José Carlos Fernandes

Os manifestos da São Francisco

José Carlos Fernandes
17/12/2017 20:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Todo santo dia, a bordo do biarticulado, bato os olhos na Praça de Bolso do Ciclista e, por supuesto, no seu berço, a Rua São Francisco. Até pouco tempo, essa liturgia do cotidiano não tinha nada de sobrenatural. A “São Chico” se resumia a seus nomes do século 19 – Rua do Fogo, Rua do Hospício, Rua do Terço – e ao que uns tantos entrevistados me tinham dito sobre ela. Em suma, era um atalho forrado de paralelepípedos, testemunhas de uma coletânea de pequenas histórias fadadas ao esquecimento.
Da ferroviária aposentada Hedwiges Miserkowski – morta em 2014, aos 104 anos –, modelo da pintura A polaca, de Guido Viaro, lembro ter ouvido narrativas sobre o flagelo da Gripe Espanhola, em 1918, e seus estimados 1.466 mortos na capital. Um filme de Tim Burton não seria melhor. Hedwiges menina morava naquela via e gostava de contabilizar os féretros que passavam madrugada adentro, como se transportassem criminosos. Loira, linda e assustada, assistiu escondida por detrás do portão àquela página da história.
A São Francisco foi também a sede da Foto Progresso de Augusto Weiss – destruída em 1942 pela fúria de populares, em meio a um surto de germanofobia que varreu a cidade. No lugar de onde foi a Progresso está hoje o Joker’s. Igualmente na São Francisco encontrei três personagens dignos de um relicário: Noé Querino, o tanatopraxista que maquiava rostos e reconstruía corpos numa funerária. Nos seus dizeres, preparava-os para chegarem ao Paraíso. Dona Ilse Baumgart Maiochi, que passou de empregada a proprietária da hoje extinta Confeitaria Blumenau – um lugar de strudels como nenhum outro. Equivaleu a uma novela de época ouvi-la falar dos fregueses veteranos que se sentavam nostálgicos à mesa onde conheceram seus amores, anos depois que eles tinham se ido – com outras ou para o além.
Por fim, some-se Carmen, a ex-prostituta que criou o Grupo Liberdade, ONG de apoio a mulheres mais velhas que faziam a vida no Baixo Centro. Até pouco tempo, as Madalenas se reuniam numa portinha da São Francisco para tricotar, falar dos netos endiabrados e das contas a pagar. Vez ou outra, confidenciavam o assanhamento dos fregueses que as abordavam com uma nota de R$ 5, a caminho do Guadalupe ou do Passeio Público. No lugar onde um dia funcionou o Grupo Liberdade há hoje uma bicicletaria, tudo a ver com o que a rua se transformou.
A São Francisco virou epicentro dos debates urbanos. É uma espécie de exemplo sempre à boca, toda vez que um estudioso precisa falar de reciclagem de espaços degradados e de occupy. Em cinco anos, a rua deixou de ser um daqueles cenários cinzentos da obra de Dalton Trevisan – com suas Hedwiges, Ilses, Carmens, Noés e Augustos – para se tornar o palco por onde transitam gurias de cabelos curtíssimos, roupa florida e pele tatuada desde o pescoço. Trazem copos de cerveja à mão e causam ao conduzir conversas descoladas na frente de comércios alternativos, pródigos na região.
Claro: como o coro dos descontentes adora regurgitar, nem tudo são flores. Entre as maravilhas da Pracinha de Bolso, na esquina com a Presidente Faria, até chegar à tradicional Papelaria João Haupt, no cruzamento com a Barão do Serro Azul, a São Francisco permanece fiel a sua sina de Rua da Amargura. O uso de drogas entre parte dos frequentadores atazana a turma do Centro de Educação de Jovens e Adultos (EJA) Poty Lazzarotto. Nos prédios decadentes – onde ainda há moradia –, inquilinos à beira de um ataque de nervos se empenham em colar lembretes de “proibido sentar à porta”, não raro sem sucesso. Ano passado, causou horror a má sorte do comerciante ameaçado de morte por traficantes que agem no pedaço. Batidas policiais se tornaram rotina e não falta quem conspire – nos redutos secretos da Curitiba golpista – para que a São Francisco seja interditada, “para bem da moralidade”. Que preguiça.
