José Carlos Fernandes

Mika MC, aos 15 anos

José Carlos Fernandes
02/02/2020 19:00
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A curitibana Miriã
Carla Caetano Claudionor é o que se costumava chamar de “uma menina prodígio”. Uma
discípula do Robin. Aos 8 anos, subia ao púlpito da igreja batista que sua
família frequentava – em Araucária, na região metropolitana, ou em bairros da
capital – e conduzia o canto, para êxtase da assembleia. Um potentado. Aos 11
anos, depois de presenciar um arranca-rabo familiar, trancou-se no quarto,
chorou de dar dó e disse “não” ao que julgava errado. Foi quando escreveu seu
primeiro poema. “Bati o pé no chão e entendi que não queria aceitar certas
coisas. Minha cabeça tava uma bagunça. Sequei minha lágrima. Com todo aquele
ódio dentro de mim, peguei o caderno e fui escrever”, relembra.
Ocorreu que também aos
11 descobriu o hip hop e fez dessa arte a sua voz. A cultura das ruas lhe
chegou pelo irmão Paulo, conhecido como o MC e tatuador Cubano, sujeito gente
boa que abriu as porteiras para a caçula da casa. A primeira composição da
pequena se chamava Empoderamento em ação.
Caiu no gosto. Ganhou um clipe e fez a alegria da criança que, mesmo nascida
num lar evangélico, cresceu embalada pela banda Racionais MCs. “Acredito em
Deus, mas não sei se existe céu e inferno. Sou bem desconstruída.”
Não demorou para que Miriã, ainda em tranças e chiquinhas, se tornasse habituée das batalhas – espetáculos públicos de improviso de versos – e observadora dos slams, nos quais está pronta para debutar com suas poesias. De lá para cá, só avançou. Soma cinco músicas editadas, duas disponíveis no Spotify e no YouTube. Aos 14, estrelou no Teatro Novelas Curitibanas a peça Poesia – a bala cravada na arte, em parceria com seu coletivo, a Trupe Periferia, sob direção do ator e ativista paranaense Kenni Rogers. Na montagem, cantou e tocou ao violão composições próprias – somando-se aos que abrem fogo contra o machismo e o preconceito. De quebra, descobriu que, além da música, havia o palco.
A menina precoce, que se debruça sobre temas espinhosos com o afinco de uma líder de campo de refugiados, também se dedica a planos que os mais radicais chamariam de capitalismo selvagem
Na plateia, a pergunta
parada no ar: “Quem é essa guria?”
Hoje aos 15 anos, Miriã,
ou M-Carla, como tentaram batizá-la, mal se lembra do nome de registro; nem do
primeiro apelido na esfera rap. “Não me representavam”, resume. Aos poucos, foi
se tornando a Mika MC, identidade que até seus pais – o eletricista Carlos e a
cuidadora de idosos Lenir, a Morena – passaram a respeitar, sob risco de
levarem um sabão.
Mika sabe o que quer – e como quer ser chamada. Pouco mais do que uma criança, ao vê-la falar e se apresentar já chegaram a questionar se tinha passado dos 25 anos, se estava perto dos 30. Ela ri da confusão como se ouvisse uma fofoca de colegiais no banheiro da escola. O superfaturamento da idade não se deve à aparência – sua meninice é, afinal, explícita –, mas à coragem com que se pronuncia. “Acho que vivi bastante até aqui. O bastante para entender que não sou a única na fila. Que tem muita gente na mesma situação. Quero falar por muitos”, avisa.
A maturidade tem um
preço – “de boa”, como ela gosta de repetir. Mika precisa fazer manobras para
se relacionar com os colegas de sala. Eles naturalmente lhe parecem recém-saídos
do jardim de infância. A situação faz com que migre para o fundão, escondida
debaixo da vasta cabeleira em caracóis e, agora, atrás de grossas lentes para
amenizar a miopia. Nos muitos colégios em que estudou – “meu pessoal muda muito
de endereço, sabe” – poucos professores perceberam seu potencial. Tampouco fez
questão de mostrá-lo. As habilidades em comunicação e expressão guarda para as
batalhas, nas quais nunca passa despercebida. Em classe, é a estudante boa em
Matemática, sem nota vermelha, mas um animal quieto, dado a observar.
Seus segredos de MC
vazaram uma única vez, quando uma professora de História, Dayane, entendeu que
a Miriã da chamada tinha algo mais – ela era a Mika MC, como ficou sabendo
depois. “Pus toda a minha vida num trabalho sobre os deuses do Egito Antigo.
Ela percebeu o empenho e me procurou para conversar.” Deu liga. A mestra a incentivou
a continuar, o que pretende fazer com o malabarismo de contradições que teve de
enfrentar desde cedo.
