José Carlos Fernandes

Rodolfo na ilha perdida

José Carlos Fernandes
05/08/2018 20:00
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Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Prólogo
De como um gesto mudou tudo. Ao crescer, o menino órfão decidiu retribuir o que recebeu. Simples assim.
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Sabe-se lá se foi destino, acaso ou se aconteceu e pronto. O advogado de família Rodolfo Monteiro de Sousa, 27 anos, era ainda um piá de calças curtas quando flagrou um homem prestes a sair no tapa com um orelhão da Praça Tiradentes. Foi em 2003. Prontificou-se a ajudá-lo. A ficha caiu, o interurbano completou e o sujeito à beira de um ataque de nervos, um militar de nome Genez Werneck Kruppel, agradeceu o socorro e quis saber por que diabos um guri daquela idade – com apenas 11 primaveras – estava saracoteando pela rua.
Rodolfo lhe contou das razões de seu relento: tinha fugido do abrigo havia dois dias, a Acridas, um dos muitos por onde circulou desde que deixou de usar fraldas. Era órfão, sozinho e pobre de Marré Desci. Genez, o do telefone, passou a testá-lo. Perguntou-lhe capitais do Brasil e do mundo. “Você é um diamante bruto”, disse, ao fim da sabatina. Deu-lhe um almoço, pediu que voltasse para o abrigo e ofereceu mão amiga. Seria seu padrinho. Nunca mais se deixaram.
Até aquele encontro à sombra de um telefone público, Rodolfo empunhava uma metralhadora cheia de mágoas. Embora fosse criança, tinha vivido uma eternidade e mais um dia. “Eu botava o terror (risos). Do tipo que subia no telhado. Atentado.” Somava 5-6 anos de idade quando se viu abrigado pela primeira vez, no Lar das Oblatas, em companhia de duas irmãs. O pai tinha morrido. A mãe – num caso clássico das crônicas de abandono – não conseguia sustentá-los. Perdeu a guarda. Negociava a devolução dos filhos junto às autoridades, só que a espiral da miséria rodava mais rápido que a oferta de empregos. Enquanto isso, o relógio corria contra as crianças, que cresciam. Quando a mãe morreu, em 2001 – com 33 anos –, estava armada a tempestade perfeita.
Quem acompanha os mecanismos da adoção no Brasil sabe o bicho que é. Quanto mais velhos os candidatos a uma família, menos pretendentes a levá-los para casa. E havendo irmãos, todos devem ser adotados juntos, exigência soberana, mas inibidora. “Aos poucos fui me dando conta de que nunca teria novos pais”, conta um sereno Rodolfo Monteiro de Sousa, um cara de fala pausada, pensada e emoção mantida na rédea curta. Um advogado que pondera causas difíceis – as suas, inclusive.
Depois do orelhão, Fernando…
Breve, haveria um novo encontro definitivo na biografia de Rodolfo. Aos 14 anos, viu-se transferido para a Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, Região Metropolitana de Curitiba. A fundação, criada em 1993, figura entre os mais festejados modelos latino-americanos no atendimento à infância. Tem entre seus incentivadores o Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel – sim, o argentino cidadão do mundo impedido de visitar o ex-presidente Lula na PF do Santa Cândida.
Rodolfo reconhece que ainda tinha “munição” para detonar seus rancores quando desembarcou no novo endereço. “Aprontei”, resume. Mas foi ali que o guri sem pai nem mãe, separado das irmãs, encontrou um segundo padrinho, o ex-frade carmelita e fundador da comunidade, o educador Fernando Góis. Deram de conversar horas a fio. “Eu não tinha nenhum projeto para o futuro”, lembra. Mas… gostava de escrever, de falar em público, de decorar palavras difíceis para depois esnobá-las. Apelidaram-no de “Aurélio”. Tais requisitos o levaram com honras à biblioteca da chácara. Ali foi apresentado à Coleção Vagalume. “Como esquecer A ilha perdida?”, pergunta, sobre as tardes em que devorou a obra de Maria José Dupré. As lembranças das sovas que levou nos abrigos – e não foram poucas nem suaves – foram substituídas pela imaginação literária. Ganhou como amigos os idealistas personagens Eduardo e Henrique, de Dupré. Salvo pela literatura? – “acho que sim…”, responde com a economia habitual.
