José Carlos Fernandes

Nos tempos do “sem lenço, sem documento”

José Carlos Fernandes
13/05/2018 21:00
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Carlos Marés - 08-05-2018 - Carlos Frederico Marés falando sobre o tempo do sem lenço e sem documento, quando a ditadura prendia jovens sem carteira de identidade no bolso. Foto: Marcelo Andrade. Arte: Felipe de Lima Mayerle.

Quem viveu, lembra – quando se saía de casa, a mãe sempre queria saber se a gente levava no bolso o lenço e o documento. A recomendação – ou pelo menos eu assim pensava – tinha a ver com saberem qual era o nosso nome, em caso de atropelamento, para não causar transtornos no IML. Ou para nos devolverem para a família, na hipótese de perder a memória – tal e qual aconteceu com a Nathália Timberg na novela O tempo não apaga; com a Regina Duarte em Selva de Pedra.
Só fui entender do que se tratava em 1977 – quando tinha 12 anos de idade e fui parar num show da banda A Chave, no Estádio Couto Pereira, na companhia de uma de minhas irmãs. Ela disse que ia me levar para passear, mas me usou como álibi para encontrar um namoradinho. Os dois sumiram na multidão e fiquei só, encostado a uma coluna, sem jeito em minha roupa de ir à missa, bigodinho ralo e corte meia cabeleira curta. Deveria ser o único naqueles trajes, mas nada que impedisse a polícia de me abordar: “Documento”.
Com o olho direito no fardado contei da mana, então desaparecida; com o esquerdo via uma rapaziada ser levada para o camburão. A quem interessa, mesmo sem RG no bolso, fui poupado, sendo liberado para assistir à Sessão da Tarde no sofá, o que faria no dia seguinte, abraçado a um pacote de bolacha Maria. Anos depois, por sarro, comecei a dizer que foi ali que perdi minha chance de ser preso político e de me tornar um revolucionário mais novo que o Alfredo Sirkis, autor do livro de cabeceira de uma geração – Os carbonários.
Em tempo – naqueles idos, a ditadura militar estava perto de ir para as cucuias, mas não em Curitiba, como bem mostram as pesquisas do historiador José dos Santos de Abreu. Uma pá de “viúvas” do regime agonizante veio dar expediente por aqui – campo aberto para exercerem por mais uns anos o ofício de arapongas. Explica muita coisa sobre a República.
Àquela altura, a música “Alegria, alegria”, do Caetano Veloso, era já um clássico. Contava dez anos, desde seu lançamento num festival da Record. Mas foi depois da batida policial que se tornou para mim a melhor explicação para a frase “sem lenço, sem documento”. Segui pela vida ouvindo aquelas guitarras – de modo a entender o sentido tropicalista de “tomar uma Coca-Cola” e “Cardinales bonitas”. Confesso que me senti esfaqueado quando o Caetano declarou não ser muito fã da canção, e que não passa de “uma marchinha de Lisboa”, como afirma no soberbo documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil.
Volta e meia, a associação entre o “sem documento” e a ditadura vem à baila. Uma das cenas mais tocantes da minissérie Anos rebeldes, de Gilberto Braga, é aquela em que a militante Heloísa, personagem de Cláudia Abreu, é assassinada numa blitze. Ao enfiar a mão na bolsa, os policiais pensam que vai sacar uma arma, quando na verdade a heroína pegava sua carteira de identidade… falsa. Morre com lenço e com documento, ao som de “Call me”, na voz de Chris Montez. O Poder Jovem foi abatido a bala, como se sabe. Noutro documento sobre o período – O Sol – o mesmo Gilberto Braga conta como soube da tortura sofrida pela amiga Tetê Moraes, uma das diretoras do filme. Ele narra inclusive como uma sua empregada, que acompanhava o drama de Tetê, resumiu qual seria o delito que levou aos infernos: “Vadiagem, né”.
Não faz muito, o novelista Aguinaldo Silva lançou o livro Turno da noite – memórias de um ex-repórter de polícia (Ed. Objetiva). Ainda que trate de seu emprego como carrapicho – jargão para jornalista que cobre porta de cadeia – a obra é, em paralelo, um informe sobre a criminalidade nos tempos da ditadura. Mais de uma vez, Silva cita as prisões arbitrárias dos jovens flagrados sem documento – dando sequência à tradição da falta de provas. Conta que no Rio de Janeiro havia, inclusive, um presídio na Quinta da Boa Vista, o “Galpão”, destinado aos presos por “vadiagem”. Muitos deles – protesta – se viram condenados a seis meses de prisão. Seu crime? Estarem desempregados.

