José Carlos Fernandes

Temos de pagar para ver

José Carlos Fernandes
19/11/2017 20:44
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Arte: Felipe Lima

Há quase 30 anos – faz tempo –, num simpósio de Teologia, em São Paulo, conheci uma pastora luterana. Algo inédito, então. Era uma jovem ariana, alta e serena, de formação sólida, pouco à vontade em se ver alvo de tantos olhares da plateia, como se fosse uma aparição da Virgem Maria, só que trajando uma severa toga em vez de um barroco manto azul. Alguém devia ter lhe recomendado que colocasse um ramo de arruda atrás da orelha, uma ciência exata das terras luso-brasileiras, injustamente tomada por superstição. Recebeu aplausos, em reconhecimento por mais aquela carraspana vinda dos protestantes. O educador, filósofo e psicanalista Rubem Alves, um deles, dizia que os católicos foram os que mais ganharam com os ventos da Reforma. Acredito.
A propósito da pastora, algum palestrante profetizou ao microfone que um novo Renascimento ou Renascença, como ainda se dizia, partiria das mulheres. O mundo governado pelos homens teria dado provas o bastante de ser um barco furado. Saímos de lá convencidos de que em questão de meses tudo mudaria. Como se sabe, a realidade não é uma massinha de modelar, à revelia da euforia que costuma alimentar uma soirée de teólogos.
Recorro a esse episódio porque semana passada uma aluna da UFPR me falou de seu projeto de pesquisa: o movimento feminista no seio da Igreja. Cismei. Demorei a dar o download, desconfiado de que a guria, mesmo citando o movimento Católicas pelo Direito de Decidir, estava na pista errada, entregue a uma roubada que levaria a reboque o seu TCC. Até ser tocado pela emoção provocada por um verso de Paulo Leminski, sempre à manga: “prazer da pura percepção, os sentidos sejam a crítica da razão”. Certezas em armistício, começou a conversa, essa grande arte.
Virou uma salada deliciosa, aquela que, como diz a pesquisadora Marilene Weinhardt, traz à tona azeitonas, ervilhas, palmitos à medida em que as folhas verdes são reviradas. Em minutos, deslindamos os cultos ancestrais, escorados na figura divina da grávida esculpida em terracota. Passamos pelo encanto da Mãe de Deus – o que me fez recomendar a leitura de um livro quase esquecido, Quarup, de Antônio Callado. Viajamos até Santa Teresa de Ávila, a Teresona, doutora da Igreja, e sua paixão mística por São João da Cruz, no melhor do estilo “nunca te vi, sempre te amei”, obra-prima estrelada por Anne Bancroft e Anthony Hopkins. Não tem droga melhor do que a sinapse.
Lembramos das freiras que abandonaram colégios de elite para trabalhar em comunidades empobrecidas. E mesmo de uma religiosa que conheci – em nada afinada com as teorias libertárias que tanto atazanam a Dogmática: ela postula, lúcida, o seu direito ao sacerdócio, pois assim se vê. Como o tempo gasto na prosa ultrapassava a altura das nossas canelas, lembrei uma frase senso comum, ouvida de um grande padre: “Não fossem elas, a Igreja teria acabado”. Coloquei a palavra em minúsculo e no plural, “igrejas”, pois assim pode ser. Pedi desculpas pelos arroubos. Lembrei que tendem a arrefecer, à medida que as leituras progridem e a libido intelectual mingua diante do espartilho das palavras possíveis. Parabenizei-a pela escolha, não sem antes entristecer.
Dizem que a vida é desilusão – o que prefiro tomar como meia verdade. Um pouco de alienação faz bem à saúde. Vale se inspirar na máxima de que “plantamos árvores das quais não veremos os frutos nem desfrutaremos das sombras”. Não veremos se realizar a maioria das promessas da juventude, mas tudo bem. Um pensamento tolo nos garante oxigênio para chegar ao próximo café da manhã, um dos rituais dos quais mais sentiremos falta na eternidade, caso de fato exista.
Paralelo, penso na força dos romances da atriz Fernanda Torres. Ela nos faz gargalhar, mas também nos leva a chorar no meio-fio. Danada. Tanto em Fim, seu festejado trabalho de estreia, quanto em A glória e seu cortejo de horrores, recém-lançado, os personagens – não por acaso masculinos – se descobrem seres patéticos, encurralados no beco a que foram conduzidos, à revelia de suas melhores intenções.
