José Carlos Fernandes

Na Itupava tinha uma banquinha

José Carlos Fernandes
29/07/2018 21:00
Thumbnail

Foto: Letícia Akemi/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A esquina das ruas Itupava com a Flávio Dallegrave – aquela da ciclovia que corre ao lado da estrada de ferro, no Hugo Lange – anda chocha, não parece a mesma, um velório. Há pouco mais de dois meses, deixou de funcionar ali a Banca do Bem – a banquinha de revistas do jornalista e jornaleiro Gregório de Bem, 67 anos, comerciante com lugar cativo na seleta galeria dos afetos curitibanos.
De Bem, num feito inédito entre as 180 e cacetadas banquinhas da capital, fez dos seus 20 metros quadrados um espaço cultural. Há 17 anos no ponto e há cravados 50 anos no ramo de jornais e revistas, botava mesa e cadeiras para fora e – sem hora marcada – reunia leitores para conversas sobre política, comportamento e sociedade. De manhã, tinha quem lesse jornal ali mesmo, na mesa de plástico, ao sabor do vento e da incontinência dos passarinhos. E se dedicasse a um dos melhores esportes para quem gosta de noticiário “de verdade”: comentar o que leu.
A turma de leitores da Banca do Bem causava tamanha impressão que observadores de práticas de leitura viam no local um laboratório para entender o que se passa na cabeça dos consumidores de jornais e revistas. Os pouco mais de 20 frequentadores fieis do “clube”, fora os satélites e simpatizantes, confirmavam a máxima de que o leitor não é aquele que lê, é aquele que fala. “Às vezes, tinha de apartar briga”, brinca um dos frequentadores padrão “cartão fidelidade”, o profissional de turismo Ernesto Brand.
Um dos episódios mais deliciosos em torno da Banca do Bem se deu anos atrás, quando uma gestora da prefeitura entrou em pânico ao ver tanta gente disputando área tão exígua – o minúsculo “quintal” da banquinha. Imaginou que poderia acontecer uma mortalidade em massa, caso um motorista perdesse o controle da direção e seu carro fosse atirado contra o quiosque. O entorno é de fato uma mini-Copacabana – passam por ali os trens da Rumo “70 vezes por dia”, como gostam de repetir, sacudos, os moradores da região. Somem-se os cuidadores de cachorros, ciclistas, corredores de rua, operários em direção ao trabalho, zilhões de carrinheiros – agraciados pelo conforto da ciclovia – e, num chute, 10% da frota de automóveis da cidade. Microcosmo mais interessante? Só a Rua Riachuelo.
A proibição não foi adiante, debaixo da ameaça de um levante popular, para entrar nos livros ao lado da Balaiada, da Cabanagem e da Sabinada. Se as reuniões fossem coibidas, haveria uma espécie de Revolta da Itupava, a única capaz de reunir petralhas e coxinhas numa só voz (grifo meu). Até o então prefeito Gustavo Fruet teria interferido, para restituir a serenidade e lembrar que bom seria se todas as banquinhas fossem como a do Gregório – um clube da esquina. Seria mesmo.
Nossos postos de venda de jornal estão entregues aos cigarros, às jujubas e às paçocas, além de cada vez menores. Tem de entrar de cabeça e sair de ré. Comparados aos de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, levamos uma surra, o que confirma a fama (aferida em estatísticas) de Curitiba de ser um dos piores mercados brasileiros para jornais e revistas. “Quando a Gazeta do Povo deixou de circular todo dia, entendi que não havia mais como continuar”, explica De Bem, que chegou a ver seus ganhos reduzidos a R$ 800 mensais. O jornaleiro estuda qual será seu novo ramo de negócios.
Gregório de Bem começou a vender jornais e revistas em 1968, aos 17 anos, como ajudante do pai, o polaco Jorge de Bem, um dos míticos jornaleiros dos tempos idos, dono de uma banquinha na Praça Tiradentes. Esses comerciantes eram mais conhecidos que o prefeito e o padre. Ou pelo menos assim funcionava com seu Jorge; com o José Avelar de Melo – da Banca do Melo, que ficava no “túnel da Catedral”; com o Dorival Carneiro, da Praça Carlos Gomes; e – heresia das heresias esquecer – com o Ingomar Heidorn, o recordista inconteste em vendas, cuja loja alcançou glórias de Guinness Book na hoje esquartejada Pracinha do Batel.
Se tenho saudades? Homens e mulheres, choro que nem criança. Meus irmãos e eu fomos criados numa banquinha de jornais – a “Do Português”, na velha Água Verde. A família montava no braço a famosa edição de 3,5 quilos da Gazeta do Povo de domingo. Tínhamos sangue nos olhos para alcançar uma meta quase impossível: bater o índice de vendas do Ingomar e do De Bem. Desculpem a falta de modéstia, mas a gente não fazia feio.
