José Carlos Fernandes

Medo: amor estranho amor

José Carlos Fernandes
10/06/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

Certa feita, o arquiteto e urbanista paulistano Paulo Mendes da Rocha declarou em entrevista o que pensava do medo: “É um instrumento do fascismo”, disparou, com seu estilo boxeur. Na mira de Rocha estavam as classes médias que se alimentam do pavor, usando-o como “instrumento de exclusão”. Em nome do medo – assim como um dia se fez em nome da fé – parte da sociedade se esconde atrás dos muros, à sombra dos quais nutre ressentimentos e paranoias, justificativas para o individualismo e o pouco caso.
Peço desculpas pela afetação, mas esse é um assunto de altíssima complexidade – não há ressonância magnética que resolva. O medo morde nossos calcanhares desde as tolas histórias infantis, ouvidas no colo da mãe. Pode-se até simplificá-lo, dizendo que é “real”, nutrido por evidências do noticiário. Quem duvida, que entre sozinho numa ruela escura, para ver o que é bom para tosse. Todo mundo conhece alguém que se viu na mira de um gatilho ou de um gatuno. O problema é que esse argumento não resiste a uma boa régua, evidência, que, infelizmente, não serve de antídoto contra a histeria do pânico. O cotidiano passou a ser visto por uma lente de aumento. Distorcido, causa em nós a paralisia e a impotência. Aciona-se – de forma coletiva – uma das piores sensações: o medo de perder, que é quase tão impertinente quanto o medo de morrer.
De todas as explicações para esse fenômeno da psicologia social, uma das melhores que ouvi, perdoem juízes de plantão, foi num filme do Woody Allen. Chama-se O homem irracional e, à revelia do elenco formado por Joaquin Phoenix e Emma Stone, não emplacou. Lá pelas tantas dos diálogos peripatéticos de um professor universitário canastrão com sua aluna brilhante, porém vesga de paixão, ambos concluem que boa parte das pessoas nutre fantasias sobre tragédias, chacinas e quetais como esparadrapo para legitimar a vida insossa e cagona que levam. É como se dissessem: “Está vendo por que não saio de casa?”; “compreende agora por que não tenho vida social e não divido nada com ninguém?”; “captou por que quero a morte por asfixia de metade da humanidade?”.
Antes mesmo de Allen traduzir tão bem a alma assombrada de quem se pauta nas fake news, a imprensa sensacionalista estava careca de saber disso. Fez farto uso do recurso. Tornou-se um prodígio e assim permanece cada vez que reproduz frases tolas do tipo: “Os bandidos estão soltos e nós, presos” ou “onde estava a polícia que não veio nos socorrer?”. Talvez nenhuma outra instituição tenha explorado tão criminosamente os mecanismos do medo quanto os jornais “espreme que sai sangue”. Verdadeira Montanha dos Sete Abutres. Nessas redações, sempre havia e há uma serpente guardada à gaveta de um editor, prestes a ser solta, pondo a população em polvorosa. Em tempo – a seu modo, a imprensa elegante também aprecia essa iguaria.
Como “quase tudo”, Freud explica o apetite por consumir e alimentar tragédias: trata-se de um mecanismo de catarse. Ao me entregar ao medo, exercito uma espécie de descarrego. Leio, cultivo e reedito de forma caricata o desatino dos outros – assassinatos, incestos, roubos, erros médicos, conspirações, bestialidades. É uma forma de dizer “podia ter acontecido comigo”. O sujeito que se abastece dessa síndrome diabólica é, por ironia, alguém saciado por uma satisfação esquizofrênica – a de ter se safado do pior, ter deixado o rabo na porta, de ser um sortudo. Não raro, vai fazer de tudo para assim permanecer, com o pelo a salvo. E dane-se você e eu.
Esse estranho salto mental passou, não faz muito tempo, pela peneira da pesquisadora norte-americana Diana Mutz, da Universidade da Pensilvânia. O medo lhe interessa. Em especial, o medo que levou uma pá de gente a votar em Donald Trump. A investigação de Diana desmonta as peças do senso comum sobre a eleição mais desastrada da paróquia – fenômeno que se repete por aí, a granel. Jurava-se de pés juntos que os eleitores do magnata laranja eram os que não foram expostos ao saber universitário; ou uma turma que penava em empregos meia-sola. Ou mesmo pessoas sem luz. Só que não. Os levantamentos da pesquisadora levam a crer que os eleitores pirados votaram em quem votaram nutridos pelo medo de perder status social.
