José Carlos Fernandes

Rir é o melhor remédio

José Carlos Fernandes
10/12/2017 20:00
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Arte: Felipe Lima

É bom demais o slogan do programa Zorra, da Rede Globo: “Está difícil competir com a realidade”. A tese não encontra detratores e tem lá seus profetas. Nos dizeres de um dos papas do humor por aqui, José Simão, “o Brasil é o país da piada pronta”, o que cria uma dificuldade hercúlea para quem vive de fazer comédia. Que gênio do gênero poderia inventar um personagem como Rodrigo Maia, Magno Malta, Gilmar Mendes ou que falasse de forma tão idiota quanto Michel Temer, que entra para a história como presidente da República?
Mas convenhamos, dadinhos à mesa, somos bons nesse troço de manusear palavras a ponto de extrair delas uns kkks e hahahas. O brasileiro é um sujeito que ri e faz rir desde o berço, algo tão natural quanto comer feijão com arroz. Não à toa temos tantos tios do churrasco, repetindo as mesmas anedotas entre mignons e chuletas. Talvez não sejamos bambas como os americanos, que bebem na fonte de Buster Keaton, Groucho Marx e pariram um Jerry Seinfeld. Ou como os portugueses – Ricardo Araújo Pereira, para citar um. A quem duvida, que assista aos programas de televisão dos patrícios. Têm caras e bocas demais, é verdade, mas poucos povos sabem tirar rios de graça da desilusão que alaga essa era pós-humana que castiga os nervos da gente.
Sempre que o assunto é humor, impossível não lembrar do que sugere o escritor catarinense Roberto Gomes no ensaio best-seller Crítica da razão tupiniquim: o humor é a filosofia do brasileiro. Sabemos – o Brasil não criou nenhum sistema (o que nos bane da máxima cartesiana “penso, logo existo”) e – que revolta – nem Machado de Assis, nem Guimarães Rosa, nem Clarice Lispector fazem parte dos cânones universais da literatura. Outra desvantagem. Mas muita, muita gente no mundo riu dos trejeitos da nossa Carmen Miranda, a mulher com cestas de fruta na cabeça. Mais: parte da resistência à ditadura militar se deu em tirinhas nos jornais e nos quadros do Chico City. Por aí vai. Somos parte de uma saga gargalhante e nem sabemos.
É curioso. O brasileiro paz piada de qualquer tragédia – incluindo a morte de Ayrton Senna e dos Mamonas –, mas o humor desperta baixíssimo interesse entre intelectuais. O primeiro impulso é dizer que togas não combinam com chistes, para citar Freud. Não querem ver seus nomes alinhados a assunto tão aquém das macroestruturas e fraturas sociais. Em vez de congressos, seriam chamados para palestrar no Salão de Humor de Piracicaba. Sem dizer que o humor tem uma puta de uma sacanagem: é datado. Alguém que se debruce sobre Aristófanes – ou mesmo nos escritos do hilário paranaense Emílio de Menezes, um filho da terra – não vai achar o menor tchum. Basta folhear as páginas mais soft news de revistas como Fon-Fon ou Quixote, de tempos idos, para confirmar a tese. Meses depois de provocar gargalhadas, piada causa interrogações. Anos depois, são o enigma da pirâmide.
Se me permitem uma confidência, faz anos compro livros ocupados em dissecar o humor brasileiro. Ganham um pequeno lugar na estante, algo como 20, 30 volumes no máximo. Sei que há capítulos e rodapés distribuídos em outros títulos, mas me refiro a obras exclusivas sobre charge, cartum e quadrinhos. Há publicações a respeito de Agostini, Belmonte, J. Carlos. Compêndios de caricatura. Fac-símiles do Pasquim e da Pif-Paf de Millôr Fernandes. Millôr, é claro, vítima de leitores que ressentiram de sua estupenda recriação do Mito do Paraíso e fizeram de tudo para mandá-lo pastar. Conseguiram. Tenho certeza de que Deus gostou da versão e prepara um sabão para os caretas no Juízo Final.
Arrebanhei colaboradores para a empreitada “biblioteca do humor”. O advogado João Carlos de Freitas – uma vez perfilado nesta coluna – encontrou num sebo e me enviou Prazer e poder do Amigo da Onça, personagem de Péricles Maranhão que fez história na revista O Cruzeiro. Agradeço. Há também recortes de jornal. Volta e meia algum colunista se ocupa do assunto, a exemplo do que ocorreu, anos atrás, quando se discutiu os limites do humor. O fogo cruzado, quase sempre, partia de Danilo Gentili, cujas piadas-bomba todo mundo lembra quais eram.