Recorro à literatura para lembrar que estamos tentados a desacreditar, mas que mesmo assim vale a pena deixar baixar os arquivos, em busca de um sentido para esse dossiê diabólico em que nos metemos. MBLs, Alexandres Frotas, hipocrisia digital, ditadura do Judiciário, fundamentalismos, censura às artes, ignorância convicta, desgraças assim, enchem os pacovás. São de jogar a toalha. Para não dizer que não falei das flores, convenci um Uber sobre a estultícia do Bolsonaro, sem precisar recorrer a essa expressão pedante, é claro. Arrisca ter sido o grande feito da minha existência – um voto a menos pro Jairzão.
Tá, a gente se consola ao lembrar que está no meio do enredo, e não no epílogo. Uma aluna cujos olhos brilham diante da possibilidade de entender o busílis é um bom motivo para sair da cama – realizando aqui e agora o que está escrito numa das grandes crônicas de Nelson Rodrigues, O deus numerado. Nelson se descreve como um peixe pedra, preso ao fundo do aquário, paralisado, certo de sabe-se lá o quê. De repente, depara-se com uma estagiária que circula como uma enguia, cega, luminosa, disposta a perguntar ao papa se ele acredita em Deus. Quando cessa a capacidade de perguntar, acabou a brincadeira.
Um bom começo para lidar com as ilusões perdidas é rebobinar as ideologias, as utopias, os propósitos e tal. Convenhamos – ainda não sabemos qual será a grande ideologia do século 21. Façam suas apostas. Ao lado do Renascimento de uma sociedade governada por mulheres – nos quais presidentas eleitas poderão cumprir seus mandatos –, há a ideologia do tempo. Ouvi da veterana Nely Novaes Coelho, faz uma pá de anos, que a grande meta será ter o tempo de volta. Vamos reivindicar as horas roubadas. Torço para que seja verdadeiro o prognóstico de que estamos à beira de um estresse digital em escala cósmica. Precisamos urgente ler um livro inteiro, deitado no sofá, em uma tarde a nosso dispor, agarrados a um pacote de bolachas. É uma condição para, como dizia São Carl Rogers, “tornar-se pessoa”.
Tem mais. Por exemplo, o literato inglês Terry Eagleton diz que a única briga que une o planeta é a defesa do meio ambiente, crescente à medida que nos damos conta de que respiramos o mesmo ar. E que num prédio de 24 andares tem muito cocô descendo pelos canos – onde é que tudo isso vai parar?
De todas, a melhor das ideologias do século 21 talvez seja a da hospitalidade. É uma palavra danada de bonita, um serendipty. Tem seus ideólogos – o Leonardo Boff no Brasil, Jaques Derrida e Anne Dufourmantelle, autora de Elogio do risco, intelectual que morreu afogada este ano ao tentar salvar duas crianças das águas do mar. Com perdão às mulheres, a hospitalidade é um guarda-chuva, debaixo do qual cabe o feminismo, o tempo, o meio ambiente, o respeito às diferenças. Se é verdade a máxima calcada por gente bamba, como Robert Putnam, Richard Sennett, Gilles Lipovetsky, entre outros, de que o individualismo vai nos custar o pescoço, perceber o outro pode ser nossa salvação.
É exercício pra iogue dos bons. Não cabe nas nossas caixinhas conceituais. Passa pela manobra política de acolher refugiados – e repensar fronteiras. Por sexualidades. Por crenças. Passa, sobretudo, por uma opção pelos jovens, essas enguias luminosas sem as quais estamos condenados a virar pedras, como no lindo romance Canoas e marolas, do eterno João Gilberto Noll. A única saída para os mais velhos – marcados pela fatalidade da desilusão – é acolher a moçada. Não sou eu quem diz, mas Tony Atkins, morto este ano, um dos visionários sobre as cartas que nos restam.
Que preparemos festa, casa arrumada, a melhor música, um banquete de frutas a eles, os jovens. Não foi na nossa vez que a nova Renascença aconteceu, mas deve ser na deles. Melhor pagar para ver. Eis a regra do jogo.
(Coluna dedicada à professora de Artes Laís Groff, que morreu na segunda-feira, 13 de novembro. Por três décadas, dividiu sua fortuna – o conhecimento, as viagens, os livros, a música – com alunos do Colégio Estadual Pedro Macedo. Na voz dela, o mundo era logo ali.)