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O advogado paranaense Carlos Frederico Marés, 71 anos, conhecido por sua atuação em prol dos povos indígenas e das questões agrárias, entre outras causas, viveu “quase” todas as paixões políticas da geração 60. Era ainda um secundarista – estudante do Colégio Estadual do Paraná – quando, em companhia de amigos, passou a frequentar uma escola de formação no Partido Comunista Brasileiro. Acontecia aos domingos de manhã, no Edifício Mauá, na altura da Praça Carlos Gomes – o que o fez desistir da missa para estar na companhia de mitos da esquerda local, como José Rodrigues Vieira Neto Netto, que seria cassado pelo regime de 64.
O menino Carlos assistiu consternado ao Golpe, decepcionou-se com o partidão e se lançou na militância estudantil, chegando a presidente do diretório acadêmico da Faculdade de Direito da UFPR. Em 1968 – o ano que não terminou – participou de episódios como a Ocupação da Reitoria, da derrubada do busto do reitor Suplicy de Lacerda… Não foi ao desastrado congresso da UNE, em Ibiúna (SP), mas trabalhou pesado para realizar aqui um encontro clandestino de estudantes, já debaixo do AI-5.
Ficou conhecido como o episódio da “Chácara do Alemão”. A missão de Marés era conduzir estudantes até o local – então no distante Boqueirão – a bordo de um reluzente Simca Chambord cinza, emprestado de seu pai, o também advogado Carlito Marés. Numa das idas e vindas com a rapaziada, soube que toda a turma tinha ido em cana. Deixou o rabo na porta, como se dizia, mas não por muito tempo – provou de pequenas detenções e amargou duas condenações à prisão, em processos movidos com base na Lei de Segurança Nacional. Com a mulher, Dircinha, partiu em 1970 para o exílio – primeiro no Uruguai [via Paraguai], depois no Chile, seguindo para a Dinamarca, com um hiato de dois anos em São Tomé e Príncipe, na África. Uma saga.
Em Copenhague, depois de amargar anos de desemprego, sobreviveu de dar aulas de português, no embalo do interesse que a Revolução dos Cravos gerou pelo nosso idioma. Voltou ao Brasil em 1979, sob o embalo da Anistia – com fôlego para continuar o que tinha deixado para trás: entregou-se às políticas de direitos humanos. A propósito, nunca se arrependeu de suas escolhas, como aconteceu com Fernando Gabeira – que relatou sua decepção com a guerrilha e tal em obras como O que é isso companheiro? e Crepúsculo do macho.
Marés – difícil negar – teve uma juventude extraordinária. Só lhe faltou mesmo ser preso por vadiagem – como brinca, pois brincar é um modo de lamber as feridas. Nada que lhe impeça falar com precisão sobre o assunto, do alto do que viu e do que estudou nas divisas acadêmicas nas quais circula, na PUCPR. Informa, a propósito, que a vadiagem permanece uma contravenção penal, ainda que nenhum fardado nos peça a carteira de trabalho na rua. Sim – mais do que o RG, o que se exigia era uma prova de que o sujeito tinha registro numa firma, algo assim. “É uma questão antiga”.
O advento da modernidade trouxe, a reboque, a obrigação do trabalho – em especial para os homens e para os mais pobres, moradores das cidades. Vem do século 13 a tradição ibérica de comprovação do vínculo de serviço. “É uma ironia – a partir de 1375, pela lei do trabalho livre, todos são obrigados a trabalhar”, problematiza. “O conceito de vadiagem está ligado não só ao não trabalhar. Quem não trabalha e tem renda não é vadio. Vadio é o que não provê sua própria existência. Nas ditaduras, essa aferição ganha um cunho político”.
Períodos como a era Vargas reforçaram esse forma de controle, muito mais do que se fez no regime militar. Por uma questão muito simples – depois do Ato Institucional número 5, qualquer um podia ser atirado às grades, bastando ser tomado como suspeito. “Não tinha sofisticação. Prendia porque prendia e pronto. Bastava ter pinta de comunista ou de operário”.
A música do Caetano, aliás, defende Marés, talvez tivesse pouco a ver com a facilidade com que os pobres moços e moças eram conduzidos ao xilindró, por não estarem com a carteira de trabalho em dia. “Penso que a expressão se refere mais ao sonho hippie. Os libertários abriam mão da relação social digna, comportada que está embutida no ter um documento”, opina, sobre a letra que fala em caminhar contra o vento, em seguir vivendo. De sua parte – blefa – trocaria “documento” por “guarda-chuva”, pois era essa de fato a preocupação das mães. Logo desiste. Não seria poético. E poesias são biotônicos para suportar a realidade. “Alegria, alegria” a nós pertence, à revelia das zonas cinzentas na qual foi escrita.
PS. Na mocidade, Marés ganhou um lindo lenço branco de cambraia – numa das pontas, bem pequenino, estava bordada uma foice e um martelo, em vermelho. Sumiu. Quem confiscou essa raridade, que a devolva.