansava de citar o quão longe tinha chegado aquele jovem de União da Vitória/Porto União – publicava suas notícias sobre moda e o jet set internacional. Não eram bons tempos. Eram ótimos.
Os shows e os frilas, claro, não pagavam o pão e o pancake de cada dia. De manhã e de tarde, Jairo recorria à parte mais sóbria do seu guarda-roupa e ralava no setor hoteleiro. Como se comunica em espanhol, francês e italiano, não lhe faltava serviço, inclusive em portentos como o Hotel Ambassador, na Suíça. À noite, livre dos coletes janotinhas e dos sapatos engraxados, entregava-se ao salto 15 e à dor de cotovelo. Sempre havia um amor impossível a chorar, o que ajudava na performance. Àquela altura, Maysa era pouco: encarnava também a hispânica Carmen Sevilla, a francesa Mireille Mathieu e arrancava aplausos febris ao dublar o hit This is my life, da galesa Shirley Bassey. “É a música da minha vida”.
E assim se passaram dez anos. O exílio europeu só não durou mais porque dona Davina, a mãe, ficou doente. A casa de Jairo passou a atender pelo nome de Rio de Janeiro, onde fez carreira nos salões do Hotel Nacional, no Rio Palace, desenvolveu atividades na Regine’s, deu uma mãozinha nos shows de Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona e até ajudou numa recepção ao presidente Jimmy Carter. Ah, bateu ponto no teatro da Galeria Alaska. Vez ou outra, Jairo cedia passagem a Maysa Kauffman. É da sua natureza.
Certa ocasião, a produção do festejado programa de tevê Documento Especial decidiu reportar a jornada dupla de Jairo/Maysa. Filmaram-no nas lides com os clientes do hotel – cabelo impecável, polidez europeia. E no fumacê dos inferninhos, com peruca e boá, cantando perfídias. Foi um forrobodó. No Bairro Alto – onde os Ramos moram até hoje –, uma tia entrou em parafuso. “O Jairo virou travesti. Eu vi na tevê”, informou, ao bater de porta em porta dos parentes. Foi preciso um primo mais esclarecido informar que “aquilo era só de noite”, “que durante o dia Jairo voltava ao normal”.
Não se sabe se refrescou os ânimos. O que se sabe é que, depois da cancha da reportagem, Maysa teve de comprar uma agenda, tantos convites. E que Jairo arrumou um bico. Para além dos balcões dos cinco-estrelas onde trabalhava, entrou para o elenco e apoio da Rede Globo. O álbum de recortes e fotografias que carrega feito um tesouro não deixa mentir. Em Quatro por quatro, sucesso de Carlos Lombardi, contracenava com Letícia Spiller, a Babalu. Em Vale tudo, marco da dramaturgia brasileira, faz um amigo qualquer do trambiqueiro interpretado por Carlos Alberto Riccelli. A ocasião lhe rendeu fotos com Regina Duarte e Adriano Reis.
As participações se estenderam a Bebê a bordo e Que rei sou eu, à minissérie A-e-i-o-Urca, entre outras passagens que só engordaram o álbum de Jairo. É uma delícia folhear: ostenta fotos dele com Cláudia Raia, Renata Sorrah, Beth Faria… A experiência concorreu para acirrar uma de suas manias confessas – tirar retratos, seja com uma celebridades do quilate da norte-americana Esther Williams, ou a espanhola Sarita Montiel – com quem cruzou no Velho Mundo e numa piscina carioca, a bordo de um charuto cubano. Ou um mortal qualquer. O menino que sofria humilhações todo dia 24 não cansa de dar o troco.
Quanto aos amores, nada que causasse inveja a Elizabeth Taylor. Foram ao todo três relacionamentos duradouros, e um affair em Paris, todos úteis para cantar Ne me quitte pas com as entranhas. A propósito, Jairo anuncia que vai mandar Maysa para um museu de cera imaginário. Prepara para 2018 seus dois últimos shows – em Curitiba e no Rio de Janeiro, cidades que lhe abriram as portas do armário. Depois disso, só em figurações de luxo. Já reduziu o número de vestidos – guarda não mais de 30 peças. Da personagem que lhe deu asas devem sobrar dois anéis que soltam chispas em seu dedo, o salto 7 e um pouco de base para disfarçar as marcas da idade: completou 60 anos na última quarta-feira. Estava cercado de amigos. Emocionou-se ao ouvir a turma cantar “Parabéns pra você”.
PS: Neste sábado de carnaval, Maysa Kauffman é homenageada do bloco carnavalesco Fogosa. A iniciativa é dos ativistas Igo Martini e Márcio Marins, ambos ocupados de registrar a resistência artística de Jairo Ramos.