Não arriscaria dizer qual foi o marco deste debate. Talvez tenha começado com Erasmo de Roterdã, em 1511, ao publicar Elogio da Loucura e debochar da seriedade suicida de Sócrates. Mas guardo de memória uma campanha televisiva, coisa de mais de 30 anos, de combate ao racismo. Num cenário nu, um ator negro contava piadas… de negros. Ele mesmo ria, alcançando seu intento – o de nos constranger, de modo a mostrar que nenhuma daquelas narrativas merecia um leve mostrar de dentes.
Como toda grande mudança – lição de Michel de Certeaux – não começa numa tomada de poder, numa revolução, mas no cotidiano, dá para afirmar que a tal propaganda contra o racismo abriu o debate público sobre até onde se pode gargalhar. Com o tempo, venceu mais uma vez o relativismo do “o que existe é piada boa e piada ruim. E não se fala mais nisso”. Mas estamos de mudança. Reproduzo aqui o que ouvi do humorista Vinícius Antunes, num encontro de comunicação: as piadas eram em sua maioria sobre gays, mulheres, negros, judeus, pobres e deficientes. Os objetos de tortura dos outros chiaram e partiram para o chute na canela. O barato agora é descobrir quais as piadas que esses grupos contam entre eles. Virou a charada da temporada.
Antunes tem razão. Numa entrevista com o ativista José Leite, em 2010, ele contou piadas do ponto de vista dos cadeirantes. Foi quase um segredo. “Só a gente pode rir, OK? Se vocês contarem, nossa turma vai gostar”, blefou. Mas estava dada ali a letra e a música: Leite mostrou o humor que nasce do outro lado do ringue. O poder desse discurso desconhecido é não legitimar as fórmulas autoritárias de ver o mundo. De quebra, mostra o que há de ridículo em quem pensa que manda no galinheiro. A discussão é das boas – e se sabe o frenesi que pode causar a cada vez que o humor cumpre uma de suas funções, a de ser iconoclasta, no que a turma da Porta dos Fundos, do Sensacionalista e da Piauí Herald, para citar três, mereceriam uma condecoração do Itamaraty. Não vai acontecer, claro – tudo culpa do desaparecimento dos escritos de Aristóteles sobre a poética e a comédia, como se diz por aí.
Debates acalorados à parte (a pataquada em torno do Queermuseum, por exemplo, outra coisa não parece que falta de cultura visual aliada a uma doentia falta de senso de humor), a palavra de ordem é promover a fina arte do piadismo. Como dizia o cabeçalho da revista Seleções do Reader’s Digest, “rir é o melhor remédio”. Nos alfarrábios, guardo o que disse certa vez o dramaturgo Cacá Rosset: “O humor é a menor distância entre duas pessoas”. Exige perícia. Nos anos de mocidade, passados no interior de São Paulo, me impressionava a instantaneidade humorística dos paulistas. Em segundos, dois desconhecidos recém-apresentados passam a mexer um com o outro e se tornam amigos de uma vida inteira. A sombra desse talento dos nossos vizinhos é que a capacidade de rir juntos – e rápido – se confunde com cumplicidade: quem faz piada junto tem também de concordar com as barbaridades que o outro diz, o que resulta em uma cumplicidade tóxica. O humor nada tem de santo – e, se permitam o trocadilho, essa é a graça.
Penso que todo mundo devia mapear o seu próprio senso de humor – ou a ausência dele – como uma forma de autoconhecimento. Se somos o que comemos, o que lemos, a família onde nascemos, para quem rezamos, nossa cultura, também somos aquilo de que costumamos achar graça. De minha parte, penso que a primeira experiência bacana de humor veio com o tio José Crisóstomo Ferreira. A gente ficava em roda para ouvi-lo contar piadas. A maior parte, infames. Mas havia uma qualidade: tio Zé ria de si mesmo, virava parte da anedota. Como foi muito generoso na vida, era também generoso na vontade com que se preparava para nos fazer soltar líquidos de tanto rir, se me entendem.
Seu encanto cessou com uma depressão dos diabos, que o consumiu. Na noite de seu velório, na salinha ao lado, embalados pelos sanduichinhos que agora rolam nos enterros, prestamos a maior homenagem que podíamos: relembramos as piadas que nos contava. Seu filho Ricardo não tardou em deduzir que o pai tinha morrido, de verdade, 15 anos antes, quando deixou de arrancar risos – dos outros e de si mesmo. Pena não tenha conhecido o exemplo do indigenista Noel Nutels, que colecionada frases divertidas escritas nas portas dos banheiros públicos. Era um grande homem que sabia rir. O mesmo se diga do papa João XXIII. Piadista militante, fez o que fez.