José Carlos Fernandes

O arquivo secreto de Carla Amaral

José Carlos Fernandes
10/09/2017 19:04
Thumbnail

Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Nos últimos meses, a curitibana Carla Amaral, 44 anos, esqueceu o que é relax de fim do expediente. De segunda a sexta, sai em disparada do emprego, no Centro, rumo a São José dos Pinhais, onde mora. Tem compromisso: não pode perder nenhum capítulo de A força do querer, o festejado folhetim de Glória Perez. Antes que a tomem por uma noveleira com transtorno obsessivo-compulsivo, justifica-se: “É por causa do Ivan-Ivana”, numa referência ao papel de homem trans vivido por Carol Duarte, atriz coqueluche que tem roubado a cena de sereias serelepes e de doidas varridas que sobem os morros cariocas para se alistar no tráfico. Pois é.
O interesse pela saga de Ivana para ser reconhecida como Ivan pouco tem a ver com ficar de papo pro ar, na frente da tevê, abraçada a pipocas. É trabalho. Além de ser uma mulher trans – aí seu interesse pela trama –, Carla é ativista da causa há pelo menos 20 anos. Por ser uma referência LGBTTI, não passa um dia sem que alguém lhe pergunte o que acha da telenovela. Não se furta responder. Acha que a produção erra a mão vez em quando. Que tem muita frase feita, merecedora do bocejo eterno. Mas reconhece que se emociona a cada etapa da jornada de herói da personagem – a descoberta, a recusa, o enfrentamento. E olhe que é preciso um nhenhém muito do bom para derreter Carla – um mulherão de 1,78 metro, mas que ultrapassa 2 metros quando entra numa briga.
“O pelo dela é duro”, como se dizia sobre quem pulou muitas fogueiras. Sua saga trans começou quando tinha apenas 12 anos, assim que o espelho lhe informou que não conseguia ligar o nome à pessoa. O teto da casa de sua família – no bairro Boqueirão – por pouco não veio abaixo. “Você é a nossa vergonha”, chegou a ouvir, em meio a uma saraivada de impropérios disparados para levá-la a nocaute. Seguiu em frente, com uma porção de hormônio de cada vez e laços rompidos com tias alcoviteiras.
O pior do baixo-astral veio na mocidade, assim que foi demitida do cartório no qual tinha se empregado por quase uma década. Era 1998. “A turma da firma se espantou ao perceber que aquele rapaz tinha criado peitos. Parei de me submeter. Soltei os cabelos”, conta, sobre um dos fantasmas do circuito trans – a dificuldade em se sustentar, passaporte para a exploração sexual e a prostituição. “Não queria aquilo para mim”, lembra. Foi quando bateu na porta do Grupo Esperança, uma ONG de apoio a travestis. Entrou com um pedido de ajuda, saiu militante, alistando-se, em 2005, entre as fundadoras da ONG Marcela Prado, com a qual sua biografia se confunde.
“Dona Marcela, pode me ajudar?”, costuma escutar, ato falho ao qual responde com deboche. “Só se for no além, minha filha.” Aproveita a deixa para contar quem foi a trans mártir que batiza a organização, numa cidade dada a assassinar travestis e transexuais. Difícil quem não se comova com o relato – e não o complete com um depoimento personalíssimo e dolorido. Nesse corredor, ninguém passa impune.
“Acho que eu atraio confidências”, reconhece, sobre um de seus talentos mais propalados: Carla Amaral é boa de ombro e de dar conselho às desesperadas às voltas com a falta de afeto, dinheiro e respeito. Há quatro anos, quando a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) decidiu criar um ambulatório para atender homens e mulheres trans, não havia num raio de mil quilômetros ninguém mais indicada para assumir a coordenação. Se a ONG Marcela Prado era a cara da Carla, o Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (CPATT) muito mais. Nasceu com vocação de ouvidoria, e só uma escutadeira o faria existir.
