José Carlos Fernandes

Uma vila cansada de ratos

José Carlos Fernandes
03/09/2017 20:00
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Foto: Arquivo Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O noticiário não mente. O povo da Vila Torres – um encrave popular entre os bairros do Prado Velho, Rebouças, Guabirotuba e Jardim Botânico – tem medo de bandido. Volta e meia, os maus bofes entre as duas gangues locais, de nomes sob medida para quem tem problemas com a geografia – a “Turma de Baixo” e a “Turma de Cima” –, põem nos nervos os aproximados 6,5 mil moradores da comunidade. Quem está na parte de baixo fica proibido de passar para a parte de cima, num Tom e Jerry que já dura uma data. A vila tem aproximados 60 anos e anda cansada de guerra.
Os traficantes atazanam, mas não são a única chama do inferno a arder naqueles baixios. Os moradores das Torres alimentam outro medo – o dos ratos. Não há estimativas de quantos sejam, mas chegam todas as noites, em caravanas, pelas rebarbas do Rio Belém, com a missão de se servirem dos restos de comida que desembarcam clandestinos, em meio ao papel e plástico para reciclagem. O palpite é que pouco mais de 30% dos que vivem na vila trabalhem com separação de lixo, boa parte deles hospedados nos próprios barracões de estocagem, num flagrante caso de exploração de mão de obra escrava. O delito foi objeto de gritas, grandes reportagens e é de conhecimento do Ministério Público do Trabalho.
“É ali que mora o perigo”, como se dizia. Os adultos e crianças que dormem em meio a pilhas de papelão ou de garrafas pet estão sujeitos a contato com urina e fezes de rato. Assim como a ataques. As histórias são de nos fazer subir na cadeira e chamar pela mãe. A existência de uma ratazana do tamanho de um gato? Essa é antiga e, ao contrário do Saci Pererê, pode ser confirmada. Tem a da velha senhora que viu seu dedo ser arrancado por um roedor. A dos que morreram por leptospirose. “Lembra do João Maruinho?”, perguntam alguns, sobre o líder comunitário, ligado às políticas de meio ambiente, vitimizado pela doença, não faz muito tempo.
Pois é. A lista de mortos e feridos por “doença de rato” é de um assombro medieval e rivaliza com a de número de vítimas do tráfico. Tudo subnotificado, claro. Há quem esconda a origem de suas náuseas, dores de cabeça e entrada na emergência de hospitais. Mesmo em febres, o instinto é se proteger do estigma da doença. Tampouco são confiáveis as fichas hospitalares ou os atestados de óbito, que podem trazer como causa uma enfermidade qualquer. De modo que, para além dos seus abatidos por bala, a vila enfrenta silêncios e solidões provocados pelos ratos. Indiferentes, chegam sem cerimônia, desfrutando das benesses da informalidade da vizinhança, da negligência dos governos, do pouco caso em geral.
Não faltam pauladas na cabeça da bicharada, uma habilidade olímpica dos moradores, acrescidas de doses cavalares de veneno, servidas no canto das casas. Mas nada que resolva: os bichos sobem escada, se abrigam em telhados e passeiam ligeiros pelo chão, atrás de alguma sobra do McDonald’s, especiaria abundante por lá. É caso de polícia. Não se pode dizer que a turma – e, nesse caso, a que mora na parte de baixo ou a que mora na parte de cima – está com a viola de papo pro ar. Em sua larga experiência de organização comunitária, o pessoal da vila tentou de tudo para sanear o seu minúsculo reinado. Uma dessas estratégias eram as reuniões por quadra, mostrando os ganhos em não deixar sobras de orgânicos à toa, longas jornadas noite adentro, banquete para roedores. Enviaram-se pencas de reclamações à prefeitura, pedindo, que ironia, para que o caminhão do lixo não faltasse ao serviço. Justo – afinal, boa parte da cidade quem limpa é a turma da vila.