A propósito, não se
apressem em rotulá-la. Mika MC, 15 anos, não é para amadores.
***
“Minha mãe é a cara do Brasil”, resume a adolescente, ao falar de Lenir/Morena, a quem recorre para explicar o que é e para onde vai. Sua reviravolta começa com essa mulher, que cumpriu um roteiro à risca. Casou-se cedo, teve filhos quando podia estar pulando amarelinhas, passou a vida fazendo contas na ponta do lápis, calculando quando faltava para o fim do mês. Pulou fogueiras. Para soprar as feridas, soltava a voz nas toadas sertanejas. Foi olhando para Lenir, a dona Morena – a quem descreve como a figura mais linda que conhece –, que entendeu que muita mulher sofre pra caramba, e que “não” queria esse filme para si mesma. Planejou a liberdade para a mãe – para si e para todas as demais.
Mika é o resumo de um outro país, uma outra juventude, produto de um tempo em que as contradições dançam coladinho
Um dos seus versos
resume o que lhe corre nas veias: “pressa por um mundo com mais empatia, que
amanhã eu não tenha que chorar por mais uma irmã morta na estatística. Justiça,
será que existe? Desiste! Ninguém faz por você, resiste! Que tudo isso vai
valer; e o que era tão puro vai correr, inesperado, deixe ir”.
O momento do estalo se
deu quando escreveu a primeira poesia, uma espécie de manifesto libertário e
feminista parido antes mesmo de lhe apontarem os seios. Esses e outros libelos
são praticados sempre à mão, num caderno que guarda feito um diário. “Perdi um
deles”, admite, cenho franzido. Calcula ter entre 20 e 40 letras de música
prontas, fora os poemas, que nascem de chofre, da euforia ou da melancolia. É
perfeccionista. Descarta o que não está bom. Quer aprender e sua escola são os
manos e minas que encontra nas andanças hip hop. Mika gosta de bater ponto nas
batalhas da Praça dos Menonitas, no Boqueirão, o “Menon”, como chamam, mas
circula pelos eventos do Jardim Esmeralda, no Xaxim; Cachoeira, na divisa com
Almirante Tamandaré; Tatuquara, Rua XV de São José dos Pinhais e no Conjunto
Parigot de Souza, no Sítio Cercado.
“Perdi as contas das
batalhas das quais participei. Ganhei umas 20. É da hora. A gente aprende um
com o outro. A poesia abre mentes. Quando alguém fala bosta na batalha, a
galera não vota a favor, não aplaude...”
O português de Mika é lustroso: não tolera bosta, expressão usada para quem tropeça no machismo que ainda ronda o rap. No mais, garante, é do partido do diálogo. Pode somar o gogó numa vaia, mas prefere a prosa. E estende essa regra às demais áreas da vida. A menina precoce, que se debruça sobre temas espinhosos com o afinco de uma líder de campo de refugiados, também se dedica a planos que os mais radicais chamariam de capitalismo selvagem.
Quer cursar Artes
Cênicas e ser atriz. Aprender mais teclado, violão e bateria – instrumentos
pelos quais transita. Planeja ser dona de seu próprio nariz. E logo. Aos 18
anos, avisa, terá um carro e uma casa para chamar de sua – e dará alforria aos
pais. “Eu consigo”. Prova? Trabalhou fora – aos 12 anos – como vendedora de
pôsteres na Rodoferroviária. Era uma daquelas promotoras que dizem “posso falar
com você um pouquinho?”, quando a gente passa cheio de malas, em busca de um
banheiro ou da saída. “Modéstia à parte, eu era boa no serviço.”
De mudança recente para
São José dos Pinhais – onde costumava participar das famosas batalhas de versos
da Rua XV –, ainda procura escola para estudar em 2020. Na sequência, vai se
alistar no programa Adolescente Aprendiz. Namora fazer um curso de Gestão
Empresarial – “quero expandir; quero empreender, quero ser empresária. O que eu
puder fazer, vou fazer.”
“Escrevi mais uma
folha, vi cair mais uma lágrima. Páginas rasgadas, faladas apenas no espelho
(...). Não seremos o que disserem, tamo em período de evolução e revolução. São
tempos obscuros, isso é claro. (...) Não terá mão estendida se não estender a
sua. Puras palavras, dura realidade de que a sinceridade aqui não dura...”
Se dona Morena, a mãe,
é a síntese de um certo Brasil, Mika é o resumo de um outro país, uma outra
juventude, produto de um tempo em que as contradições dançam coladinho. Mika MC
vem de um Brasil diferente – o Brasil que faz rimas em praça pública e que, aos
15, sabe onde quer estar, no país que deseja. Subestimar meninas mulheres como
ela equivale a perder a batalha. Anotem aí.