José Carlos Fernandes

No tapete mágico do Chaim

José Carlos Fernandes
26/11/2017 13:00
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Arte: Felipe Lima

“Simpatia, o que foi que deu errado?” Essa pergunta é uma das muitas – não menos deliciosas – desferidas um dia pelo repórter policial Ali Chaim, 78 anos, a seus entrevistados. Seria uma indagação tola, não estivessem os caras algemados ou trancafiados em celas mais entupidas do que Biarticulado das seis da tarde. Secos por um cigarro, rendiam-se antes ao “turco” de olhos claros e voz curtida no tabaco do que ao delegado. Orgulha-se de nunca ter negado um Minister ou um Carlton a ninguém. É seu pão, seu copo d’água. A gentileza costumava ser retribuída: “O que deu errado Chaim? Fui abandonado, não tive escola, passei fome…” Outros preferiam o bolero de frases como “eu não presto” ou “é tudo culpa de uma mulher desgranhida”.
Se as contas estiverem certas, Ali Chaim fuma há 68 anos – inclusive dentro dos táxis, se não o botarem para correr. Poucos motoristas – a não ser que sejam ubers de primeira viagem – se disporiam a fazê-lo, sem antes o saudarem com um sonoro “Califa 33”, nome de guerra do jornalista. Ele é o maioral. Depois de três décadas de madrugadas na porta das delegacias – tempo em que se tornou o mais famoso repórter policial das araucárias –, Chaim passou a cobrir a área da saúde, na Rádio Educativa. Lá se vão uns 20 anos longe do mundo cão, como se dizia. Conversa com médicos e se tornou capaz de falar de um câncer de mama com o mesmo preciosismo com que descrevia para Dalton Trevisan, seu amigo, as curvas de uma vedete da Boate Marrocos, uma das muitas casas do ramo que frequentou.
O tempo, contudo, não apaga o bas-fond, cujo suor está colado ao seu cangote, como uma segunda natureza. Basta algum veterano ouvir um de seus graves brotados das profundezas do esôfago para lembrar do personagem que o consagrou, no Show da Notícia do Canal 4, década de 70. Na contraluz, Califa 33 narrava crimes ocorridos na capital e redondezas. Havia um roteiro, o qual desrespeitava sem pudores, acrescentando-lhes “cacos” cheios de bossa. Nas suas versões, um criminoso nunca se limitava a pular a janela e fazer refém a dona da casa, enquanto metia as fraclanzas num saco de estopa. Antes, brincava com o pequinês da vítima ou arrumava a gola rolê no espelho da sala, como se fosse João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha. O irresistível Chico Picadinho. Ou o guapo Jack Palance, um assaltante bonitão da fauna local.
A tática de envernizar a reportagem policial dava tanto Ibope que – em poucas semanas no ar – Chaim entrou de mocassim para a galeria dos “carrapichos” ilustres, a exemplo de Amado Ribeiro, o mito do jornal Última Hora que virou personagem de Nelson Rodrigues. Dizem que arrancava um sanduíche de mortadela do bolso enquanto observa as vísceras de um cadáver. Outro do naipe, Jacinto Figueira Júnior, o Homem do Sapato Branco. E Gil Gomes, que dispensa salamaleques. Em tempo – não comparem Chaim aos dois últimos: ele fica buzina.
O que a silhueta escondia na TV, sua voz embargada revelava. O som ficava nas orelhas. Se na padaria pedia “três pãezinhos, querida”, pronto era denunciado pela dicção, vendo-se recepcionado com dois tons de alegria acima do normal. Curioso. Chaim passou pela vida contando histórias de meter medo, mas é bom mesmo em divertir e fazer amigos, um Dale Carnegie criado na Avenida Cajuru. Um dos registros sobre seu trabalho – o documentário Califa 33, do cineasta Yanko Del Pino, tem cenas de arrepiar. Numa delas, o jornalista entrevista um abusador de criança. “Precisava fazer isso?”, descontrola-se. Noutra, mostra-se injuriado ao flagrar uma ação policial contra operárias de uma tecelagem, acusadas de afanar tecidos. Mas nada se compara às passagens em que leva um lero com recém-capturados pela PM. Seus mantras “o que deu errado?”; ou “sua mãe sabe disso?”, entre outras, são as pergunta que nos fazemos tantas vezes, afinal. Em minutos, a diferença entre nós e a turma que entrou em cana é que eles estão presos, e nós não. O jornalismo que pratica não é perfeito, mas não é babaca, nem hipócrita, nem ensaiado. Não causa espanto que Ali seja próximo do Vampiro e que bebesse tinas com Paulo Leminski: nosso Chaim está mais para ficção do que para noticiário.
