José Carlos Fernandes

Os narradores da Vila São Dimas de Colombo

José Carlos Fernandes
24/06/2018 21:00
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Arte: Felipe Lima

Durante uma aula de Língua Portuguesa, os alunos do oitavo ano do Colégio Estadual João Gueno, em Colombo, Região Metropolitana de Curitiba, receberam uma tarefa, digamos, “de tirar nota 10”. Tinham de encontrar um texto que falasse sobre o São Dimas, bairro de 12,6 mil habitantes – 30% deles jovens – em que a escola está plantada. Nem seria preciso ir a uma biblioteca: o oráculo Google resolveria a questão. Assim fosse.
Há textos – poéticos, romanescos e históricos – sobre a cidade de Colombo, marco da imigração italiana e dona de uma das mais belas matrizes da redondeza, dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Mas não é nessa Colombo que os estudantes da “João Gueno” moram. Até mesmo na prefeitura, quando a gente liga, leva um sabão: “Mas de qual Colombo o senhor quer saber?”
Explico. Extraoficialmente existe o município da igreja linda, das ruas arborizadas, das famílias tradicionais, das colônias dominadas por poderosas nonnas Lollobrígidas, Cardinales e Sophias. E a do Alto Maracanã, com suas comunidades que parecem brotar do chão a cada inverno, fazendo crescer a população de mais de 200 mil moradores. A São Dimas é uma delas. Salvo um conto escondido na gaveta de algum prosador solitário, não se tem notícia de uma peça literária ambientada naquelas alterosas. E isso não quer dizer que o bairro goze dos préstimos do desconhecimento. Antes fosse: os guris e gurias do colégio googaram e encontraram folhas tantas sobre o São Dimas… nas páginas policiais.
Foi o que bastou, claro, para que amarrassem um bode, debaixo de um sonoro “e eu não disse?”. Os que alimentavam um toque de amargura em relação ao bairro – modesto de fato – aproveitaram a deixa para reivindicar junto aos pais: “Caminhão de mudança, já”. Para outros, a constatação de que o São Dimas – na imprensa – é assunto de porta de delegacia abriu algumas feridas. A menina Tayná Adriane da Silva, assassinada em 2013, aos 14 anos, era não só moradora da redondeza como estudante do João Gueno. À época, o horror provocado pelo caso – alçado de imediato ao posto de clássico da crônica da violência paranaense – espirrou no pátio da instituição. Os colegas tinham estado com Tayná, na hora do recreio, às vésperas do crime. O impacto sobre meninos em primeiras barbas e meninas de maria-chiquinha foi tamanho.
O fato é que, ao contrário do que fazem acreditar as notícias, nem o São Dimas nem a João Gueno se resumem às tragédias que insistem em cruzar seu cotidiano. Basta lembrar que, há quatro anos, o colégio abateu uma penca de candidatos e venceu o prestigiado prêmio Viva Leitura, do Ministério da Educação. Tornou-se – sem margem de erro – uma das escolas citadas em tudo que é congresso de educação no Paraná. O que se deu ali é notável. E não é de se admirar que os alunos – justo os que não encontraram muito do que se orgulhar nos sites de busca – estejam se preparando para empunhar a caneta e inundar a rede com histórias sobre o reduto onde vivem. Por partes.
O “caso João Gueno” começou sem alarde, como a maioria das boas histórias do ensino. A professora Érica Rodrigues fazia um mestrado no Departamento de Educação da UFPR e atraiu pesquisadoras da universidade para desenvolver projetos de leitura no seu colégio de periferia. Foi exitoso. Mas acabou que a própria Érica, num daqueles dias em que os alunos parecem ter sentado num formigueiro, foi quem encontrou um atrativo para a gurizada: começou a ler em voz alta, ao fim da aula, um capítulo de cada vez de uma obra de literatura infanto-juvenil. A escolhida foi uma autora até então pouco cultivada no ambiente escolar, por seu apreço por temas mórbidos: chama-se Ana Cristina Ayor de Oliveira, mas Indigo é seu nome de guerra.