Beijinhos no ombro e dedo médio apontado com gosto, a revolução juvenil da São Francisco não dá sinais de cansaço. Mesmo quando toda a cidade parece ter se retirado para debaixo dos cobertores, a rua permanece entregue a seu surto tardio de contracultura. No lugar do odor de desinfetante de um shopping, ou da decoração vintage de um bar da moda, impera o charme chulo dos balcões nos quais se vende cerveja de litrão e salgadinho vegano. Tem mais – sobra poesia e manifesto nas três míseras quadras da ruela que botou no chinelo a XV, a Avenida Batel e até mesmo a putíssima Riachuelo, para a qual parecia não haver concorrência em termos de mundaneidade. Pois ficou reduzida ao pó dos seus brechós, e aos mistérios do Graxaim.
Um tour pela Rua São Francisco não ultrapassa 300 metros. Curto e grosso. Sugiro iniciar pela Presidente Faria. Por três motivos: 1) Por ser a parte mais baixa da rua, garante a melhor perspectiva, o que, convenhamos, é bem difícil em se tratando de um lugar que tem 12 passos de largura; 2) É uma questão de hierarquia – deve-se pisar neste solo profano a partir de seu principal marco, a pracinha que foi erguida no braço pelos cicloativistas de CWB. É tribo amada pelos deuses, que em respeito ainda não nos puniram com uma revolta definitiva do Rio Belém. 3) Da Praça de Bolso em diante se tem uma percepção aguda do túnel de grafismos, cores e palavras impressos na fachada dos comércios. Nome melhor? Podemos chamá-la de Museu a Céu Aberto, Laboratório Poético, alegar virtudes do site specific e da land art. Também serve Queermuseu à prova de MBL. Eles que experimentem.
O barato é parar para ler. Há mensagens lacônicas de amor: “Saudades da Morena”; “Eu amo a Gabi”; “Que saudade da Lucy Malq. Que saudade da minha ex”; ou nada mais do que “eu amo o Gustavo Pedroso”. Em se tratando da São Francisco, quem está a fim do Gustavo pode ser o Pedro e arrisca a Lucy ter ficado com a Gabi. Qualquer dúvida, resta uma inscrição arqueológica, num cantinho bem abaixo: “Eu vim do futuro e lá só tem sapatão”. A propósito, os escritos políticos deixados nas paredes são de alta voltagem feminista – de modo que uma intelectual do quilate de Judith Butler seria bem recebida por ali. Há mais de uma dezena de repetições da frase: “Por que não tem paquita preta?”, seguida de estêncils nos quais está escrito: “Deixa ela em paz” ou “Conheça sua natureza”. A gravura que acompanha a obra não deixa dúvida do que se trata.
Ah, bem legal o misto de desabafo e anúncio espontâneo: “Menstruei!”. O sulfite na parede para que os passantes listem ali mulheres artistas. Tá lotado. O panfleto “Meu nome é Rafael Braga Vieira, tenho 25 anos, e minha vida importa”. A frase solta, acompanhada de um daqueles coraçõezinhos de cadeia, na qual se lê: “Já fez algo por seus sonhos hoje?”, assinada por A. Romer.
Quanto à poesia – alguém bem que podia se voluntariar para uma coletânea dos escritos murais da São Francisco. Afinal, esses versos somem com a chuva e os xixis da noite adentro. Há poemetos cifrados, como “vem e brota aqui na base”; aqueles que até eu faria: “Não sei se você vê quando eu olho para você. É como se sentisse que no castanho do seu olhar…” (por aí vai); e seguidores de Giovanna Lima, a pichadora poética G.L.: “O amor é o que nos resta” – assinado V.L. E a própria G.L., num delicioso pós-birita: “O tempo não espera seu orgulho afrouxar”.
Em busca de tendências, destacaria o verso pacifista erótico – “se for para brigar, que as línguas entrem no meio”, do vulgo “Rc”. Assim como o libertário, que parece saído da boca da psicanalista Regina Navarro Lins: “Por amor a gente fica, mas por amor a gente também se vai”. Assinado por G.P., que talvez também atenda por Polara. Se você achou denso demais nesse momento “sal grosso”, para tirar a nhaca de 2017, melhor rir de “se eu falar da Nicole já no começo, é chato”. Assinado: Zin.
Vamos nessa – não vale falar mal da Nicole. Eis a regra.