O pai de Chaim – pai também do livreiro Aramis Chain – era um libanês que fez dinheiro no Brasil. Ganhou seus dobrões nos arrabaldes do hoje Mercado Municipal. A contar pela versão do jornalista, dava nada mole vida aos filhos. Entre as tarefas, encarar serões de separação de frutas e cereais na distribuidora de alimentos da família. Foi nesses empuxos que Ali se aproximou de trecheiros, viajantes sem rumo, expulsos do campo, alienados, de uma gente sem lenço e sem documento pela qual pegou gosto, contratados por Hussein para separar bananas e coisa e tal. Mais do que com as histórias de miséria e violência, atinava ao linguajar.
Aprendeu o que pôde do jeitão dos pobres de falar. Ao abandonar a carreira de contador e se tornar repórter, juntou os chavões policiais, as gírias de sua geração (“é grupo”), a marra da malandragem (“a maior vaselina”) e jargões da profissão, como “carrapicho”, termo autoexplicativo para qualificar (ou desqualificar) o profissional de imprensa que vive grudado na barra da calça das autoridades. Amigos, fãs, parentes se deram ao trabalho de redigir um “dicionário Chaim”, para circulação interna em churrascos e festa de aniversário. O compêndio é sobretudo uma tentativa doméstica de ver a boca maldita do repórter ganhar a posteridade.
A somar pelo número de reportagens que protagonizou, Chaim está perto disso. Os biógrafos terão matéria prima da qual se ocupar, pois a lenda é a mais pura verdade. “Olhe como eu era bonito”, costuma blefar, ao mostrar seus álbuns e ao sussurrar no ouvido as paixões que despertou nas “marafas” – antes de subir ao altar com a advogada Esmeralda, filha de um delegado, sobrinha de Lala Schneider, mãe de seus três filhos. De todas, a foto mais famosa é a bordo do Fusca branco, com o qual fazia a ronda da noite para as rádios nas quais trabalhou, entre elas, a Colombo. Mas nem retratos, nem dicionário superam em importância das infinitas gravações de reportagem – com folga um dos acervos mais preciosos da imprensa “espreme que sai sangue” do país.
À revelia da sua falta de cerimônia, da falta de freios e do absoluto desconhecimento dos novos ditames da correção política, Ali Chaim tem pendores de arquivista. Guarda tudo – inclusive traquitanas de vidro, penduricalhos, como se fosse discípulo do escultor Nelson Leirner. Não tem nem lei nem ordem, mas salvou do lixo uma parte considerável das entrevistas que fez, com bandidos e com policiais. Quando as põem para rodar, destacam-se duas de suas grandes virtudes: 1) Sabe escutar; 2) Faz perguntas como se usasse a pinça de um cirurgião. É simples e cortante tanto quanto um Geneton Moraes Neto. Daí ter conseguido o quase impossível – extrair frases inteiras de animais acuados, com passaporte assinado para o inferno.
A propósito, aconteceu com Chaim situação semelhante à de outros repórteres policiais que marcaram época. Na biografia Um homem chamado Maria, de Joaquim Ferreira dos Santos, consta que o jornalista e compositor pernambucano Antônio Maria percebeu, lá pelos meados da década de 1960, que não tinha mais graça escrever crônicas com as histórias que ouvia na sala de espera das delegacias cariocas. Saía o ladrão de galinhas, o namorado ciumento, entravam os esquadrões, os bandidos de colarinho branco, os traficantes com ferocidade empresarial.
Lá pelas tantas, Ali Chaim também se entristeceu ao não saber mais quem estava em que lado e lugar. Hora de parar. Parou. Os taxistas com verve de chofer de praça, os coroas da XV, as senhorinhas que ouviam rádio às escondidas, os saudosistas continuam o tratando como o Califa e se atiram no seu pescoço. Suspeito que o tomam por um condutor do tapete mágico. Talvez o mundo que ele narrava não fosse melhor, mas parecia menos banal. Os fatos eram contados à sombra, debaixo de uma voz grave à The Shadow, algum humor e doce inocência. Ouvindo-o, isso é incrível, a gente entende o que foi que deu errado.