Adriano Justino

Lar dos Meninos de São Luiz, ano 100

Adriano Justino
16/06/2019 20:00
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As pedagogas Rafaela e Stela e o padre Mauricio são os administradores do Lar dos Meninos São Luiz. | Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Na próxima sexta-feira, 21 de junho, o Lar dos Meninos de São Luiz – um dos marcos do bairro da Água Verde – completa 100 anos de atividades. Vai ter festa, e muita. Foram preparados vídeos com depoimentos de ex-internos desse lugar que nasceu como orfanato e assim permaneceu por tantas primaveras. São encharcados de gratidão e serão exibidos numa das solenidades. Inclua-se missa de ação de graças. Jantar para angariar fundos. E uma comichão danada – saber mais sobre esse espaço que abrigou centenas de anônimos e empobrecidos, a partir do fatídico 1919.
Fatídico. A história do Lar dos Meninos de São Luiz – então “asilo”, como se dizia, sobre lugares que recebiam os deserdados de qualquer idade – é um produto da Gripe Espanhola de 1918. A pandemia fez estragos planetários – como consta nos livros de História, para os que acreditam neles. O número de óbitos é doido de pedra: algo entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas, mortes produzidas em escala industrial por um vírus mais letal que duas grandes guerras juntas.
Em Curitiba, estima-se, apenas em 1918 foram 384 vítimas da gripe – o que deu muito trabalho para funerárias, coveiros e cocheiros que acompanhavam os féretros pelos paralelepípedos, numa cidade de apenas 80 mil habitantes – arredondando a conta. Para que se tenha uma ideia da tragédia, num único dia – 15 de novembro – foram 20 mortes. Uma chacina dos deuses. Um dos efeitos instantâneos foi a produção de órfãos em série, problema que caiu na barra do hábito das freiras e da batina dos padres.
Em tempos de Estado negligente em último grau, a Igreja era pródiga nas obras de socorro social. Justiça seja feita. A tarefa, nesse caso específico, desabou como um raio sobre os religiosos que atendiam na vizinhança da Santa Casa de Misericórdia. Era dali que saíam os caixões, selando a pulverização de muitas famílias – as mais pobres, aliás. Os piedosos relatos da época entoam loas a dois missionários franceses, ao padre Jean Michel e à madre Maria dos Anjos – essa, da congregação das irmãs de São José de Chambery, conhecidas pela atuação no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, o “Colégio do Cajuru”, onde estudavam as cabeças coroadas do Paraná. Jean e Maria mostraram por que tinham cruzado um oceano para desembarcar nessas terras frias – e, como provou a ocasião, mórbidas.
O asilo, orfanato e depois lar desconheceu o sentido da palavra trégua
As narrativas do que ocorreu naqueles dias são dignas das páginas de Charles Dickens. A versão mais segura é de que um dos dois primeiros órfãos designados por Michel à irmã Dos Anjos eram irmãos, de sobrenome Lazarotti – um João e outro Luiz. Aficionados em hagiografia, assim chamada “a vida dos santos” (e quem não provou, não importa a crença, não faz ideia do barato que é), sabem a aura que ronda São Luiz Gonzaga, um italiano do século 16 cujas virtudes, de tão heroicas, beiram o impossível. De forma providente, Gonzaga virou o “padroeiro da juventude”, talvez como amuleto para coibir os vícios que tendem a se instalar nessa fase da vida.
Não deu outra – o Luiz órfão decidiu a escolha de São Luiz Gonzaga como o patrono da obra. Obra que não acabaria com a despedida da Gripe Espanhola, por volta de 1920. O Brasil teria outras mazelas, geradoras de órfãos e abandonados em cascata. O asilo, orfanato e depois lar desconheceu o sentido da palavra trégua. Inspirou gente generosa, como a viúva Albina Montanari, que criou quatro dos seus sete filhos na instituição: Hugo, Osíris, Paulo e Plínio. Pilotou por décadas uma máquina de costura, para vestir os deserdados e juntar uns tostões para sustar despesas do asilo. Na falta do braço de Albina, a alternativa era trancar a imagem de São Benedito na despensa, para que não faltasse comida. O misto de chantagem, superstição e promessa continua sendo aplicada, por ser julgada infalível. A história do “São Luiz” é de luta para sobreviver – faz um século. Serviu-se muita sopa rala naquelas mesas.
Pode-se dizer com certa segurança que todas as gangorras econômicas e sociais do país caíram na porta do Lar dos Meninos. O livro de registros da instituição – uma raridade digna de museu, com escritos à mão sobre os inquilinos que por ali passaram – mostra que no começo os órfãos eram filhos de italianos ou descendentes de poloneses mortos pela Gripe Espanhola. Não raro, as páginas amarelas trazem descritivos sobre serem “filhos legítimos”, se traziam algum defeito físico e se tinham irmãos. Numa das páginas consta o detalhe precioso: “tem uma cicatriz na segunda falange do dedo médio”. Aos poucos, no virar das páginas, os sobrenomes vão se abrasileirando, a cor dos piás amorenando, e as descrições se tornam quase tão sinistras quanto a da epidemia. É uma galeria de Altamiros, Ariolandos, Beneditos e Bráulios, Celmiros, Rosendos, Nildos e Zenos.