Em bom português, Trump pareceu uma alternativa sob medida para que as famílias não tivessem de contar os bifes na hora do almoço, nem virar o bujão de gás, ou tampouco se olhar no espelho e descobrir que viraram um personagem da Depressão Americana fotografado por Walker Evans. Se Diana estiver certa em sua análise, pode-se afirmar que na hora de votar importa muito menos o bem comum e muito mais o pânico de não poder consumir ou, quem sabe, o mal-estar de ser apontado pelos amigos como um “perdedor”. Esse quadro havia sido descrito anteriormente pelo sociólogo Barry Glassner, um dos mentores do documentarista Michael Moore. O medo, para ele, exprime ansiedades profundas, enraizadas no imaginário. E é à prova de pílulas azuis.
Adoraria ter elementos para discordar, não fosse a sensação desagradável de que o “homem público” – forjado do Império Romano ao Iluminismo – chegou ao último degrau da fama, dando lugar ao “homem enxoval”: minha tevê por assinatura, meu clube, minha vidinha gourmet, minha família, meu pet lindo e mais nada. E não se aproximem – “cão bravo”. Calculem como ficaram esses sentimentos todos depois da desalmada greve dos caminhoneiros. Dá até… medo imaginar o que pode acontecer nas eleições de outubro.
Diante de tantas evidências, difícil desqualificar a fala de Paulo Mendes da Rocha – o medo alimenta o fascismo nas relações; e faz emergir a pior versão de nós mesmos. Mas não custa nada ser otimista – nem que seja para mostrar os dentes recapados. Os corpos precisam de paz e amor para que possam fluir desejos e saberes. É assim, creio, desde Eva. Haveremos de reconstituir o gosto de viver juntos e da hospitalidade. A não ser que mais da metade do planeta tenha dois parafusos a menos, a tendência dos povos é sossegar o pito e baixar as armas. Mas nem as mais belas crenças, nem as melhores intenções, nos eximem de refletir sobre os estragos provocados pela “cultura do medo”: ela faz com que calçadas sejam abandonadas, detonando cidades inteiras; faz do diferente um inimigo em potencial; deixa vingar o lado mais ordinário da vida; gera vigílias insanas na porta dos quartéis.
Em suas ilações sobre os efeitos do medo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman usava a técnica do espanto. Era bem sucedido. Com base em dados seguros, lembrava que a sociedade era hoje muito menos violenta do que já foi (fato tão bem desenvolvido no monumental Os anjos bons da nossa natureza, do neurocientista canadense Steven Pinker). E que nunca se desfrutou de tanto conhecimento, amplificado pelos meios tecnológicos, de modo que as chances de morrer de apendicite são menores.
Apesar de tantos avanços, o discurso do medo floresceu. É nosso Ensaio sobre a Cegueira. Imobiliza a população e ameaça a vida em comunidade, pondo ralo abaixo as conquistas de tantos séculos de ciência e filosofia. Bauman diz mais – em meio a um quase inexplicável surto de autossabotagem, a mesma humanidade que se engoliu duas grandes guerras decidiu cavar, na unha, seu próprio túmulo, entregando-se a toda sorte de neuroses. É a desgraça voluntária em meio à prosperidade. Um culto às bactérias desconhecidas, crianças assassinas, obsessão por fronteiras e ojeriza a estrangeiros.
Como não se furta de entender “o bicho que deu”, o sociólogo refresca o baixo-astral e reconhece que as coisas eram mais fáceis de explicar nos tempos idos. Talvez isso justifique tanto fetiche pelo medo. Na primeira metade do século passado, a batalha estava na Europa; a fome tinha a ver com a África; a desigualdade, com a América Latina. A coisa muda de figura quando a gente se dá conta de que a violência é difusa, anônima e epidêmica – ou seja, acontece na rua de baixo e toca nosso vizinho. Está muito perto e isso nos dá nós nas orelhas. Em resposta ao que não se consegue explicar, ganha terreno o pânico e a insegurança. O medo se nutre da ignorância e da preguiça – e ignorantes e preguiçosos adoram hierarquias e tiranias.
Se tem remédio? Tomara.
(Coluna dedicada à poeta Assionara de Souza e ao artista plástico Carlos Eduardo Zimmermann. Os dois se foram – por aqui passaram com coragem. Quem os conheceu sabe.)