José Carlos Fernandes

A neve de 75, a Geada Negra e nós

José Carlos Fernandes
16/07/2017 21:00
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Felipe Lima

“Poxa – vocês não têm outro assunto?” – protestava o remetente do email, um dos pintores paranaenses mais importantes de todos os tempos. Foi em 2015. Ele se referia à série de reportagens publicadas pela Gazeta do Povo em alusão aos 40 anos da neve de 17 de julho de 1975, um daqueles dias que não terminou [https://casapino.com.br/vida-e-cidadania/especiais/40-anos-da-geada-negra/]. Não há como lhe tirar a razão – ou pelo menos parte dela. Faz agora pouco mais de quatro décadas que – serelepes feito a turma da fanfarra – esperamos que a temperatura despenque sem dó e que traga remessas expressas de floquinhos caídos do céu. Tais condições climáticas são imprescindíveis para reeditar o conto de fadas da “Curitiba Branca de Neve” (com os devidos créditos ao autor da frase, o jornalista Mussa José de Assis, in memoriam). Nosso contentamento, vejam só, depende de uma má notícia do Simepar.
De fato – a pauta cheira a bolor, nascida da preguiça em pensar algo melhor. De tantas vezes tratada, difícil que provoque faísca – virtude que, de resto, espera-se de uma matéria. O roteiro quase sempre causa bocejos: alguém vai mostrar uma foto amarelada feita numa Kodak. Todos rirão dos supimpas gorros setentistas de lã com pompom no cocuruto. Alguém há de lembrar de uma tia que guardou gelo numa vasilha – o mais inocente dos suvenires. Da miss Paraná que usou traje típico insólito – vestiu-se de neve, “neve de boá”. Outro deve comentar que todo mundo fez guerra com bola de gelo e que fomos bons camaradas por algo como seis horas seguidas, um recorde na convivência entre malvados favoritos e malvados desfavorecidos.
Eis o ponto. A neve de 1975 até pode ser um solene atestado de falta de assunto, mas diz algo sobre nós. Daí, talvez, ser lembrada, com tanta insistência, a ponto de parecer uma psicose à espera de catalogação. Somos crianças gritando “mais”, em negativas à brincadeira que ano a ano insiste em não se repetir. Até onde se tem notícia, ninguém ainda se dignou a escrever um tratado sociológico a respeito – o que se tem mais próximo disso é uma grande reportagem da jornalista Rosirene Gemael, para a finada revista Leite quente, em 1990. De modo que o terreno está livre para toda sorte de especulação. O psicólogo social Jamil Zugheib não virou o intérprete dos sentidos da Guerra do Pente de 1959? Pois alguém que se habilite decifrar 17/07/1975.
Sugiro aos interessados que recorram aos jornais da época. É o que há. Mais sisudos e esquemáticos do que o L’Osservatore Romano, os “tijolões” locais saíram do armário e partiram para uma cobertura, digamos, capaz de captar o calor das ruas. Por ironia, o termo técnico para esse tipo de texto é “reportagem de clima”. Fizeram bonito. Gazeta do Povo e O Estado do Paraná – para citar dois – trataram da tal súbita alegria coletiva, capaz de irmanar coxas-brancas e rubro-negros, poloneses e ucranianos, árabes e judeus na Praça Tiradentes. Nas lojas de discos – e eram muitas no Centro – saíram da vitrola o hit de Agepê, “Moro onde não mora ninguém” (sem trocadilhos) e “Alegre menina”, de Djavan, um dos sucessos da novela Gabriela, e entraram canções natalinas. Em pleno julho – Papai Noel de férias, “Jingles Bells” na caixa. De modo que se pode afirmar que quanto mais frio, mais melhora o nosso caráter e humor – uma questão a ser investigada pela psiquiatria.
Quem duvida, que confira os índices de criminalidade curitibana no inverno. Fazem inveja a eldorados, como Maripá e Entre Rios, no interior do Paraná. É fato que, em 75, a Delegacia de Costumes não deixou de prender profissionais da noite por “vadiagem” – expressão cujo significado os nada confiáveis menores de 30 anos imaginam qual era. Mas os tiras se comoveram. As gurias foram soltas, para que enleassem as pernas nuas num cobertor, abrindo margem para uma outra hipótese: as temperaturas baixas, quiçá as baixíssimas, fazem aflorar nossa generosidade e relaxam os espartilhos morais. Certas normas de nada valem diante da perspectiva de que todos – sem exceção – estão sujeitos a morrer de frio. Bonito.