Nos rodapés do livro de registros, ao lado, não raro, de fotos pequeninas das crianças, os internos eram irmãos abandonados à sorte, candidatos a desembarcar na primeira sede – a da Praça Ruy Barbosa, 138, ao lado do Colégio São José, ou – a partir de 1957 – na Rua Bento Viana, 71, endereço mais conhecido do Lar dos Meninos de São Luiz. As fases da casa desde 1919 são tantas que seria um suadouro listá-las, sem cair no risco de simplificações grosseiras.
A memória do Lar dos Meninos de São Luiz é um arquivo a ser aberto, para dali extrair sua importância
O local – um labirinto de 2,5 mil metros quadrados de área construída – chegou a abrigar 200 meninos. Um único corredor pede 70 passadas para ser percorrido. Em certas ocasiões, os guris ficavam ali até os 12 anos, partindo depois para um reformatório, como se dizia. Em muitas outras fases, a turma permaneceu sob a tutela das freiras até completarem 18, 20 anos. Arrumavam-lhe escola e ofícios. Sabe-se pouco ou quase nada sobre os que foram encaminhados para adoção. A memória do Lar dos Meninos de São Luiz é um arquivo a ser aberto, para dali extrair sua importância. Ali pode estar uma chave para conhecer os labirintos da ação social no Paraná, quando era regida por congregações religiosas e ditada pela filantropia.
Em 1986, o Lar dos Meninos de São Luiz deixou de abrigar órfãos, abandonados ou vulneráveis, como se convencionou dizer com o boom dos movimentos sociais e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Aos poucos, foi se convertendo em espaço de contraturno escolar, para alunos do ensino fundamental da estrelada Escola Municipal São Luiz, com a qual o lar divide suas instalações. Hoje, cerca de 230 crianças atravessam o pátio para desfrutar de atividades no antigo orfanato. Elas vêm de famílias da periferia, cuja renda não ultrapassa três salários. Ali encontram o atendimento de 18 profissionais – a maior parte educadores. A direção da obra é do padre Maurício Gomes dos Anjos (foto), com retaguarda do diácono Valdir Pegoretti e voluntários. São exemplos a bibliotecária Sílvia Maria Marques Maciel; o professor de tênis Pedro Henrique Stansky – que atua no vizinho ilustre, o Clube Curitibano; e o professor de desenho livre Joadelívio Della Justa. A lista inclui colaboradores antigos, como as professoras Aglair Bochnia e Aparecida de Souza. No geral, a turma que dá continuidade à Madre Maria dos Anjos tem de fazer das tripas coração para manter o lar funcionando. Por ironia, o “São Luiz” permanece órfão.
Durante boa parte dos seus 100 anos o local era um lugar em que as autoridades – das mais diversas ordens – batiam ponto. Um endereço para praticar a bondade pública. As atas guardam a lista de benfeitores ilustres, que doavam máquinas para as oficinas de sapataria, alfaiataria e marcenaria, atividades que fizeram a fama da instituição. Ainda hoje, pencas de casas da região da Água Verde ainda guardam os indestrutíveis cabides de madeira – adornados com bichinhos – que os “meninos de São Luiz” vendiam de porta em porta. Raro quem não comprasse, com pagamento seguido de envio de abraços às irmãs Irma Borsoi, Iolanda de Souza ou Divina de Jesus – entre tantas que tinham status semelhante ao do vigário, tanto eram conhecidas. A saída das religiosas, em 2017, inaugurou uma nova fase da casa. No lugar das freiras, pedagogas como Rafaela da Silva Rodrigues e Stelamaris Borduchi (foto).
Coube a elas, por
exemplo, recolher material para o centenário – o que só aumentou o peso nas
costas. Começaram conversando com as irmãs de São José, e em seguida com ex-moradores
que viraram frequentadores – e até funcionários. Sobretudo, as duas se
debruçaram sobre uma mesa apinhada de álbuns de fotos, registros, cartas e
objetos – agora acomodados num futuro museu. É certo que se divertiram, ao
saber das descrições dos banhos de sábado – feitos em etapas, como numa fábrica.
Conferiram os uniformes e suas épocas. As peças de teatro. Mas também se
surpreenderam com as pedagogias praticadas pelas religiosas – muitas bastante
atuais. O Lar dos Meninos de São Luiz teve suas sombras, é verdade, mas
forneceu subsídios para a ação social atingir o nível de excelência que tem
hoje. Ostentava ciência e táticas para vencer a dívida social do país – essa
gripe que não nos abandona tão fácil.
A solenidade de centenário ocorre no dia 19 de junho, às 15 horas, no Lar dos Meninos de São Luiz (Rua Bento Viana, 71). A missa de ação de graças ocorre em 23 de junho, às 10h30, no Santuário do Sagrado Coração de Jesus (Avenida Água Verde, 1.018).