O centro de atendimento funciona na antiga “Saúde Pública”, na André de Barros com a Barão do Rio Branco. Escolha acertada. O prédio – joia da arquitetura moderna – foi erguido debaixo da ideologia do atendimento médico sem distinção. Sonho lindo. Nos anos 1980, abrigou os primeiros doentes da contaminação pelo HIV. Foi um período medieval, com mortes a granel e profissionais discriminados por atenderem ali às vítimas da um dia chamada “peste gay”. Na década de 1990, o espaço abrigou uma temporada do grupo de teatro Vertigem, que apresentou naqueles corredores sóbrios uma montagem de O Livro de Jó – associação entre o personagem bíblico que bendizia a Deus na desgraça e os mortos em decorrência da aids. Ao virar sede do CPATT, o prédio confirmou sua vocação para promover os direitos humanos.
Os interessados, pelo visto, sabem disso. Sem propaganda, sem alarde, sem nada, o projeto ultrapassa 600 atendimentos, uma média de 150 ao ano. É como se a cada dois dias um homem ou uma mulher passassem pelo fichamento e entrevista, num desafio às estatísticas que insistem em minimizar o tamanho dessa população. Os homens trans, para surpresa, são 50% do total. Ah, vem pencas de gente do interior, gente que para chegar ali tem de se declarar trans num balcão de alguma minúscula cidade de 6 mil habitantes desse grande, rico e inculto Paraná.
O interesse de quem chega é quase sempre o mesmo – participar do programa de atendimento psicológico que garante laudo para fazer operação de adequação sexual. Na esteira desse encaminhamento, o centro mapeia quem são e de onde vêm aqueles que se veem como transexuais. Também lhes garante o uso do nome social, uma verdadeira Guerra do Paraguai. Há diachos de professores e empregadores que se negam a admitir que João agora é Joana. Precisam de um mapa, eis o desastre.
Na unidade coordenada por Carla, junto a seis outros agentes, o milagre é simples. Ao se cadastrar, os interessados registram idade, escolaridade, local de nascimento, profissão, tempo de uso de hormônios, desejo de ter filhos e até religião – para citar alguns itens do extenso questionário. Por ora, só não peçam a Carla que repasse os dados. Serão catalogados em breve e, crê-se, teremos um fósforo na escuridão. Via de regra, o tamanho do universo trans no Brasil é um enigma, ausente do censo do IBGE, quando não confundido com os informes sobre homossexualidade, que nada têm a ver com o parangolé.
Estatísticas à parte, na hora da conversa dos clientes com Amaral, novas informações vêm à baila, a exemplo das situações de violência a que se viram expostos. Faz pouco, uma jovem foi surrada por policiais, assim que perceberam a condição dela. Procurou a unidade. Pensava em desistir… De outra feita, bateu na porta uma mãe – não suportava mais ver a angústia da filha adolescente. Pedia atendimento antecipado, mas o protocolo não permite. Por aí vai.
A identidade trans permanece sinônimo de sofrer bullying, levar surras, ser expulso de casa, expor-se ao perigo das esquinas e até ganhar deformidades físicas depois de passar por implantes de silicone feitos por bombadeiras que mais deviam se empregar em açougues. Assim como as travestis, as trans estão longe do paraíso – em especial na esfera do trabalho, que tende a lhes reservar dois únicos cercadinhos, o dos salões de beleza, onde atuam como cabelereiras, e nos setores de telemarketing, por razões que dispensam explicações: ali não podem ser identificadas e se apresentam como quiserem, de Joyce a Jerônimo.
Mas longe da terra arrasada. A contar pelos prontuários de Carla Amaral, aos poucos se desenham famílias mais tolerantes, escolas preparadas para lidar com seus adolescentes diferentes e doutores que não saem pela porta dos fundos para não atender aquela paciente que lhe exige mais humanidade do que domínio técnico. Uma das pequeníssimas vitórias é o aumento de escolaridade. Ao deixar a construção do corpo para mais tarde, os e as trans tendem a driblar o sistema que as/os massacra. Despistam ou deixam para mais tarde o que chamam de transição, assumindo a nova identidade quando chegam ao ensino superior. Nessa fase, sentem-se mais preparadas para lidar com o que os outros chamam de “estranha forma de vida”. São merecedoras de um fado de fato.
(Esta coluna é dedicada à show woman Rogéria, que morreu em 4 de setembro, autodeclarada “a travesti da família brasileira”, no documentário Divinas Divas, de Leandra Leal.)