Para surpresa, a turma adorou essa tecnologia barata, que parecia existir apenas nas ternas lembranças dos tempos da professorinha. A predileção por “ouvir” e “em série” acabou por virar um laboratório de observação para as pesquisadoras Elisa Dalla Bona e Lúcia Cherem, ambas da UFPR. Em parceria com Érica, deduziram o que muitos estudos sugerem – há o desejo de ler, mas as dificuldades mecânicas em decodificar palavras e em entender o sentido das frases fazem com que se torne uma atividade tão pesada quanto puxar uma carroça. Escutar o texto lido é uma brisa. Ouvir um pouco da história a cada dia – à moda de uma novela –, um doce. E se a história for da Índigo, então… À época, a professora contou surpresa quando ouviu o primeiro “ué, hoje não vai ter leitura?”
Eis o ponto. Ou Érica e suas cúmplices acadêmicas agarravam o boi à unha ou perderiam a tal da janela de oportunidade. Foi um deus-nos-acuda, que aqui só cabe resumir. Num curto espaço de tempo os alunos passaram da audição para a composição. Escreveram perfis de seus bichos de estimação, foram eles mesmos ler em voz alta para idosos. Sobretudo, escreveram e-mails para aquela que se tornou o ídolo da turma, Índigo.
Havia medo de que ela fosse uma daquelas divas entediadas, envolta em xales trazidos de um congresso de letras na Inglaterra – e sem a mínima vontade de falar com estudantes de um lugar chamado Colombo, a outra. Pois virou madrinha da molecada, servida com muito brigadeiro, cuca de banana, k-suco, sanduba com patê nas duas vezes em que visitou a escola, sendo recebida com honras de chefe de Estado. Segundo consta, sua vida se divide em “antes e depois da João Gueno”. Cá entre nós, muitos escritores nunca provaram de tamanho afeto de seus leitores.
Quanto à professora de Português – a que ainda esses dias pediu que a turma achasse um texto sobre o bairro São Dimas –, não pode desfrutar do conforto de dar uma aulinha e se escafeder pra casa, ali perto. Na sua escola sempre tem novidade, mesmo quando a atividade segue uma receita de normalistas. É bom que se diga que Érica não está sozinha na empreitada. Estive na João Gueno apenas duas vezes, mas o bastante para desconfiar que diretores, professores de outras disciplinas, zeladores, pais, está todo mundo na roda.
Como sei? Evidências – escola em que a biblioteca é ponto de encontro para reunião festiva, lanche, conversa, e não um sepulcro sob a tutela de tiranos que dizem amar os livros, a ordem e o progresso, está deliciosamente desencaminhada, se é que me entendem. Tudo acontece em ambientes em que os livros têm pernas. A propósito, são 507 alunos, o lugar é bem cuidado e a direção é de Francis Eder Ribeiro da Silva. O colégio fica nos altos e, de lá, a vista de Colombo pede um suspiro breve, e um longo.
Terça-feira passada, numa parceria com Lúcia Cherem, troquei um dedinho de prosa com os alunos da João Gueno. Tinham uma encomenda – queriam dicas sobre como escrever sobre o São Dimas, antes que o jornalismo policial o transforme num faroeste de bolso. Fiz o que pude. Conheço pouco o lugar, o qual me cabe desbravar como um serendipitoso. Mas confessei que lembra muito a Vila Cubas da minha infância, então um encrave operário do sugestivo bairro do Novo Mundo.
Para não perder a viagem, aluguei os futuros escribas com a narrativa dos funerais de minha bisavó, Matilde Celeste, levada em triunfo pelo [então] poeirão da Rua João Stenzowski, em 1974. O cortejo foi puxado por um personagem de Fellini, um jovem down que a amava com ternura e a chorou. A vila em que nasci era um daqueles lugares em que as pessoas começavam a vida. Compravam o terreno, faziam a casa dos fundos para a frente. Meia-água, era o que se ouvia. Como os pais trabalhavam fora, a gente se agarrava com os vizinhos, que nos serviam Toddy e pão bundinha. Num lugar assim, uma velhinha portuguesa, sempre de preto, posta em brincos, coques, terços e conversa engraçada, desconhecia o anonimato.
Perguntei para a turminha – que é muito desenvolta – se, por acaso, o São Dimas era mais ou menos assim, uma Vila Cubas dos anos 2000. Entre um queixume e outro (a falta de praças e de asfalto, a bandidagem, por exemplo) confirmaram as semelhanças. Dão-se com vizinhos. Os pais se empenham na compra de sacas de cimento. E, sim, acreditam, há donas Matildes por lá, e nunca morrem em silêncio. Suspeito que vão escrever sobre elas, postando-as para a eternidade.