José Carlos Fernandes

Uma gramática do silêncio

José Carlos Fernandes
04/07/2017 17:07
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José Antônio de Lima, de 62 anos: seu verbo é imaginar. Albari Rosa/Gazeta do Povo

O mineiro José Antônio de Lima — paranaense por adoção — fez trilha própria no território da arte brasileira. Ex-aluno por correspondência do Instituto Universal, estagiou em agências de publicidade e conheceu a estética contemporânea lendo cadernos de cultura. Exposição Nexos-Desconexos, aberta no fim de semana passado, na Zuleika Bisacchi, traz seleta de obras de sua maturidade
José Antônio de Lima, 62 anos, é um homem de olhos graúdos. Fosse um personagem da literatura, seria o náufrago do conto de Gabriel García Márquez — o corpo que chega silencioso às praias de uma aldeia. Os outros homens veem nele um braço forte para ir à pesca. Os velhos – um sujeito generoso, disposto a escutar as histórias do passado. As crianças, alguém que pode lhes ensinar brincadeiras novas. As mulheres – um marido. Diz o texto que depois daquele episódio, a vida por lá nunca mais foi a mesma: onde havia tédio, venceu a imaginação.
Como José dispensa muitas palavras — imaginar é o seu verbo. Nada impede, claro, lhe fazer consultas sobre as aldeias nas quais desembarcou. Responde com economia habitual. É dos interiores. Nasceu na zona rural de Sacramento, Minas Gerais; cresceu na minúscula Grandes Rios, Nortão do Paraná – com tudo o que lhe era de direito: das roçadas nas lavouras, passando por atrasos na escola e licenças para se entregar às delícias de um radiozinho de pilha. Por anos encontrou ali sua conexão com o mundo. Quem teve um rádio pequeno para chamar de seu, sabe o que é.
Até que aconteceu. Nas ondas curtas (ou nas médias) ouviu a propaganda de um curso de desenho publicitário por correspondência — do Instituto Universal Brasileiro, patrimônio nacional criado em 1941. Todo sujeito com mais de 50 anos nas costas sabe do que se trata. A essa altura, desenhava para o gasto — mas o bastante para desfrutar da mágica que é ser apontado como o artista da cidade. Era bom no traço com carvão. Mas podia melhorar — aprender aguadas e bicos-de-pena. No balcão do Correio, sabiam que o envelope do instituto era do Zé Antônio, o menino dos Lima. A essa altura, ganhou intimidade com termos como proporções, perspectivas e composições. Virava-se na base do lápis e do nanquim. Desenvolveu-se, até Grandes Rios não comportá-lo mais.
Não cabe aqui contar todas as andanças, apenas que Zé Antônio foi fisgado pela mosca de ser artista. Caminho sem volta. Naquele tempo, não havia atalho mais curto para chegar às artes que não fosse uma agência de publicidade. Tirem o glamour da palavra e era lá que ele trabalhava. “A gente fazia todas as etapas — layout, usava-se muito estilete. Uma escola”, lembra. No meio disso tudo, pintou a faculdade, o encontro com a companheira de uma vida — a jornalista Myrian Regina Del Vecchio, que seria mãe de seus quatro filhos —, uma agência um “cadinho” maior, o acesso aos suplementos de cultura dos grandes jornais. Não subestimem essa informação.
Lima não diz, mas, à revelia de toda gratidão aos envelopes que chegavam a sua cidade com lições de desenho, o Instituto Universal Brasileiro fez dele pouco mais do que um copista. Um maneirista cheio dos truques manjados. Mas foi um salto. O outro, um pouco maior, veio quando pegou mania de ler todos os “cadernos dois” — Estadão, Folha… — assinaturas de uma das agências onde se empregou. “Foi ali que descobri o que era arte contemporânea”, conta o sujeito que, a exemplo de milhares que vivem longe do litoral, tinha, em tese, mais acesso a discos voadores do que a museus e galerias. A essa altura, lendo, viu-se possuído pela imaginação. Começava a nascer o artista plástico José Antônio de Lima, um caso à parte no cenário das artes visuais paranaenses.
