José Carlos Fernandes

Naquela pracinha tem um café…

José Carlos Fernandes
12/08/2018 20:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Está lá – na Bíblia – que Deus criou o mundo em sete dias, dando-se depois um descanso, palavrinha danada de marginal aos debates trabalhistas de agora. Pois em sete dias o mundo da assistente social curitibana Fernanda Rossa, 39 anos, e da psicóloga catarinense Carolina Miranda do Amaral e Silva, 35 anos, deu um salto triplo na barra, cravado. Foi o tempo necessário para que as duas vissem um antigo posto policial do bairro Água Verde – entregue à sorte – ser reformado e se tornar um café social, original até a última gota de calda de chocolate despejado sobre o bolo de cenoura. São 16 metros quadrados – apenas –, mas o bastante para abrigar uma revolução anunciada. Aos fatos.
O local – batizado de Sete Espresso, numa referência ao tempo recorde em que foi erguido – ocupa um cantinho da micropraça Maria Bergamin Andretta. Tem como vizinhos o Hipermercado Condor, a festejada Escola Municipal São Luís, a Paróquia do Sagrado Coração de Jesus e o Cemitério Municipal da Água Verde. Do lado, um tradicional ponto de táxi. No entorno, agências bancárias a dar com o pé. Em trânsito, a companhia de milhares de automóveis que circulam pela avenida que dá nome ao bairro. Em miúdos, o estabelecimento é pequerrucho, mas está numa dessas esquinas em que tudo acontece – literalmente. Ali, os fregueses – e já somam mais de 50 por dia – são atendidos por mulheres que cumprem pena em liberdade, monitoradas por tornozeleiras eletrônicas. Na cara e na coragem, a iniciativa virou uma vitrine de que é possível reinserir pessoas condenadas pela Justiça, de modo a diminuir a reincidência e o dia nascer feliz.
Nos últimos cinco anos, Fernanda e Carolina – cada uma em baia própria – deram de se envolver com o sistema prisional. A primeira, por ossos do ofício, em ações de amparo a dependentes químicos. A segunda, por causa de uma dessas coincidências da vida. Houve um crime no condomínio onde era síndica. Ao ser arrolada como testemunha, conheceu o advogado de uma das partes, Dálio Zippin, conhecido por sua atuação em prol dos direitos humanos. Zippin soube que a síndica atuava como sexóloga e chamou Carol para trabalhar em seu escritório. Foi ali que a guria descobriu o caminho que levava à Penitenciária Estadual de Piraquara. “Os presos precisam falar sobre educação sexual”, convenceu-a Zippin, ao fazer uso do faro habitual, catapultando-a de vez ao seleto grupo dos que se dedicam às políticas do cárcere.
É um mundo à parte. Em 2012, a Fundação Rosa Luxemburgo, da Alemanha, em parceria com o Instituto Perseu Abramo, de São Paulo, publicou a vertiginosa pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. Com perdão à frase gasta, os dados ali revelados são um chute na boca do estômago. Os resultados mostram o cenário obscurantista em que estão mergulhados os gays brasileiros e, de quebra, os demais excluídos deste latifúndio. Paralelo ao ódio aos LGBTs, o estudo revelou a ojeriza monstruosa que brasileiros têm aos ateus e aos dependentes químicos. Que o horror a pobre não se resume a uma blague televisiva do Caco Antibes. Por fim, sobrou para os presos e presas, aos quais nossa boa gente reserva seus piores sentimentos.
Frases repetidas à exaustão pelas vovós – do naipe de “pau que nasce torto morre torto” e “pasta que saiu do tubo não volta mais” – parecem sobreviver às evidências contrárias, tamanha a recusa dos entrevistados em admitir que um detento possa começar de novo. Numa das questões da pesquisa, perguntava-se que “tipo” faria você, eu, o seu João e a dona Maria atravessar a rua, só para não ter de cruzar na calçada com o indesejado. Pois os ateus, as travestis e os ex-presidiários ganharam um baú de votos e de pedras de Geni. Bom – esse dado é o suficiente para atestar, em cartório, se preciso, a ousadia de Fernanda e Carol em abrir um café em que as atendentes, até pouco, cumpriam pena em regime fechado.
