José Carlos Fernandes

Pequeno elogio à fartura

José Carlos Fernandes
07/01/2018 21:00
Thumbnail

Arte: Felipe Lima

Faz muito tempo, num encontro qualquer de formação, caí no grupo de estudos de uma religiosa passionista, cujo nome não me lembro. Lá pelas tantas, por força, suponho, dos ânimos exaltados provocados pela Teologia da Libertação, desencadeou-se uma espécie de catarse coletiva não programada. São com folga as melhores.
Os participantes – gente com votos de castidade, pobreza e obediência – se puseram a contar o quanto foram pobres na infância. De tão detalhadas, as descrições sobre as casas miseráveis onde cresceram à mercê da Providência Divina poderiam ser reproduzidas por um pintor, um Almeida Júnior de preferência, um Portinari por direito. Causavam comoção as narrativas que envolviam mesa vazia e barrigas a berrar de fome. Para aquela freira de véu e hábito cinza claro, as tintas pareciam exageradas. Ao que reagiu com um sonoro “nunca fui pobre”, para surpresa daquela gente que jurava ter saltado de uma das páginas de Victor Hugo.
A fala da irmã nada tinha de extraordinário. Contou que não era uma moça rica que trocou conforto pelas rudezas do claustro, o que jurávamos que iria dizer. Tinha nascido numa família italiana do bairro de Santa Felicidade, de pais colonos de baixa instrução formal. Por certo vira muitas vindimas. Cresceu tendo de se contentar com um par de sapatos novos de vez em quando, para ir à missa. Frequentou a escola pública e, quando se decidiu pelo convento, seu enxoval não tinha gomas nem bordados que impressionassem as madres. Mesmo assim, sentia-se rica, como testemunhou. Seu argumento? Não tinha lhe faltado carinho, comida na mesa e educação. Pela média brasileira, entendia-se uma privilegiada.
Simples assim, o discurso daquela mulher consagrada teve um efeito definitivo sobre mim. Vim de uma família dada a cultivar histórias de penúrias – em pelo menos três versões (a barroca, a tragicômica e a “Janete Clair”). Tinha me acostumado a repetir a mesma cantilena, sem pensar muito sobre o que estava dizendo. Assim como a religiosa passionista, nunca fui pobre, mesmo que lá em casa o bife fosse contado, a luz ficasse apagada na hora do telejornal e roupa só fosse comprada por ocasião do Natal. Ainda hoje, em rodas que – para minha estranheza – gostam de cultivar o elogio à pobreza, alinho-me ao time da freira. Digo o meu “nunca fui pobre”. E olhe que nasci num clã de operários do Matte Leão, na Vila Cubas, periferia do Novo Mundo, quando o Novo Mundo equivalia à última divisa da civilização.
Dia desses, em longa entrevista com o escritor e editor catarinense Roberto Gomes – para uma série do jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná –, ele, que amargou uns bons perrengues na meninice, passada na próspera Blumenau, Santa Catarina, reiterou sua estranheza ao constatar o quão comum é, entre gente bem-sucedida do circuito das letras, fazer panegíricos à pobreza, como se não tivessem a fortuna de um livro em casa. É como se construíssem uma ficção para si mesmos. O efeito é nefasto: tais falas – ainda que em parte verídicas – soam como autoelogio meritocrático e, grifo meu, uma manipulação pela emoção.
Resta tentar entender qual mecanismo leva tantos e tantos brasileiros a superfaturarem suas origens modestas – alçando-as ao posto de indigência atroz, praticamente um drama de refugiados do Oriente Médio. A madrinha de todos nesse quesito foi Hebe Camargo. Gritava ter se feito por si mesma. Na real, contudo, é só tirar a média e concluir que não ter dinheiro para esbanjar, estudar no grupo escolar e comer sopa de abobrinha com chuchu não faz de ninguém um hóspede da Casa dos Pobres São João Batista, nem o coloca entre os 8,9 milhões de brasileiros que consomem menos de US$ 1,90 por dia. Meu palpite para essa miopia é que a percepção da pobreza estava ligada à proximidade da desgraça. Dizer-se “tão pobre quanto” pode ser uma defesa para não estender a mão, de modo a evitar um puxão.
A vida calculada na ponta do lápis trazia e traz a reboque a perspectiva de que basta um descuido para perder tudo. O pouco que se acumulou pode virar poeira. Lembro bem. Dois dias sem uns trocadinhos no vaso, em cima da geladeira, e batia o desespero. Seria preciso vender o pinguim. É científico: estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, mostram que a pobreza age em espiral. Em seis meses alguém pode ver escoar pelo ralo o que juntou em dois anos. Os antigos sabiam disso na pele, conheciam parentes e amigos tragados pela tal espiral, entregues à caridade de estranhos. Do que dá para supor que se autodeclarar pobre funcionava como uma estratégia inconsciente para manter as finanças sob controle, à prova de pedido de favores. Um dia a fábrica fecha. Um dia queima o cafezal. Um dia a gente pode amanhecer na lona, como a tia Bete ou o primo Romão.