A brincadeira sobre o amor estranho amor dos curitibanos com a neve rende pelo menos um bom papo de salão. Com a vantagem que sai todo mundo abraçado, o que não acontece quando o tema é, por exemplo, o mal-estar provocado pela palavra “república”. No mais, 43 anos depois, convenhamos, já são horas de avançar nessa prosa.
Aqui vai um palpite. Tudo indica que a cidade convive com dois imaginários da neve – mas insiste em privilegiar o mais escapista. Há a lembrança daquela manhã em que tanta gente colocou três meias e saiu para saracotear no gelo. E a recusa que a nevada de 1975 é parte de um evento mais decisivo da vida paranaense – a Geada Negra, em 18 de julho. No nosso “dia seguinte”, a zero grau centígrado, os 850 milhões de pés de café do estado foram queimados por dentro – definição científica e poética ao mesmo tempo.
Foi o que bastou para que a pressão dos progressistas para que o Paraná dito arcaico, cheio de cafezais em flor, virasse as costas para 4,5 milhões de conterrâneos que viviam das lavouras, em 192 cidades. Foi uma das maiores marchas de empobrecidos de que se tem notícia.
Que me passem uma carraspana, que apliquem a palmatória, mas a geada de 1975 merece figurar ao lado de marcos como o desmembramento da Província de São Paulo, o Cerco da Lapa, a fundação da universidade, a paixão curitibana por Didi Caillet, os ciclos do mate e da madeira… Mais do que citar que naquela madrugada os cafezais paranaenses viraram poeira, tenho de lembrar das famílias que subiram numa rabeira de caminhão e deixaram para trás as fazendas de café. Enquanto a gente fala da neve – vendo a pista de gelo de algum shopping – nas vilas mais distantes da capital – podem ter certeza – alguém recorda a tristeza que foi ter de começar do nada, em rincões insalubres do Sítio Cercado e Cajuru. Estima-se que 200 mil novos curitibanos – acossados pela Geada Negra – vivam hoje em nove bairros da capital.
O Museu da Periferia (Mupe) – iniciativa da líder comunitária Palmira de Oliveira – acenou que vai registrar depoimentos dos órfãos das lavouras. Segue devagarinho, que dinheiro não tem, mas não custa gritar um “taca-lhe pau”, para que se ponha a gravar a voz dos retirantes. Eles vieram do Norte Pioneiro e do Norte Novo e do Novíssimo – das rebarbas de Jacarezinho, das franjas de Londrina, das belezuras de Umuarama – e deram a Curitiba um outro sotaque, novos paladares, um jeitão. Adocicaram a dureza da nossa fala de britadeira. Temperaram com pimentas ardidas a luta pela habitação nos arrabaldes. “O café acabou”, diziam a quem perguntavam de onde vinham os recém-chegados. Até hoje, arrisca, sentem saudades da roça.
Para quem gostaria de ouvir esse povo – e não sabe por onde começar –, uma pista. Ao bater pernas pelos subúrbios, em busca dos órfãos deixados pela Geada Negra, repare nos pequenos quintais. Em boa parte deles, cresce um pé de café – lúcido desafio à climatologia, à agronomia e ao que mais. Não raro, cobrem-no com um cobertor. Bata palmas no portão e, em segundos a casa será sua. Com sorte, vai encontrar alguém cantarolando “Meu cafezal em flor”, sucesso na voz de Cascatinha e Inhana. E a gente – que jurava que o começo, meio e fim dessa história era nossa guerrinha de gelo –, se vê, súbito, abraçado a uma velha cabocla. Emoções sertanejas.
Em tempo – é de torcer para que autores como Miguel Sanches Neto ou Domingos Pellegrini, dentro os que se dedicaram a colocar o Paraná no centro da ficção, escrevam sobre o 17 de julho de 1975 e a Geada Negra. Vão encontrar matéria-prima farta no que a imprensa publicou. Ainda que acusada de repetitiva, fabuladora e curitibocêntrica, bem ou mal não deixou esquecer aquele misto de felicidade e infelicidade que deu ao Paraná uma cicatriz e um verso digno de uma modinha triste. Trata de uma flor bonita e seu fruto amargo. Eita.