José Carlos Fernandes

Levi Mulford – “meninos, eu vi”

José Carlos Fernandes
06/09/2020 19:00
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Por
esses dias, fomos assaltados pela notícia da morte do jornalista curitibano Levi
Mulford Chrestenzen.
Foi no sábado, dia 29, de causas naturais. Tinha 91 anos, completados no mês de
julho. Suspeito que muitos dos que o conheceram o julgavam eterno – ou pelo
menos desejavam que o fosse. Ninguém é insubstituível? Pois essa máxima não se
aplica a esse cidadão dos pinheirais. Figura na lista dos amados – como Helena
Kolody.
Cheguei tarde até Levi Mulford. Sabia dele, é claro, como qualquer um que
teve a satisfação de abrir um jornal impresso. O nome do jornalista foi
entintado nas páginas da Paraná
Esportivo
e da Tribuna do Paraná por
mais de seis décadas. Era de perder as contas as vezes em que ouvia seu nome na
redação, vindo da ruidosa equipe do esporte. “Liga por Levi, porra”. Mais eis
que numa ocasião – meio mágica – não sei por que diabos a repórter esportiva
Adriana Brum passou do meu lado, exalando energia – e me falou algo como “você
precisa conhecer o acervo do Levi Mulford”. Passou o fone e virou as costas,
pois tinha mais o que fazer.
O primeiro encontro com ele figura entre aqueles que todo jornalista sonha ter. Ele me recebeu na porta de sua linda casa no Pilarzinho – perto das antenas de tevê. Usava a onipresente boina modelo “Casa Edith” e por uns minutos achei que estava na presença do poeta Mário Quintana. Era já um homem velho, com ar cansado, mas gozava do benefício dos olhos azuis muito clarinhos e de um sorriso suave, que substituía sua pouca pachorra em falar pelos cotovelos. Era silencioso. Em volta dele, tudo ficava bom. Não tinha afetação.
Levi Mulford Chrestenzen somava duas forças da natureza. Era um futebolista e boleiro das melhores castas. Ao mesmo tempo, sua pulsão encontrou freios em outro papel, o de colecionista disciplinado
Entramos pela sala e descemos uma escada onde estava o famoso acervo –
que dali em diante nunca mais deixei de descrever, todas as vezes que me vi
obrigado a contar algo extraordinário que a vida de reportagem me reservou. Quanto
mais Levi me enfurnava nos, calculo, quase 500 metros lineares de material
sobre futebol, mais me perguntava como a turma que cobria esportes, o que nunca
foi o meu caso, tinha conseguido “naturalizar” aquele espaço sem similares.
Exceto por Adriana, não lembro de outro jornalista ter chegado à redação e dito
“meninos, eu vi?”, como no poema “épico” I-Juca
Pirama
, de Gonçalves Dias. Pois é o que a gente sente quando pisa no acervo.
A explicação para essa aparente apatia, claro, não é um bicho-de-sete-cabeças.
A imprensa esportiva estava perto demais dele para enxergar que era digno de um
documentário assinado, sei lá, pelo João Moreira Salles ou pelo Marcelo
Masagão.
***
Penso
que Levi Mulford Chrestenzen somava duas forças da natureza. Era um futebolista e boleiro
das melhores castas. Como escreveu o romancista Cristovão Tezza, essa devoção
vem das zonas irracionais, de modo que, grifo meu, explicá-la equivale a
assassiná-la. Pois é o caso – a paixão futebolística desse homem parecia
ilimitada, irrestrita, imponderável. Ao mesmo tempo, a pulsão de Levi encontrou
freios em outro papel, o de colecionista disciplinado. Tal figura existe em
todas as partes do planeta, mas no Brasil ganha contornos peculiares. Num país
continental como o nosso – onde até hoje há pouco mais de 3 mil bibliotecas
públicas para mais de 6 mil municípios, onde um gênio controverso como Monteiro
Lobato fazia o livro chegar aos rincões colados a vidros de xarope –, muitos e
muitos se acostumaram a guardar todo e qualquer material de leitura. Precaução que
vira mania. É incurável.
São inúmeras as narrativas sobre as pilhas de revistas Manchete e Cruzeiro dispostas em baús e porões. O prestigiado escritor londrinense Domingos Pellegrini, por exemplo, costuma contar como uma coleção de Cruzeiros encontrada num armário, quando menino, foi definitiva na sua formação. Devorou tudo. Virou um curioso. A aposta dos guardadores compulsivos estava nas reportagens – poderiam servir para trabalhos escolares dos miúdos, para folhear nas horas de tédio, para mostrar a alguém, como prova da nossa índole ilustrada. O leitor brasileiro é um colecionador em potencial. No caso de Levi, ia além. Era também dedicado como um trapista, o que incluía guardar jornais todo-santo-dia. É um feito. Trata-se de produto mais perecível e bastante requisitado, depois de lido, para embrulhar o peixe, forrar gaiolas e educar cachorrinhos incontinentes.
Sua história com os jornais teria começado na adolescência, quando o pai
chegava em casa com um suplemento esportivo que o jornal Gazeta do Povo
publicou durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. O piá se encantou
com aquilo – e não é de se espantar. Penso que o tal suplemento (que está na
coleção) merecia ser reimpresso em edição fac-similar, por sua importância para
a memória e a sociologia do esporte. Suponho que era editado em parceria com
membros da comunidade alemã da cidade – porque contemplava outros esportes,
praticados nos clubes germânicos, e que seu sumiço talvez faça parte da
perseguição a essa etnia na cidade, a partir de 1941.