Para além da disputa quase folclórica entre os jornaleiros de outrora, é bom fazer justiça a outra contribuição das banquinhas – a resistência à ditadura militar instalada em 1964. É assunto conhecido, mas ainda deve render pasto para os pesquisadores. A imprensa alternativa é um fenômeno tão antigo quanto o Brasil. Sempre houve indignados, prontos a empunhar a prensa, no século 18 ou no 19. Mas o termo “alternativa” permanece grudado que nem chiclete aos anos do chumbo. De acordo com o jornalista Bernardo Kucinski – o cabra que mais manja do assunto nessas plagas –, nasceram e morreram 150 revistas e jornais nanicos entre 1964 e 1980. Alguém comercializava esse material todo. Bingo.
Tudo teria começado com a revista Pif-paf, assinada por Millôr Fernandes logo depois que um grupo de leitores – que hoje, creio, arde no fogo do inferno – pediu a cabeça do jornalista na revista O Cruzeiro. Seu crime? Ter feito uma versão bem-humorada da narrativa bíblica de Adão e Eva. Pois da Pif-paf em diante pipocaram jornais e revistas com as mais diversas tonalidades e causas, das sexuais às políticas, dando uma banana pros caretas.
O hoje novelista Aguinaldo Silva narrou no documento mais importante sobre o período – a série de vídeos Os protagonistas da história, do Instituto Vladimir Herzog – a saga que era convencer jornaleiros, muitos deles mais reacionários que taxistas, a vender o jornal O Lampião, voltado para o púbico homossexual. Os revolucionários da pena iam de madrugada aos barracões de distribuição – os Ghignones e Chinaglias – e bebiam uma cachacinha juntos, até convencer a turma da banca a levar um lote para suas praças. Lenha.
O problema dos jornaleiros não era apenas a ira dos consumidores crentes de que um mísero pinguinho fora do penico era uma estratégia para transformar o Brasil… em uma Cuba. Volta e meia agentes da Polícia Federal davam batidas nas banquinhas, atrás de material pornográfico – quase todas as 49 revistas da editora curitibana Grafipar, por exemplo, podiam ser carregadas pela turma do Fahrenheit 451 –, assim como para pilhar o que classificavam como jornais subversivos. Estavam no radar publicações primorosas como os jornais Movimento e Opinião. E, volta e meia, os PFs passavam o rodo no debochado O Pasquim, com folga o que mais trouxe contribuições de linguagem à imprensa brasileira.
O fato é que os donos de banca peitavam a censura e vendiam os nanicos – não raro tendo o material escondido embaixo do balcão. O freguês fazia sinal com o olho, o jornal ia para o saco plástico e a liberdade de expressão, restabelecida. Não os tomem por “de esquerda” ou coisa que valha. Em depoimentos recolhidos aqui e ali, os jornaleiros de então dizem em coro: “A banca existia para vender jornal”. E ponto. “Tinha veículo de imprensa obrigado a publicar receita de bolo no lugar da notícia. Os alternativos traziam informações das quais a gente precisava”, conta Gregório. O preço da desobediência podia ser alto.
Tanto Melo quanto Jorge de Bem chegaram a encontrar bilhetinhos embaixo da porta de ferro – com ameaças de explosão da banca. Vinham do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, que via nos jornaleiros uma célula baderneira. Hoje é de rir, mas não à época. Curitiba não chegou a verificar atentados às banquinhas, como aconteceu no Rio de Janeiro, mas havia o cagaço de chegar de manhã com o jornal amarradinho e encontrar tudo em chamas. “Rolava à época a história de que um dos incendiários dizia que adorava o ‘esporte’: com tanto papel dentro, a banca explodia como uma caixa de fósforos”.
Em tempo – a soma das ameaças levou Gregório, recém-formado em Jornalismo pela PUCPR, a fundar, em 1979, a Associação dos Donos de Bancas de Jornais e Revistas. “Era nossa defesa contra a barbárie.” Vieram dias melhores – e sol continuou a bater nas bancas de revista, como na canção do Caetano. Até que a uberização do planeta deu de, ela mesma, mandar as banquinhas pelos ares. Não dá pra dizer que o sonho acabou – tem as bancas do Ceará, no Centro; a “do Alex”, no Juvevê; a “do Daniel”, a na Praça do Atlético… Mas hoje é dia de dizer: “De Bem, tua banca vai deixar saudades. Obrigado”.