É verdade que sempre surgiu gente — e gente boa da melhor qualidade — à margem do núcleo Alfredo Andersen, Guido Viaro, Escola de Música e Belas Artes. Ponha-se na lista ninguém menos do que Miguel Bakun e Antônio Arney, com cuja linhagem Lima se afina. Mas ele morava mais longe, ora Maringá, ora Londrina, onde parecia haver poucos horizontes além da multitalentosa Letícia Marquez. A crítica de arte ponta-grossense Adalice Araújo andou por lá, garimpando, em meados da década de 1980. Trouxe Zé e sua turma para uma exposição em Curitiba, na Galeria Banestado, mas nada que mudasse um defeito de nascença — o mineiro paranaense não tinha pedigree. Pesava? Pesava. Não esconde o desconforto, ainda hoje.
Veio para a capital mesmo assim. Chegou com seus estranhos trabalhos em papel jornal, matéria-prima abundante para sua arte povera. Fazia uma paçoca, e o que era leve parecia ferro, formando estruturas-esculturas — não raro monumentais, não raro instrumentos medievais, sem deixar de serem intimistas. Lembravam um pouco aquelas tralhas que ficam penduradas em barracão de sítio, cuja serventia só o dono sabe. O pano, a ferrugem, as cores terras, quando não terra mesmo, viraram seu vocabulário de homem silencioso, usado para conversar com uma gente que não o tinha convidado para a festa. Esses trabalhos viraram seu novo radinho de pilha — garantiram sua conexão com Curitiba, por onde ficou, em relativo silêncio. O ano: 1987, há exatos 30 anos.
O ateliê no qual trabalha, nos fundos de sua casa, no Parque São Lourenço, tem a dimensão de um sujeito que veio do campo. É espaçoso, com mais de um piso e área livre e aberta na frente. Tirando um prédio ali em roda, o resto é copa de árvores. Nesse cenário, pode vergar um ferro de dois metros e esticar estopas. Comprar a maior tela, a maior folha de papel, colar feltros e panos sobre ela. Feito um Pollock, tem ambiente para sobrepor camadas e mais camadas de tinta, de modo a provocar no espectador a mesma vertigem, a mesma dúvida de sempre. Quer-se olhar os trabalhos de perto e de longe. Roçar a superfície com as mãos. Fazer silêncio, em coro com o artista. Observar o mistério das sobras. O que Zé faz com os restos é uma gramática universal — daí a “liga” imediata que costuma provocar no espectador.
Nos dois últimos anos — é bom que se diga — alguns fatos tiraram José Antônio de Lima de seu sossego criativo. Primeiro, veio uma enfermidade braba e vencida, seguida de um sabático em Lyon, na França. Myrian foi a estudos. Ele, para um quarto no apartamento que, esticando bem a fita métrica, dava 70 metros quadrados de área total. A paisagem lá fora era bestial, mas não teria muito como esticar os braços, de modo a esbanjar gestos, tão a seu paladar.
Voltou a ter os ombros encolhidos, as costas curvadas, como se ainda seguisse as lições de desenho do Instituto Universal. As folhas de Canson 2m x 10m foram repartidas em vários pedaços do mesmo tamanho. Uma mesa de escrivaninha lhe serviu de amparo para o exercício que podia se permitir àquela altura da vida, do espaço e do globo: a produção de círculos e espirais, sem censura, em desrespeito a todas as regras.
São formas infinitas, intestinas, em vermelho sangue de Chagall. Colocadas lado a lado, formam como que arabescos, nos quais a tentação é ir seguindo com os olhos, ou apontando com os dedos de maestro, no ar, o percurso onde levam. Ainda que remetam a um momento de dor, são brincantes. Zé fez tantas pequenas pranchas com essas espirais — e juntas permitem tantos quebra-cabeças —, que decidiu permitir a quem queira fazer o jogo de montar. É o mais interativo dos seus trabalhos. O mais negociável com o espectador. O que mais provoca a doida da imaginação.
Reza a lenda que Picasso e Miró, a folhas tantas, teriam dito algo parecido: “Ah, agora não sei mais desenhar”. Podiam errar à vontade, dando um basta nos espartilhos da composição. Em Lyon, encolhido no quartinho, quem podia esperar, José Antônio de Lima, provou do mesmo prazer. Livre das lições do Instituto Universal, das elegâncias do caderno dois, do ateliê, de si mesmo, fez-se um náufrago na França. Foram mais de 200 trabalhos, capazes de aguçar todos os censores criativos. São sinfônicos, mas sem afetação. Deixam a aldeia bem mais divertida.
Serviço: Nexos-Desconexos – mostra de desenhos e pinturas de José Antônio de Lima, Zuleika Bisacchi Galeria de Arte, Pátio Batel, piso L3.