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José Carlos Fernandes

O melhor da história

José Carlos Fernandes
22/12/2023 14:44
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Se bem lembra, o historiador Luiz Geraldo Silva um dia jurou que seria escritor. Motivos para as letras, a rodo. Nos tempos de secundarista e universitário, na Recife natal, andava ombro a ombro com as levas de poetas malditos que cruzavam os rios Capibaribe e Beberibe, uma turma solar que, ainda hoje, faz da cidade um dos mais febris polos culturais do país. Nada lhe é estranho, por exemplo, na obra de talentos como Cláudio Assis – com quem conviveu – ou Kleber Mendonça, para citar dois criadores que fizeram a cena recifense extrapolar fronteiras.
Por um capricho da vida, o projeto literário ficou para depois. Antes, Luiz Geraldo constituiu-se na pesquisa do Brasil Colonial – com foco nos africanos e quetais –, publicou artigos e capítulos de livros em escala industrial, e orientou naus de mestrandos e doutorandos na UFPR, seu posto de trabalho há três décadas. Até que em 2017, o “escritor interrompido” saiu do armário com a publicação de Preterida (Ed. Cajarana, 2017), seu romance de estreia. A trama se passa em Recife, um quase personagem que o autor mapeia com requintes de quem bateu muita perna naquelas ladeiras. Ano passado, foi a vez de Envelhecer (Arte e Letra), escrito durante a pandemia e que ganhou notoriedade aos poucos durante 2023, trazendo Luiz mais e mais para o centro da arena.
Justo. A começar pelo título. Os sentidos que a palavra “envelhecer” invoca vêm como ondas, ainda mais quando se considera a idade do autor – 59 anos: “Falo de algo que estou experimentando. Eu envelheço”, sintetiza, com voz pausada, sotaque pernambucano irretocável e nível zero de arrogância acadêmica.
Ao reacender um fogo da juventude, Luiz Geraldo sabia que seria uma lenha mudar de pele e não deixar o historiador consagrado roubar a voz do ficcionista atrasado. Não foi seu único malabarismo. À primeira vista, Envelhecer pode parecer uma incursão intimista pela trajetória de um homem carioca, negro, de beleza notável, que cruza divisas que o próprio Geraldo – ao admitir as tintas autobiográficas na narrativa – sabe muito bem quais são. O personagem, sem nome – assim todos os demais da trama – ultrapassa a linha da pobreza, dribla os destinos da cor e fura o cerco das muralhas intelectuais, firmando-se num mundo que não é o seu, mas do qual não arreda o pé.
Sob o risco de fazer desses ingredientes um panfleto manjado e esquecível, o autor se aventurou por um terreno que já fez muitos escritores escolados caírem de bunda – o das artes plásticas. Senhora da palavra, a literatura não raro prova do ridículo ao tentar equacionar os códigos visuais. Não é o que acontece aqui. Em meio a uma soma de acasos, um bocado de sorte e o auxílio das intuições – kit sobrevivência dos mais pobres no Brasil –, o mestiço do livro, um suburbano de olhos claros, se torna um pintor festejado, com trânsito no mercado de artes e próximo das cabeças coroadas da sociedade carioca. Como não se trata de um romance cor-de-rosa, e o personagem não é um Daniel Senise, mas um naïf, primitivo, ou ingênuo, resta-lhe fazer a festa numa posição bem sacana: a de artesão comportada que parece bobo, mas não é.
Geraldo jura que não planejou, diabolicamente, rodar e rodar o leitor até vê-lo se espatifar, sem descobrir o que é glória e o que é tragédia na suposta ingenuidade do narrador. O interesse pela pintura e seus abismos, avisa, vem de outras encarnações. O apartamento em que vive, no bairro Juvevê, é uma pequena galeria com obras de artistas populares como Zé Som e Fernando Vieira da Silva, ambos tão naïfs quando personagem que inventou. Mais. Confessa que nos anos em que orientou os estudos de pós-graduação do pintor Geraldo Leão – um dos artistas plásticos mais prestigiados do Paraná – explorou-o até o osso para entender as ditas “camadas” da pintura, um assunto que de simples não tem nada.
O intercâmbio entre os “Geraldos” deu certo. Se me permitem um spoiler “do bem”, Envelhecer equivale a... uma pintura. Plano sobre plano, parece que estamos numa escavação historiográfica. A diferença é que em vez de documentos marítimos dos séculos 17 e 19, uma das especialidades do autor, encontramos a soma de contradições das quais somos feitos, nosso barro maldito. Mas não sofram: em vez de fazer da condição humana um quadro abstrato ou conceitual, Silva preferiu as pinceladas alegres e ligeiras de uma tela ingênua – destas que encontramos em feiras para turistas e que nos enchem os olhos. Dá gosto. O escritor, aleluia, passou a rasteira no historiador.