José Carlos Fernandes

Precisamos falar sobre imprensa

José Carlos Fernandes
01/07/2017 14:20
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Felipe Mayerle/Gazeta do Povo

Guardo comigo um texto do escritor Bernardo Carvalho – publicado em 2002. Chama-se “A arte não acabou” e tem fumaças de desabafo. Nele, o autor de Nove noites vocifera contra aqueles que chamam de “imbecis” a todos os artistas e intelectuais cuja produção lhes provoca incômodo ou ansiedade. É como se esses maiorais desejassem extinguir os que pensam, escrevem ou pintam algo que lhes escapa o controle – a exemplo do que fez Mao na Revolução Cultural da China. Tal implicância não passa, diz o autor, de um desejo neurótico de banir o “desconhecido”, e tudo o mais que lhes desafie o vocabulário. Não entendeu uma instalação de arte? Pois que a pisoteiem. E cortem a cabeça de quem a fez.
Por esses dias, está no Brasil o contador de histórias e ensaísta israelense Amós Oz. O que ele tem declarado em entrevistas lembra muito o festim diabólico descrito por Carvalho, 15 anos atrás. Oz pondera que em meio à crise que varre o planeta, nos vemos tentados a dar respostas simples para problemas complexos. Essa tática de “passar o rolo compressor” em tudo o que tem relevo é uma virtude dos fanáticos, preocupação recorrente na prosa desse judeu errante – um homem de voz mansa, que pede aos nervosos que observem o quintal dos vizinhos. Um santo remédio. Os fanáticos, afinal, são uma negação em matéria de alteridade. Preferem se atirar da cobertura de um prédio a se colocar no lugar do outro. Apressam-se em abrir fogo contra tudo o que não sabem traduzir. O que os move é uma pulsão infantil de tudo explicar, tudo resolver, tudo rotular. Sangue de Cristo!
Tudo isso é para dizer que assistimos, boquiabertos, à ascensão gloriosa de novos tiranos. Brotam feito Gremlins. O próprio Amós Oz arrisca uma explicação para o fenômeno neototalitário: já vai longe na memória o acontecido na Segunda Grande Guerra, episódio nascido da crença de que seria possível colocar a humanidade nos eixos, com cientificidade. Durante décadas, qualquer ameaça de calar por calar, banir por banir, era o bastante para que alguém lembrasse de Hitler, Stálin, Mussolini e toda turma, pondo arreios nos ânimos. O antídoto contra a banalidade do mal, contudo, parece estar com a data vencida.
Tal como os amigos de Bernardo Carvalho – doidinhos para reduzir a cinzas artistas, intelectuais e companhia – não faltam os que desejam sapatear no caixão dos jornalistas. Impressiona o ódio dos pequenos, médios e grandes tiranos contra a imprensa, para a qual se voltam feito Linda Blair em O exorcista. Lembram a sequência da sopa de ervilha? Pois é. Dispostos a simplificar o que não pode ser simplificado, arvoram-se a atirar gosmas verdes na “mídia”, sem se dar ao trabalho de perguntar que diabos essa palavra significa. Deixam a impressão que estarão felizes (se é que conseguem) no dia em que a última rádio noticiar o fim do último jornal. Querem um mundo de tecnocratas, pois não suportam a narração dos sentidos. Perdoem, mas deve ser patológico.
O mais estarrecedor é a quantidade de homens e mulheres de, vá lá, “mídia”, que se somam ao apedrejamento, fazendo caras e bocas de tarados, igual o Michael Douglas. Não temo dizer que parte do apagamento da imprensa se deve aos próprios jornalistas – se é que se pode chamar assim os que se acadelaram diante da nova ordem digital. A lógica do pão-pão, queijo-queijo – claro – não tolera delicadezas editoriais, que isso lhe parece coisa de gente fresca. A esses, brindam com o mais selvagem dos palavrões.
Imagino que os leitores podem tomar essa conversa por um libelo paroquiano, uma quebra de contrato, um impasse corporativo. Aos que recusam encontrar aqui amargura, quando buscam refresco para os dias ruins, peço um voto de confiança.