Com a crise braba que nos enrola os calcanhares, aumenta a sensação de que a pobreza se avizinha. Como antigamente. Bastava ouvir a conversa de Uber, um que era engenheiro, outro microempresário em coisa e tal. Pior que antes, sabemos, são os apelos de consumo, desencadeadores de uma cascata de frustrações. O medo da pobreza não é mais o de não ter o que comer, é o de não poder consumir. Temos dados de apavorar. Assistentes sociais da prefeitura, em entrevista, costumam contar ser cada vez mais comum homens e mulheres que passam sua primeira noite na rua aos 30, 35 anos. Não sabem como encontrar um lugar na marquise.
De modo que estamos vivendo uma situação peculiar: ao medo cultural da pobreza, no país do clássico Geografia da fome, de Josué de Castro, acirra-se a repulsa aos mais pobres e ao que ele nos lembra: pode acontecer com a gente. Quem disse que o maior preconceito no Brasil não é o de cor, mas o de classe, acertou em boa parte das bolas do boliche. Quem discorda, que conte a quantidade de piadas de pobre, produzidas em escala industrial pela brava gente brasileira. Ou que se debruce sobre os assombrosos estudos do economista irlandês Marc Morgan, orientando do francês Thomas Piketty. Morgan mostrou o aumento de concentração de riqueza no Brasil e a mobilidade risível dos mais pobres na pirâmide. Nosso problema se chama concentração de renda e se reflete, com canhão de luz, nas relações cotidianas.
A propósito, vem à memória uma passagem do soberbo documentário Pro dia nascer feliz, de João Jardim. O cineasta percorreu seis regiões brasileiras, para mostrar escolas em situações deploráveis, nas quais estudantes veem seus sonhos catapultados pela incapacidade do poder público em gerir um ensino de qualidade. Apenas um grupo de entrevistados de Jardim é privilegiado. Estuda numa superescola de São Paulo. Fala línguas, conhece o exterior, perscruta a ciência. É lá que está a adolescente Cissa. Seu depoimento é cortante. Diz à produção que se importa, sim, com os pobres, ao contrário do que pode parecer. Conta que os vê, todos os dias, quando vem para as aulas. Se parar para ajudá-los, nunca vai estudar Física ou Inglês. Ao declarar isso, chora. Cissa somos nós – que não sabemos o que fazer com o que vemos da janela do ônibus. Resta o dispositivo de dizer quase tão pobre quanto, ou eu serei mais um se estender a mão. Lancem suas hipóteses.
O psicanalista Flávio Gikovate costumava dizer que só existem dois tipos de gente – os generosos e os egoístas. Os primeiros, acrescentava, existem para sustentar os segundos. Difícil não simpatizar com essa teoria. A parcela minimamente generosa da população pasta, porque carrega uma baita culpa pelo que está ao redor. Ir ao mercado, viajar, comprar roupa e se permitir um happy hour vez em quando é uma mortificação. Um filme que bem traduz o mal-estar dos generosos é Praia do Futuro, do cearense Karim Aïnouz. Antes de um libelo homoafetivo, como se insistiu em classificar, a produção explora um dilema nacional: cada brasileiro carrega consigo dois ou três mais, a quem tem de acudir, uma herança cujo preço é recalcar o próprio destino, inclusive o financeiro. Para o psicanalista Francisco Daudt, esse é o verdadeiro complexo de Édipo. Ser bom é viver a vida do outro. É bonito, mas também cruel.
Digo isso a propósito do último livro de Jorge Caldeira, História da riqueza no Brasil. Para além das nossas definições imprecisas e na defensiva sobre a pobreza, o historiador mostra que as baixas castas sempre driblaram as macroeconomias. Em miúdos – milhões de brasileiros, em todos os tempos, deram um olé na penúria, fazendo pra fora, inventando moda para enganar o mês. Reagir é capital humano. O trabalho de Caldeira bem podia ser o best seller deste início de 2018. Pode nos ajudar a adoçar as amargas novelas de pindaíba – deixando-as para quem as protagonizou de fato –, fazendo justiça ao passado. Estou com a freira e com o que diz um fado: onde não faltou o pão e o afeto houve fartura. Bom ano a todos.