Quem frequentava a Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros nos anos 2000 se impressionava com um ambiente chamado de “sala dos sonhos”. Ali, os guris registravam nas paredes seus melhores desejos. O lugar chamava atenção. Assim como muitos meninos que passaram por ali: Adílson, Tatinho, Diorlei, Douglas, por aí vai. O mesmo se diga do garoto ruivo e asseado, que batia ponto na recepção da chácara, às voltas com as palavras, mas dizendo ao vento que seria aviador quando crescesse. Cabia a Rodolfo redigir avisos, mensagens comemorativas, informações gerais – além de suas próprias pensatas. Com tantos pendores, sobrava pouco tempo para o futebol. Reza a lenda que figurava entre os mais perebas. Mas era com folga o melhor escriba, e o que mais advogava a favor dos colegas. Tinha ganas por justiça. Natural que desembarcasse numa graduação em Letras. Ou em Direito.
Permitam-me ser cronológico.
À maneira de outros tantos moradores da “Quatro Pinheiros”, Rodolfo ingressou na PUCPR e, dois anos depois, no curso de Direito da Faculdade Santa Cruz. Ficou com a segunda. Foi quando bateu na porta do padrinho – a quem oito anos antes ajudou a completar um telefonema. “Disse que precisava morar com ele, para ficar mais perto dos estudos. Topou.” No dia em que passou no exame da OAB, 13 de dezembro de 2016, “o momento mais show de bola da minha vida”, passou o tal do filme na cabeça: a mãe morta, os parentes que lhe viraram as costas, os educadores que o surraram com fio de luz e lhe sonegaram comida, os casais que não o adotaram por medo ou preguiça.
Permitiu-se chorar. Sobretudo, chorou a própria sorte. Achava-se um privilegiado – nos oito anos passados na chácara ouviu tantas histórias assombrosas, contadas pelos outros moradores, que a sua parecia um conto de fadas. Tinha Genez, Fernando – e Maria José Dupré e toda uma leva de escritores da Coleção Vagalume com os quais travou pactos secretos de sobrevivência na selva. Além do mais, contava com a namorada Milena, dois enteados e uma salinha para advogar no bairro Pinheirinho.
Em outubro passado, Rodolfo Monteiro de Sousa aceitou ser o presidente da Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros – a mesma que o acolheu nos seus perdidos 12 anos. “Tremenda rabuda”, como se diz. Em 2015, Fernando Góis se despediu da obra que criou. Havia tempos planejava viver a experiência mística como andarilho e, na companhia de sua sacola de pano e dos inseparáveis chinelos de dedo, conviver com trecheiros, moradores em situação de rua, ex-presidiários e toda categoria de desvalidos. Uma de suas paradas foi a Rua São Bento, próxima à Praça da Sé, em São Paulo. Dormia na calçada. Também estagiou na Cracolândia – onde, por não saber o que dizer, distribuía abraços. Meses atrás, foi visto em São Félix do Araguaia, no Pará, dando uma força a outro visionário como ele – dom Pedro Casaldáliga.
Não havia observador da chácara que não temesse a partida anunciada de Góis. Muitos benfeitores enfrentavam os mais 50 quilômetros até Mandirituba atraídos pela oportunidade de estar com Fernando, cuja aura de virtude e abnegação dá a certeza de estar diante de um santo cívico. Todos querem tocá-lo, como que para redimir a própria pequenez. Restava saber como seria na ausência do “monge pé-de-chinelo”, como rotulou um político de maus bofes. A partir daí, o local se tornou um espaço consagrado em busca de um substituto. Outros ex-meninos estiveram à frente do projeto e já se despediram. Agora é a vez de Rodolfo, o grato.
Epílogo
No mural do escritório que a “Quatro Pinheiros” tem em Curitiba, no 16.º andar do Edifício Asa, há uma foto e uma frase de Fernando Góis. Diz: “Ama-me quando eu menos merecer, pois é quando eu mais preciso”. Acredito que Rodolfo a lê todos os dias.