Gazeta do Povo - Colunistas

Uma casa para Lindacir Maria, a Linda

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30/07/2017 21:00
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Foto: Daniel Caron / Arte: Felipe Lima

Lindacir Maria de Paula, diarista, 61 anos, moradora da Vila Vitória, Umbará, queria agradecer a comunidade onde mora. Recebeu dos vizinhos um grande favor, nada que se pague com um abraço ou uma fornada de pão. Foi quando procurou a reportagem, para perguntar, quem sabe, se o jornal podia lhe ajudar. Pois pode. Aqui vai o recado: “Linda – como é chamada – foi beneficiada por um mutirão, que ergueu para ela uma casa. Manda a todos o seu muito obrigada.”
Ao lembrar, chora, como se desse uma entrevista para a tevê. Aqui só posso relatar o que vi e ouvi. No auge da pindaíba em Bruzundanga – o país de Lima Barreto –, com seus 14 milhões de desempregados, todo mundo liso, os amigos de Linda fizeram bonito. “A gente é do Apostolado da Oração. Mas a ação tem de vir junto com a reza”, explica uma das obreiras, a cozinheira aposentada Elmi Granovski, 55 anos, ensaiadora do coral Filhos do Pai Eterno – do qual saíram os voluntários para a empreitada.
Elmi – que é a cara da atriz Vera Holtz – foi a primeira a se comover com a história de Linda. Contou-a aos conhecidos – entre eles o líder comunitário João Kurek, 56 anos, o Zinho, que se ofereceu para cuidar da logística da obra, para que não ficasse só na intenção. Funcionou. Num estalar de dedos passavam de dez os candidatos a fazer um extra, aos sábados, a partir das sete da matina, numa casinha pequenina da Rua Nair Cravo Westphalen – a casa da Linda desde 1988.
A casa, a propósito, estava para cair. Era um milagre da arquitetura das ocupações – quatro paredes de madeira equilibradas sobre quatro pilares de tijolos, plantados num lote de 15 x 20 metros, à mercê de um exército de cupins que cumprem metas e têm foco. “Quando olhei, me assustei. Achei que o chão ia afundar e engolir tudo, com a dona dentro”, resume, com ênfase, o pedreiro Pedro Tomazi, 53 anos, alma boa que se somou a Elmi e a Zinho na tarefa que consumiu seis meses e levou a óbito pelo menos 48 frangos. Explico.
Linda compensava a turma do mutirão com um ensopado que virou lenda nas ruelas da Vila Vitória. A fama da iguaria se espalhou – arrisca – até as cercanias da belíssima Paróquia São Pedro, zona nobre do velho Umbará. Mesmo entre os que só olharam a muvuca de longe, não falta quem grite do outro lado da rua: “Rola um frango hoje dona Linda”. Segundo fontes, a salada também era supimpa. Ela ri – sem se abrir muito, como é seu estilo, pois anda à cata de um dentista barateiro. No mais, vive dias de alegria, como havia muito não provava.
Permitam-me um currículo resumido da Lindacir Maria. Foi criada desde os 7 anos num orfanato de freiras – parte no Lar das Meninas das Mercês, parte num abrigo em Jacarezinho, Norte Pioneiro. Recorda-se com ternura de uma delas, irmã Palmira, que lhe acarinhava o rosto e a presenteava com um pedaço de bolo envolto em guardanapo. Da mãe, sobra uma lembrança na névoa – assim como dos três irmãos: Herculano, José Carlos e Aramis. Nunca mais os viu. A identidade do pai é um novelão da Glória Perez, cercada da mesura de advogados, em meio a certidões de nascimento trocadas e adulteradas. Decidiu entregar esse capítulo ao silêncio. “Já me criei. Pronto. Agora não adianta mais.” Até porque não foi a única casca de banana que o destino lhe atirou aos pés.
