José Carlos Fernandes

Nossas histórias com Lucia

José Carlos Fernandes
02/08/2020 11:00
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Eu me alisto entre os que
choraram a morte da jornalista Lucia Glück Camargo, dia 20 de julho, aos 76
anos. Somos muitos em roda dessa fogueira. Como escreveu um de seus filhos, Fabiano,
havia a aposta de que LC viveria, por baixo, pra lá de um século. Um consenso –
a imortalidade de Lucia. Sobre ela, repito o que tantos e tantos declararam no
calor da hora das redes sociais. Dona Lucia tinha uma baita energia – energia
que não encontrava sombra no cansaço, mas na alegria.
A ela, cabe dedicar, no
coreto da praça, a música “Força Estranha”, de Caetano Veloso. Pertence-lhe em especial
a frase “a vida é amiga da arte”. Não tenho dúvidas de que foi o seu melhor –
gostava da cultura e a cultura gostava dela. Andavam de braço dado, jogavam
amarelinha e ainda faziam piada. Daí a lista infinda de festivais, projetos e
espetáculos que levaram seu selo, nos mais de 40 anos em que fez o que gostava,
gozando de todas as recíprocas verdadeiras. Artistas tinham em Lucia uma
parceira de dança.
Em condições pré-Covid, a morte de uma mulher como ela geraria uma arena de efemérides. Durante a pandemia, o peso de seu passamento se agravou. O elefante saiu correndo do circo em chamas. A arte está só, mesmo com os artistas fazendo companhia a todo mundo, em lives arrastadas, debaixo de abajures, vestindo pijamas e vendo os boletos se avolumarem. Não bastasse a maré-baixa, perdeu-se a timoneira do setor, operária padrão, inventora e que título mais lhe arranjarem. A vontade é dizer “assim não vale, não brinco mais”. Resta contar nossas histórias com Lucia Camargo.
Eu a conheci numa sala de aula da UFPR, onde lecionava Televisão para o curso de Jornalismo. Sabíamos que pertencia ao núcleo duro dos cardeais ligados ao arquiteto Jaime Lerner. Sua posição implicava em algumas ausências e, quando presente, pouca paciência com conversa mole. Pelo menos diante do quadro negro, não se mostrava muito dada a reclamações. Fazia o tipo assertiva apressada. Não sei os outros alunos, mas eu me pelava de medo de levar uma carraspana da professora mais famosa do curso. E olhem que dividia o departamento com a fotógrafa Elizabeth Vasconcelos e o publisher João Féder.
Nossa “primeira vez” se
deu numa das ocasiões em que ela parecia ter saído no melhor de um show para
nos atender na UFPR. Não estava para grandes amores. “Quem é José Carlos?”,
perguntou, com uma pilha de pautas nas mãos. Não fez a voz da professorinha do
Ataulfo Alves. Quase me desculpei por antecedência, por existir, por respirar,
qualquer coisa assim. Ao me aproximar, ouvi-a dizer que tinha gostado do meu trabalho.
Perguntou na lata se eu estava atuando na área. Não estava. Dispôs-se a me
ajudar e não ficou na promessa. Recebi uma oferta de serviço logo em seguida,
por indicação dela. E outra ainda. Não rolaram, mas esse é outro capítulo. Como
me achava numa fase ruim pra diabo – chorando até com beijo de novela –, só me faltou
lhe agradecer de joelhos. Existia amor em CWB.
Por esses dias, ao ler os
agradecimentos aos borbotões que lhe fizeram na web, perdi as contas dos que creditaram
a Lucia o primeiro emprego. Nossa amiga era um verdadeiro linhão informal. E se
deu com os outros da mesma forma que ocorreu comigo: LC chegou de graça e do
nada, sem mais nem por que, como que por encanto. Sei que seu rompante de
ajeitar a vida dos outros não se resumia a nos arrumar ocupação. Bobeasse,
trocava nosso telhado e botava uma orquestra para tocar em cima.
A jornalista Dinah Ribas
Pinheiro – de quem Lucia era contemporânea – conta que certa vez a colega saiu
da garrafa, tipo “Jeannie”, para ajudá-la a conseguir um visto para ir ao
exterior, fazer um curso da OEA no Equador. Eram tempos bicudos de regime
militar, maus bofes nas embaixadas, desconfianças em série. Mas Lucia sempre
conhecia alguém, para quem mandava um plá diplomático e as portas se abriam
como num programa do Sílvio Santos. Parecia seguir a lógica do “fui com a tua
cara, não preciso de motivos”.
Tempos depois, Dinah e
ela trabalharam juntas no projeto “Parcerias impossíveis”, sobre o qual a amiga
reivindica que se escreva um memorial. Em se tratando dos feitos de sua
carreira, serão muitos documentos – o do Teatro Paiol, o do Festival de Teatro,
o da vinda do tenor espanhol José Carreras a Curitiba em 1993. Lucia parecia
ter pressa e procurava quem compartilhasse do mesmo compasso. Gostava de
realizar e sabia o que queria. Simples assim. Se não me engano, seu estado de
espírito se traduziu na expressão corporal. Andava rápido. Digo isso porque,
certa ocasião, a segui na rua, resoluto: ia lhe pedir uma entrevista, longa,
documental. Na ocasião, ela tinha deixado Curitiba, fixando-se em São Paulo ou
em Belo Horizonte, não lembro. Entendi que faltava ouvi-la numa pesquisa na
qual até hoje garimpo, sobre as pioneiras a frequentarem redações de jornal em
Curitiba.