A imprensa brasileira sempre foi tímida em se mostrar a nu. Em demorada pesquisa feita sobre os então 90 anos da Gazeta do Povo, encontrei apenas no início dos anos 1970 um informe em que o jornal, digamos, fala de si. É uma peça publicitária – modesta e honesta, como uma empregada se dizendo “limpinha” para a patroa. Apenas depois da grande reforma da Folha de S. Paulo, em meados da década de 1980, essa caipirice começou a diluir. Pouco a pouco, os jornais passaram a publicar dados de tiragem, perfil de leitores, radiografias de coberturas, fazendo da imprensa o que é – um assunto de interesse público, assim como as escolas e os hospitais. Essa comparação diz tudo.
O retardo do jornalismo em se assumir como tema, contudo, deixou sequelas. A discussão sobre o futuro da imprensa permanece pobre de Marré desci, como alertou mais de uma vez um dos bambas no assunto, o historiador e jornalista espanhol Matías Molina. Nos círculos ilustrados, o debate fica reduzido a afirmar aos berros o suposto papel dos meios em “ilustrar” e “divulgar” – quando não de “ensinar” –, como se jornais e quetais tivessem de se equiparar a salas de aula, confessionários ou de agências humanitárias. Equivale a dizer que papel de artista é pintar paisagem. Poetas – que façam versos com rimas. Ora, é sôfrega uma sociedade que desconhece a lenha que é produzir informação de qualidade – feita para ser lida por gente que disse adeus aos consolos da mamadeira. Sim, os incendiários ainda não largaram a chupeta.
O pesquisador James T. Hamilton, diretor de jornalismo da Universidade de Stanford (EUA), está entre os que batem régua na mesa – pondo um mínimo de lucidez a esse debate. Ele é autor de um estudo extraordinário, sobre os avanços advindos a cada vez que uma reportagem de impacto sai publicada. Seu cálculo é preciso – para cada dólar investido num jornal como o Washington Post, por exemplo, os ganhos sociais chegam a US$ 140.
Para os mortais, como nós, essa conta soa esotérica demais. Com perdão pela ironia, dá para simplificar. Há uma pá de assuntos que só ganham o debate público depois que os jornalistas – esses vira-latas que deveriam ser levados pela carrocinha, para virar sabão, como tantos defendem – exploram com suas solas de sapato. Todo ano falta vaga em creche – e só quem passou tardes e tardes ligando para conselhos tutelares sabe a trabalheira que dá. Quanta gente morre nas estradas – e seria muito mais sem os plantonistas de feriados. Somos nós que batemos ponto na porta do IML. Que enfrentamos secretárias (os) treinados para nos atirar panelas de água fervendo. Que cruzamos dados nada transparentes dos ministérios. Que fazemos perguntas tolas, pois faz parte da checagem. “Sua Santidade, o senhor acredita em Deus”. E se ele disser que teve lá suas dúvidas? Essa é do Nelson Rodrigues, claro.
Dias atrás, um homem de notável saber, curvado de tantos títulos acadêmicos, me perguntou, irritadiço como um abstêmio, por que temos essa mania de entrevistar as pessoas em suas casas. Não serve para nada. Perdi a língua. Devia ter respondido como Marilena Chauí quando lhe questionaram por que gastou tanto tempo estudando Spinoza: “Para nada”, disparou, dando de costas para o pecador. Prefiro acreditar que a cada vez que um jornalista vai à casa de alguém, ouvi-lo, o Brasil ganha US$ 140 na forma de bem-estar social. Vale muito mais do que isso, mas vamos apelar para o bolso que, dizem, não leva desaforo. Quem sabe a conta de Hamilton ajude a entender que não haverá país nenhum sem essas figuras de bloquinho na mão, sujeitas a erro, dispostas a acertar, pois é assim que nascem as histórias. Tristes os que acreditam ser possível viver sem elas.