Vez em quando, as freiras mandavam Linda ser empregada em alguma casa de família – “para aprender o serviço”. Num desses compadrios, apanhou, ouviu gritos histéricos e levou a culpa por todos os risquinhos dos móveis – esse crime lesa-humanidade. Rebelou-se. Fugiu sem deixar rastro – para ver o que é que rolava atrás do muro. Aos 16, engravidou de Sidcley, o primeiro filho, que levava consigo para a lida. Ainda jovem, conheceu o marido – que seria seu companheiro por 20 anos e pai de seus outros dois filhos. A essa altura, era uma diarista disputada a tapa pelas donas. “Minha fama se espalhou”, brinca. Inclusive a de braba. Não deixa serviço para trás, nem atura desaforo. O pavio curto é compensado com fidelidade canina. No dia dos aniversários das patroas – nem que seja no 1,99 –, aparece com um presente, um abraço, um obrigado que deixa todo mundo sem jeito. Ela é o Oliver Sacks das faxinas.
“Aprendi a perdoar com as freiras. O que sou, devo a elas”, resume, sobre não ter sombra de amargura. Quanto mais a vida lhe diz não, mais diz sim. Claro – tem horas que dói pra caramba. Há pouco mais de dez anos, Jônata, o caçula, foi assassinado, em situações até hoje não esclarecidas. Tinha 19 anos, era ex-aluno da Escola Municipal São Luiz – instituição que ostenta um dos maiores Índices de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb, do país. A ligação do guri com colégio tão festejado é uma das provas de que ela e ele queriam fazer a coisa certa. Mas sabe como é – forças ocultas da nação…
A morte de Johnny, como o chamavam, tira Linda do prumo. Basta dizer o nome do guri para os olhos da mãe se atirarem do penhasco, até pousarem na prateleira de fotos. “Ói ele ali”, aponta, refeita, como se estivesse pronta para lavar uma calçada, sem vap, e no frio. Johnny aparece em porta-retratos ao lado dos filhos dos patrões – a exemplo do atleta Danilo Lançoni, do futsal –, da portuguesa Marta Gomes Henriques, uma de suas benfeitoras e a quem amava, entre outros que lhe abriram os braços. Quer seu menino em boas companhias.
Informo que essa crônica toda é da missa a metade, mas o suficiente para entender porque Elmi, Zinho, Pedro – e mais o eletricista Américo Bossoni; José de Oliveira Santos, servente de pedreiro de 76 anos; e ainda o Sebastião, o Genésio, o Antônio, o Adelino e Alcides, com perdão aos que me fogem – decidiram sacrificar o sábado para fazer cimento, assentar tijolos e rebocar num endereço que não era o deles, com o simples propósito de compensar uma vizinha pelas contas de menos que pesam sobre seu ombro.
Não pensem que foi fácil fazê-los falar. Mais simples é uma delação premiada. A turma da Capela Nossa Senhora da Vitória tem como lema a máxima de Mateus 23 – algo como “o que a sua mão direita faz, a esquerda não saiba”. Caridade não deve ser anunciada com trombetas, sob risco de Deus Nosso Senhor se aborrecer. Precisei gastar o latim. Lembrar que o Brasil está com sede de notícia boa. E que, no mais, trata-se de uma questão técnica. Associativismo, organização comunitária, filantropia – tudo o que implique gente reunida, a bordo de ideias e fazendo acontecer, “não há melhor remédio em toda a medicina”. Parece historieta de paróquia, mas o que aconteceu ali é combate à praga do individualismo, matéria-prima de bambas como Robert Putnam e Richard Sennett, problema da ONU, o diabo a quatro.
Em tempo. Técnicos do Ippuc chegaram a diagnosticar o Umbará como um lugar a ser observado. É uma das últimas áreas verdes da cidade. Terra das tradicionais 12 famílias italianas que comandam as olarias, de condomínios de luxo, de loteamentos populares, mas também dos novos curitibanos – 3,4 mil pessoas divididas em 14 ocupações irregulares. Quase 70% dos moradores ganham entre meio e dois salários mínimos. Os jovens são 37% do total de gente que vive lá, índice dos mais altos.
O Umbará é sortido, dizem os urbanistas, daí ser tão interessante. O pequeno feito da turma da Vila Vitória – expert em mutirão – comprova que tem vida por lá. No mais, o pessoal do coral nem precisou de teoria para entender que, se a Linda era a única dentre os vizinhos que não tinha uma casa decente, ora, não seria por culpa da Linda, que sai de madrugadinha para faxinar desde adolescente. Deram uma resposta à pirâmide da desigualdade, essa coisa. E uma história boa para a vizinha contar. É de direito.