Acompanhei-a de longe,
descendo a Rua Cândido Lopes, rumo à Carlos de Carvalho, onde sua família tinha
uma casa tão antiga quanto linda. Sabia que vinha à cidade para ver os filhos e
as netas. Que era ocupada. Temi atrapalhá-la e deixei para outra vez, antes que
me tomassem por um assaltante correndo atrás daquela senhora de cabelos
coloridos. Pena – essa pesquisa nunca ficará completa.
**
Da coleção fazem parte
Teresa Urban – cuja foto tenho numa porta aqui em casa, como um santinho cívico.
Teresinha Cardoso – a primeira a fazer cobertura policial no Paraná. Elisabeth
Fortes – ex-presa política, tal como Teresa. Dinah Pinheiro Ribas –
onipresente. Adélia Lopes – surpreendente; e repórteres que continuaram o
desbravamento nas décadas seguintes, como Elza de Oliveira Filha e Ruth
Bolognese. O material – que agora cresce numa pesquisa da jornalista Myrian Del
Vecchio de Lima, da UFPR – é o bastante para parafrasear a máxima de Pedro
Almodóvar: o mundo das mulheres é mais interessante que o dos homens.
Ninguém sai de uma
conversa com Vânia Mara Welte, por exemplo, do jeito que entrou. Ainda ontem,
de papo no telefone, me contou ter estado com Fernando Gabeira, no Rio de
Janeiro, em 1969, nos dias em que o jornalista e guerrilheiro andava às voltas
com o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick. “Tempos
depois, quando li O que é isso
companheiro?,
entendi porque ele perguntava tanto se alguém tinha ‘nos’
seguido”, diverte-se. “Nos”, pois estava em companhia de amigas, rumo a uma
aventura on the road em Ouro Preto,
bem à moda daquela década. Amigas que lhe foram apresentadas por... Lucia
Camargo.
Vânia chegou à redação do
jornal O Estado do Paraná no momento
em que a década de 1960 quebrava todas as louças da cristaleira. Tinha ainda espinhas,
tranças e saia plissada. Veio pela mão do editor Mussa José de Assis, seu
professor na PUC. Despertou paixões e um verdadeiro bolão entre os marmanjos,
cujo prêmio fica na imaginação do leitor. Todos perderam as apostas, segundo
consta. Foram seus anos dourados e rebeldes no formato madureza. As gurias se
encantavam com o fato de Vânia trabalhar num ambiente mais masculino que um
boteco perto da rodoviária: um jornal. Dentre as curiosas, Lucia, sempre pouco
à vontade no papel de menina do Sion ou coisa que valha.
As versões são
desencontradas, mas Vânia garante que a amiga lhe pediu que lhe arrumasse um
emprego na redação. Acatou e lhe fez todas as honras, destacando para o chefe a
irretocável formação cultural e o texto cintilante da candidata. Com faro,
Mussa acolheu a jovem educada, inteligente e espirituosa que em pouco mais de
uma década seria o caminho mais curto entre Curitiba e os melhores circuitos de
artes do país. Os bichos do Paraná ganharam uma embaixadora.
Num silogismo mais ou
menos perfeito, Vânia arrumou emprego para Lucia, que arrumou emprego para meio
mundo. E Lucia – que dizia não se lembrar da forcinha recebida – garantiu a
Vânia, sem querer, um almoço com Fernando Gabeira – uma lasanha, bem lembra –
enquanto a batata do embaixador americano assava, numa das semanas mais sombrias
da nossa história. Por ironia, as duas deixaram de ser próximas. Lucia se casou
com o jornalista Francisco Camargo, colega de redação, teve três filhos e bateu
seu passaporte como produtora e gestora cultural. Mas a crônica serve para
contar que, ainda que breve, a passagem de LC pela estiva de uma redação de
jornal precisa ser contada. É fato, aliás, que nunca deixou de se apresentar
como jornalista. E que fez parte dos meteoros que abalaram geral a imprensa
paranaense.
A propósito – recomendo a série brasileira Coisa mais linda, dirigida por Heather Roth e Giuliano Cedroni. A personagem Tereza, defendida com brilho por Mel Lisboa, é uma jornalista síntese das mulheres que desossaram a imprensa na década de 1960. A cena em que reivindica um banheiro na redação parece saída da biografia de Vânia. A passagem em que mostra a um jornalista vaidoso o quanto a linguagem que usava era ultrapassada e pedante lembra moderna Lucia, apostando na revolução pela cultura. Por aí vai. A Tereza de Mel é Dinah, Adélia, Beth, Tereza & Teresa, Elza e Ruth – dentre tantas. É muito bom saber o duro que deram, até se tornarem imortais.