José Carlos Fernandes

Kenni Rogers, guarde este nome

José Carlos Fernandes
08/10/2017 21:00
Thumbnail

Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

De uns tempos para cá, o ativista cultural Kenni Rogers Closs, 32 anos, não sabe o que é tocar viola de papo pro ar. Ultrapassa 16 horas na estiva. Travesseiros? Uma abstração. Noite dessas, ao chegar a casa, nas imediações da Praça Rui Barbosa, fraquejou: enquanto cozinhava um ovo, entregou-se à volúpia de uma cadeira. Dormiu tão profundo que precisou ser socorrido por um vizinho – intrigado com os sinais de fumaça que saíam pela janela, como naqueles filmes de faroeste. “Minha janta virou carvão”, brinca. Passa bem. Permanece ocupado.
O jovem Kenni é idealizador da 1.ª Mostra Literatura Paraná – um evento que meio mundo sonhou fazer, mas não acreditava que fosse possível. Acaba de acabar. Ano que vem tem mais. Ao longo de um mês, levou para quatro pontos da periferia de Curitiba – Jardim Gabineto (CIC), Vila Icaraí (Uberaba), Butiatuvinha e Pilarzinho – os escritores Miguel Sanches Neto, Luci Collin e Luís Henrique Pellanda. Acostumados aos holofotes dos eventos literários que pipocam pelo país, os três paranaenses encontraram cadeiras de plástico – dessas usadas nos churrascos de quintal – colocadas em círculo, dentro de modestas associações de moradores, onde a telha de Eternit é o limite. Em roda, toda ouvidos, uma gente mais dada a prosear com funcionários da Cohab do que com contistas e poetas, em tese alheios a ônibus que atrasam ou à alta do preço da vina.
Final feliz. Não é nada, não é nada, e 2 mil pessoas dos arrabaldes foram atingidas pela palavra. De acordo com relatos, teve quem abriu mão do templo, do bar, da novela e do tanque cheio de roupa suja para estar na companhia dos profissionais da pena. Gostaram sobretudo de fazer perguntas àqueles adoráveis estranhos: “Onde vão parar as meias?”, questionou um senhorzinho a Sanches Neto. Referia-se ao mistério dos pés de meia que somem, como que por obra do Saci Pererê. Cá entre nós, deve ter sido um alívio falar de feitiçarias domésticas em vez de repetir discursos enfadonhos sobre processos criativos e autores que mais influenciaram.
Kenni e sua equipe de produção (Giuliano Bilek, Robson Reginato e Beth Capponi) reservaram a seus convidados mais do que um contato com não leitores. Garantiu-lhes uma experiência. Exemplo: integra o projeto convocar a rapaziada das vilas para fazer grafitagem e estêncil tamanho gigante, com fotos dos autores, de corpo inteiro. Bonito. Sanches, Collin e Pellanda viraram outdoors suburbanos, estrelas de propaganda de literatura em lugares em que a literatura tem menos crase, menos vírgula, mas também é desejada.
Impressiona. Pellanda virou imagem num tapume do Butiatuvinha. A arte vem acompanhada da reprodução do título de um de seus livros de crônicas – Nós passaremos em branco. Para os leitores em geral, a frase soa como um misto de angústia e desabafo. Ah, o anonimato, essa tormenta do século 21… Resta saber o que significa “nós passaremos em branco” na cabeça de quem mora longe, ganha pouco, mas é pouco sensível a fricotes pequeno-burgueses.
Como se diz nos meios acadêmicos, Kenni Rogers promove um deslocamento da cultura do centro para a periferia. A ação teve efeito instantâneo, pelo menos para uma parcela específica do público. Basta fuçar na internet para saber do barulho que o ativista fez junto aos mais jovens. Estão em toda parte – nas palestras, carregando cadeiras, sentados no chão durante ruidosas sessões de leitura, algumas conduzidas com megafones. Difícil saber quem é ajudante, quem é participante, quem estava de bituca e entrou no rolê. Não tem receita, é tudo no tranco. A cada empreitada, a ordem é sentir o clima e ganhar adeptos para uma atividade que costuma ser tachada de chata e, pior, sem serventia.
O ativista não sabe ao certo quando, onde e como desenvolveu tamanho know how para a comunicação popular. Mas tem hipóteses. De origem alemã – língua na qual é graduado –, nascido num lar luterano da próspera Marechal Cândido Rondon, na Costa Oeste do estado, Kenni se tornou, à revelia, um piá sem filtro. “Vivia solto na rua.” Além do mais, era espoleta. Tinha 7 anos quando conheceu o teatro de uma vez por todas; 14 ao entrar para uma pequena companhia, ainda em Rondon, o que lhe garantiu cedo o direito de chegar tarde dos ensaios e cuidar do próprio nariz.