Levi não soube falar a respeito, mas contou que nem sempre tinha acesso
aos jornais, o que fazia com que copiasse notícias, à mão, em cadernos que
guardou, evidente. Não houve um dia, desde aqueles da puberdade, em que não
tenha somado ainda que um mísero item à coleção. Paralelo aos manuscritos,
começou a mapear as partidas de futebol, listando, em cartazes, os melhores
lances, faltas, quem jogava em qual posição e de que chuteiras pesadas tinham
saído o gol. Aproveitava para registrar – na caneta – o desenho do emblema do
time, das camisetas e os demais objetos de desejo dos boleiros. Ah, copiava o
hino.
Com o tempo, o jovem Mulford começou a ter um dinheirinho para comprar jornais. Ninguém mais o segurou. Suas práticas, dali em diante, seriam reprovadas por arquivistas, historiadores, bibliotecários e gestores de informação. E penso que podem ser uma agravante caso seu riquíssimo acervo seja repassado a alguma instituição museológica. Ele recortava a notícia esportiva, por assunto, colava no papel, formando um livro, encadernado – ali mesmo, numa sala ao lado, onde mantinha todo o arsenal de prensas, formões, colas, fitinhas de ouro, cartolinas e dobraduras. Na estante, cada volume segue os dias, meses e anos em que foram feitos. São coloridos. Parece sonho, e vai ver que é.
O futebol que Levi cultivou no seu porão não é o do espetáculo, mas o de milhares de anônimos que entraram em campo, em times minúsculos
Seria muito, mas seria pouco se o jornalista tivesse se interessado
apenas pelos grandes times da capital. Com assessorias grandes e torcedores interessados,
os clubes de porte têm tutano para documentar suas histórias. Para esses, a
preciosa coleção de Levi pode não fazer diferença. A questão é que ele dedicou
a mesma atenção a times que hoje não mais existem ou que foram fundidos – o
Primavera e o Britânia, por exemplo. E, tchan-tchan – dedicou seu método de
arquivista diletante à infinidade de times étnicos, de bairro, suburbanos e
agremiações que nem imaginamos existir. Em duas ocasiões recorri a Levi para
saber desses clubes. Uma para uma reportagem sobre o extinto “5 de Maio”, aqui
na velha Água Verde; e outro sobre o “Bacacheri F.C.”, no momento em que a sede
do time foi vendida a uma rede de supermercados, numa rocambolesca negociação.
Nessas e em outras ocasiões, as surpresas brotavam das estantes, como
rios. Certa feita, Mulford abriu arquivos em que estavam cartas que recebeu de
jogadores, ao longo de suas seis décadas de lida. Eram enviadas em
agradecimento ao colunista esportivo, pelas notícias dadas. Em meio ao
salamaleques de praxe, os missivistas aproveitavam para falar da família, da
saúde, da falta de grana, das incertezas da profissão. Esse material é pasto
para os pesquisadores, tamanha sua riqueza. Dariam um livro? Sim, um lindo
livro.
Numa outra entrevista, pedi a ele que ajudasse numa reportagem sobre quem seria o primeiro negro no futebol paranaense. A proposta era regionalizar as informações até hoje imbatíveis levantadas por Mário Filho, autor do clássico O negro no futebol brasileiro. Não arranquei nada dele, pois não se sentia à vontade em arbitrar sobre o assunto. O lado arquivista falava mais forte – aqui está o material que guardei, “o resto é contigo”.
Nesse dia, deu para entender de uma vez o que já suspeitava. Era uma
violência pedir a Levi Mulford interpretações dos fatos esportivos. Talvez o
fizesse na esfera privada, com a mulher Edite Lúcia, também colecionista, ou com os três filhos.
Conversamos, por exemplo, sobre o livro Como
o futebol explica o mundo,
do norte-americano Franklin Foer, mas ele não
escondeu se sentir pouco à vontade em falar do que o futebol significava para
as sociedades polonesas ou italianas da capital. Foer afirma que, em grupos
desse naipe, ter um time de futebol representava “gritar” que aquela comunidade
não trabalha mais na enxada, que “melhorou de vida”, pois o futebol é inglês,
logo nobre, e jogado com os pés, não com as mãos. Mas necas – o papel de Levi
era garantir que toda e qualquer notícia sobre o Trieste F.C., de Santa
Felicidade, não lhe escapasse. O mesmo valia para Iguaçu, Urano, Vila
Fanny, Bola de Ouro, Belmonte... O
resto, não lhe pedissem.
Certo ele. Um futebolista até pode botar os pés pelas mãos – com perdão
ao trocadilho. Mas um colecionador, jamais. Ele levanta com uma tarefa para
cumprir e não pode vacilar. Pessoas assim levam vidas em segredo – suspeito que
um anjo cochichou no ouvido de Levi que tinha nascido para guardar. Não
discutiu com o destino. Fez bem. O futebol que cultivou no seu porão não é o do
espetáculo, mas o de milhares de anônimos que entraram em campo, em times
minúsculos, e viveram ali, por uma hora e meia, o domingo da vida.