José Carlos Fernandes

Manifesto ao museu imaginário

José Carlos Fernandes
15/04/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

Em 2002, ao iniciar o romance O Museu da Inocência, o turco Orhan Pamuk passou a comprar objetos que tivessem a ver com os dois protagonistas da trama: o endinheirado (e passional) Kemal, e sua prima Füsun – guria de beleza extraordinária. A coleção de quinquilharias serviu de laboratório para o autor, à moda do que fazem os atores de teatro quando investigam a alma de um personagem.
Caso flagrasse uma xepa de cigarro na calçada, catava – dando-lhe o status de “bituca imaginária”, jogada ali por Kemal, em meio a tragadas no atacado. A cama encontrada numa loja de móveis usados – ora, nos seus delírios literários, bem se parecia àquela que acolheu Kemal e Füsun na primeira vez em que se amaram. O faz-de-conta de Pamuk aqueceu o mercado de pulgas de Istambul.
Além dos móveis, lençóis, louças e livros, o escritor achou também a casa em que seus personagens poderiam ter vivido. Foi o ápice do hiper-realismo. Comprou-a, instalando no local, em 2012, o “Museu da Inocência”, com o acervo de escambos dentro. É inédito – os amantes ganharam CEP, tiraram a ficção para dançar. Para muitos, ali está o endereço real de um homem e uma mulher que nunca existiram. Ao entrar, há quem diga – “Olhem, os cigarros que Kemal fumou…” São 4,2 mil bitucas, para ser mais preciso, todas presas a uma instalação.
Pamuk – com folga um dos sujeitos mais inspiradores do nosso tempo – não esconde que gostaria de encontrar pelo planeta mais museus como o seu: intimistas, formados por peças do dia a dia, montadas em residências – e não em palácios. Que estejam em locais que foram habitados por pessoas comuns. Que guardem marcas de gente e não a frieza do cubo branco. Pouco importa se a marca deixada for apenas um prego solitário na parede, na qual repousou uma natureza morta; ou um coração cravado com canivete, na árvore do jardim. O poder dos objetos em acionar memórias – e de dar vida a pessoas que se foram – é a mais atômica (e lisérgica) das humanidades.
Não é exagero dizer que Orhan Pamuk, se não semeia essa ideia como um militante da museologia humanitária, pelo menos identificou que tal desejo anda à solta. Há indícios. Li esses tempos que na cidade de Zagreb, na Croácia, existe o “Museu dos Relacionamentos Partidos”. É formado por mais de 2 mil itens – todos sobras de amores fracassados. Quem conhece diz que encontrou ali um passaporte para os labirintos do coração escangalhado. Dentre as peças saídas dos desastres afetivos está um machado fincado a uma porta (quem nunca desejou fazê-lo?); e um pobre anão de jardim, atropelado em ato de vingança, por um amante sem juízo. Não é preciso ser Glória Perez para supor o roteiro de tais histórias. Outro acervo nascido da banalidade é a coleção de biografias de anônimos, reunida pelo pesquisador parisiense Philippe Lejeune, autor do extraordinário O pacto autobiográfico. Interessa-lhe a “pequena vida”, aquela que ninguém vê. Por aí vai a invenção humana – num tempo de tantas fraturas, a poesia dos objetos e das escritas amarra os ossos.
Os “museus de nada”, os “acervos de insignificâncias”, as “ignorãças” – como diriam o performer Hélio Leites e o poeta Manuel de Barros –, não são apenas uma alternativa europeia à grandiloquência de um Louvre, um Prado, um Hermitage. Existem alguns manifestos parecidos aqui pertinho. Há uma década, o antropólogo Ozanam de Souza – da Fundação Cultural de Curitiba – encontrou, na divisa do Pinheirinho com o Sítio Cercado, um museu de utensílios domésticos. Somava mil peças, como enxadas, panelas e pilões que guardavam as marcas das décadas e das mãos dos que os usaram. Seu dono? Brenno Wagner, um jesuíta que se secularizou, depois de ser missionário no Japão. Casado, veio parar em CWB. Aqui consumiu os últimos anos de sua passagem salvando cacarecos da extinção. Gostaria de saber que fim o acervo levou.