Só lhe faltava inventar de cursar Artes Cênicas, o que de fato ocorreu. “A pessoa é para o que nasce”, como no ditado. Em Curitiba, estudou na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), deixou os cabelos, as barbas [ruivíssimas] e as ideias crescerem. Formou seu primeiro séquito de admiradores – entre eles a diretora do Sesc Celise Niero, uma das responsáveis em catapultá-lo para a leitura, até então colocada na conta da preguiça. Além de lhe apresentar bons autores, Celise lhe mostrou com quantas armas se conquista alguém para as letras. Manda-lhe gratidão.
Até que aconteceu. Numa das andanças como agente do Sesc, conheceu a obra do catarina-paranaense Manoel Carlos Karam. Foi a tempestade perfeita. “Com o Karam experimentei pela primeira vez o prazer de ler.” O que tornou mais fácil dividi-lo. Quando em ação com a gurizada, Kenni não usa dos préstimos de ator. Jamais dramatiza, pois teme fazer dos candidatos a leitores uma plateia. Tampouco os trata como alunos. Prefere vê-los como formigas prestes a atacar o bolo, assim que inicia a mais simples e mais difícil das tarefas: a leitura em voz alta. Ouvidos se abrem na ausência de pirotecnia. Nosso amigo se entrega a essa ação contida, até se acabar. Dá no que dá: depois de tudo, os ovos viram carvão na panela.
Kenni Rogers é um homem pequeno e muito magro. Passaria despercebido não fosse a barba. Liberada das tesouras há dois anos, faz dele um gigante. Os fios alcançam 30 centímetros, o que lhe dão o ar de um monge eslavo. Ou um hipster. Nas cercanias da capital, ninguém se acanha em chamá-lo de “o barba”. O exotismo ajuda a encurtar distâncias. Colocam-lhe a mão no ombro e o carregam para o balcão mais próximo, com o convite expresso para um trago. Depois vem o interrogatório. A primeira pergunta é sempre se KR é polaco. Depois, como aprendeu a falar português. Passa-se para o “que diabos faz por ali”. Por fim, “que nome esquisito é esse?”
Não se trata de nome artístico – para causar efeito nos cartazes de sua atual companhia de teatro, a Vigor Mortis, do encenador Paulo Biscaia. Era para se chamar Karl Rogers, mas na hora do cartório, em vez de se tornar homônimo do festejado psicólogo norte-americano Carl Rogers, virou homônimo do cantor texano Kenny Rogers, mas sem o ipsilone. Os pais não confirmam ser uma homenagem, mas faz o maior sentido. Quanto a ele, esbalda-se com essa salada mista. Tem tudo a ver.
O cara com pinta de hipster e de santo eslavo ao mesmo tempo, com nome de músico country, ex-professor de inglês, formado em alemão, que já trabalhou de almoxarife, administrador e oficineiro, ator da deliciosa Virgo Mortis, criador da Mostra Literatura Paraná – dado a ficar de conversa fiada com moradores de rua – é sobretudo o sujeito que uma vez por semana toma o ônibus e vai até Mandirituba, na Região Metropolitana. Precisamente, à Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros. Dá aulas de teatro para guris que conheceram o abandono, a violência, o Estado negligente e crueldades que nenhum de nós haveria de suportar. De todos os papéis, não esconde, é o do qual mais gosta.
Aconteceu por acaso. Numa das rodas de leitura junto a deserdados, cruzou com moradores da chácara – respeitada pelo trabalho com meninos que conheceram o inferno, no plural. Virou e mexeu, Kenni estava lá, propondo experiências cênicas. Foi um pega-pra-capar. “Eu não quero saber de poesia. Tô com saudade do meu irmão”, berrou-lhe na orelha, certa vez, um adolescente da Quatro Pinheiros. Tensão. “Pois toma essa foto, vai para o palco e conta pra gente quem era o teu irmão”, devolveu o encenador. O guri foi – e aconteceu o teatro da vida como ela é. [pausa]
Kenni jurou para si mesmo que não vai chorar a cada vez que lembra uma dessas histórias que deram de cair no seu colo. Não vai se dar direito à melancolia. Entrou por um caminho sem volta, talhado para os fortes e generosos. É o caso.
Que se explodam os ovos do jantar.