À historinha: Rossa & Miranda sentiram o preconceito lhes morder os calcanhares assim que criaram o Projeto Geração Bizu – iniciativa em prol da capacitação profissional e inclusão de presidiários que chegam à etapa do regime aberto. Era mais jogo contar grãos de areia na praia do que alçar algum parceiro para o programa. De uma lista de 90 empresas contatadas, duas responderam ao contato feito por elas. Os incentivos externos (e internos) para que deixassem de gastar a juventude “com quem não merece” pipocavam de todos os lados, mas nada que as fizesse arriar. A propósito, “bizu” é uma gíria da prisão que denomina a conversa sussurrada dos detentos, à noite, na escuridão e silêncio das “jegas” – ou camas dos beliches. “Os policiais gritam ‘chega de bizu’. Ali vive uma turma cuja voz nunca é ouvida”, sintetiza Fernanda.
Ao fim da peleja, venceu o ditado polonês: “No balançar da carroça, as abóboras se ajeitam”. Coisa de filme. Em meio a uma força-tarefa para capacitar presos para se tornarem vendedores ambulantes, surgiu uma ideia das boas. Um antigo quiosque da PM, na Água Verde, estava prestes a completar bodas de abandono. Havia pouco mais de uma década o local servia de mocó e de motivo de reclamação por parte da população. Não abrigava mais policiais e estava entregue às traças. Virou um monumento símbolo do descaso. A cada vez que a imprensa levantava a poeira da segurança pública, o retrato do quiosque ganhava destaque, como prova de algo ia mal.
Pois acabou que Fernanda Rossa botou o olho no puxadinho, que pela obra dos deuses acabou emprestado ao Geração Bizu. Na esteira, surgiu um parceiro, que arrebanhou outros tantos, que mal caberiam aqui. Vieram grafiteiros, paisagistas, designers. Pois é – acontece. Em vez de um café modesto, para comprar um pingado ou uma biquinha sem mais, ganhou estatura a proposta de um espaço gourmet, incrementado, plantado num dos cruzamentos mais concorridos da região – inclusive em dias de sepultamento. Seria perfeito não fosse, há pouco mais de um mês, um incêndio fazê-lo virar cinzas, numa concorrência desleal com os inquilinos do cemitério, logo em frente. “Acabou”, desatou Carolina a chorar. Mas que nada. Leopoldo Guimarães, da construtora Mora Constrói, o parceiro encantado, viu na labareda toda mais um sinal de que deveria seguir adiante. Teve a ideia de, em sete dias, erguer um café dos escombros, o Sete Espresso. Assim se deu. Diz muito.
A reforma e a inauguração despertaram curiosidade na velha Água Verde – território histórico de anarquistas da Colônia Cecília, braços fortes da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, operários da Todeschini, artesãos… Houve, claro, quem, em surto, quisesse banir a novidade, debaixo de um protesto messiânico contra as garçonetes que trajam tornezeleiras. Mas a generosidade venceu a cegueira. A informação de que o café emprega mulheres que acertam as contas com a sociedade correu a redondeza. “Não podíamos esconder. O efeito seria pior”, dizem as empreendedoras sociais, que se colocam prontas para qualquer sabatina.
É provável que não precisem gastar muita saliva. Aberto das 8 às 20 horas, o estabelecimento recebe uma média de 50 fregueses por dia – a turma da novena, do super, do velório, da fila do banco. Pelo que tudo indica, a condição das garçonetes não bota pavor em ninguém – a curiosidade gera o papo que dilui os sentimentos bobos e leva as armas ao chão. “Perguntam até para a gente se usamos tornozeleira”, dizem as empreendedoras, sem uma ponta de dúvida: fizeram a coisa certa.
Por “coisa certa” entenda-se transparência. Fernanda e Carolina são partidárias de uma ideia propagada por uma meia dúzia de sociólogos, a exemplo de Francisco de Oliveira, a de que o Brasil tem uma relação esquizofrênica com o sistema prisional. Sustenta-o com seus impostos, mas está de costas para o problema. Não quer nem ouvir falar do que se passa nos presídios e não se cansa de demonstrar o desejo de vê-los cada vez maiores, mais distantes e mais parecidos a um vagão de metrô às 6 da tarde. Como se já não o fossem. Inverter essa equação é uma condição para que as prisões cumpram o que prometem. E uma promessa começa ali – no posto policial que virou passado.