Do mesmo naipe é o Museu da Periferia, no Xapinhal – obra e graça da enfermeira e líder comunitária Palmira de Oliveira. Há mais de dez anos, ela reúne objetos dos tempos da ocupação formada por sem-teto do Xaxim, Pinheirinho e Alto Boqueirão (origem da sigla Xapinhal). O espaço vive de teimosia da Palmira. Só não sucumbe ao pó por causa dos visitantes, que ao visitar o museu, esmeram-se em lembrar da luta por moradia no passado, tão logo veem a sirene que acordava a turma nos primeiros acampamentos. As estacas que demarcaram os terrenos. A voz gravada de um veterano de luta. Também na periferia, mas com outra natureza, é o Museu da Colônia Dom Pedro II, em Campo Largo. Pequeno, apinhado de flores de papel, guarda livrinhos de canto dos primeiros imigrantes poloneses, fotos das babas com roupas de missa, carroças e tal. Tem 15 metros quadrados – e ali parece caber a Polônia inteira.
Há mais – a artista plástica e pesquisadora gaúcha Vera Lúcia Didonet Thomas, radicada na capital, estuda, faz uma data, as “andanças” dos objetos pela casa. Chama o fenômeno de “teatro monótono”. O balde vira vaso. A máquina de costura se torna cômoda. O sapato velho, num canteiro de muro (como faz a multiartista catarinense Kátia Horn, numa rua qualquer de Santa Felicidade). Para Didonet, ao serem trocadas de lugar e de função, peças da nossa rotina costumam galgar novos papéis. Quais personagens de um espetáculo cênico, ganham outras falas e, claro, dizem algo sobre seus donos. Com seus registros da vida privada, a pesquisadora perpetuou uns tantos personagens condenados ao esquecimento.
O “Museu da Inocência” de Istambul, o “Museu dos Relacionamentos Partidos”, de Zagreb, dialogam com a cultura. Difícil não associá-los com a obra Poética do espaço, de Gaston Bachelard, o filósofo que desceu do mundo das ideias para tratar da alquimia dos objetos. Bachelard escreveu sobre os universos portáteis que criamos quando compramos miniaturas, por exemplo (novamente, quem não?). Objetos pequeninos – coisas como soldadinhos de chumbo – transmitem a ilusão de que o cosmos cabe na nossa escala. Facilita enfrentar a grandeza com a nossa pequeneza. O pensador também se deteve nas gavetas, esses dispositivos do inconsciente, nos quais guardamos trecos, sem pensar muito. Gavetas dizem mais sobre nós do que o álbum de retratos, do que os documentos do governo. O delírio das gavetas violadas – assim que morremos – mexe mais com nossos nervos do que as contas que deixaremos a pagar.
Só digo essas coisas – todas bobagens – porque dentre os milagres nas quais se deve acreditar está o cotidiano. É ali que as revoluções principiam. Confidencio que há três anos – com meus irmãos – ergo um museu privado de inutilidades deixadas por meu pai. Temos no acervo milhares de pregos, parafusos e dobradiças, todos enferrujados. Digo também que de vez em quando volto às minhas gavetas. Seguindo o radar de Bachelard, ali há ninhos onde repousam alguns sonhos na forma de lápis, borrachas, elásticos, notas fiscais da livraria. Tomara, hoje, sugerir o revirar do mais secreto dos espaços – querido leitor – lhe sirva de alguma ajuda. No nosso museu particular pode estar guardada aquela chave para abrir a porta da qual nos perdemos. O endereço onde Kemal e Füsun ainda se amam.
(Coluna dedicada à ativista cultural Celise Helena Niero, por levar tanta gente a abrir as portas de seus museus imaginários.)