De uns tempos para cá, contudo, a militância arrefeceu. A esfera da miséria dos últimos anos fez aumentar o número de barracões de reciclagem, e com eles a quantidade de moradores ocasionais – empregados na coleta. No saldo, montanhas de lixo pela rua. Basta andar por lá para conferir o estrago. A imagem do rapagão, empunhando uma enorme trouxa de plástico preto, recheada de papel molhado, para pesar mais, é o atual estado da arte. De acordo com os relatos, quando colocam o fardo na cabeça, para conduzi-lo à pesagem, se encharcam, e não só da água da chuva. Não se espantem amanhecerem com ardores de febre.
Não se trata de assunto para o lanche da tarde – ou para uma crônica de domingo. Nem é “bolinho” para o pessoal da vila. Os ratos são um assunto tratado entredentes, para não arrumar mais um estorvo a quem tem rótulos de sobra. Se existe algo que amargura as lideranças das Torres é ser vista “só” como uma Faixa de Gaza nas barbas da civilizada Curitiba. Ou “só” como uma vilinha pobre no meio da riqueza – e bem no caminho do aeroporto. Como se não bastasse, alguém pode alardear que é o lugar em que os ratos fazem seu resort. Mentira – na úmida Curitiba, a ratolândia é problema sem fronteira de bairros. Ratoeiras fazem parte do nosso arsenal doméstico – e que venha para o tapa quem discordar.
No mais, a quem interessar possa, a Torres não é para amadores. À revelia de volta e meia se converter num globo da morte, é também o lugar em que o Marcão tem times de futebol, onde a Irenilda mantém uma biblioteca com livros retirados do lixo. Na vila o Adílson criou uma ONG para contraturno das crianças, o “Baleia” fundou uma praça e um museu. As lideranças são o que há – prosear com o Esni, o Ezequiel, o Saulo, o Tanaka e o Cordeiro deixa a gente com um pouco de vergonha de ser tão molenga, de não soltar o verbo, de não se coçar. Na hora do pega pra capar, essa trupe até se estranha, mas tudo acaba em círculo de negociações, como se houvesse ali uma embaixada da ONU, mantida por obra e graça da governança de gente humilde. Os ratos estão na pauta.
“Acho que foi influência da Maria José”, costuma dizer José Cordeiro, 55 anos, dono de uma venda, em riba da ponte do Belém. Ele se refere à ex-moradora Maria José Mendonça. Ao furar o cerco, nos anos 1990 ela cursou Assistência Social na PUC e pesquisou como a imprensa construiu a imagem da Torres – uma faixa de moradias que resistiu ao desfavelamento do antigo Capanema. A ocupação deu lugar ao Jardim Botânico, mas sobrou um pedaço, um dia conhecido como Vila Pinto. Ao mostrar seu estudo à turma, Maria deu largada a um movimento de reação: vileiros, unidos, não aceitariam mais ser reduzidos a um único rótulo, como se não houvesse vida nas paralelas e transversais da Rua Manoel Martins de Abreu, a avenida central da comunidade.
Deu resultado, mas não se desmonta num estalar de dedos o imaginário sobre a pobreza, cujas fumaças remontam à Idade Média. Os necessitados – em bulas papais, inclusive – eram apontados como imagem terrena do Salvador. Na piedade popular, aquele que necessita de comida, abrigo, roupa pode ser o Cristo disfarçado. No século 17, com a explosão do número de desvalidos na Europa, o que era visto quase como um dogma vira um sururu danado. Os pobres passam a receber toda sorte de impropérios – acusados de devassidão, desobediência às regras sociais, blasfêmia. Ah, de serem transmissores de doenças.
O higienismo da virada do século 19 para o 20 só fez reforçar essas ideias fora do lugar, redundando no pior dos pesadelos, como se sabe, nascido de um cara de bigode. A esquizofrenia social que se esconde nos discursos de limpeza, por sorte, também gerou reação ética e estética – como não citar A peste, obra-prima do franco-argelino Albert Camus? Na trama, um exército de ratos apavora Oran. Cair morto vira rotina, cena que faz emergir a figura magistral do médico Bernard Rieux, um tipo que não arreda. É um livro que dói. A epidemia nada mais é do que um modo disfarçado para tratar do nosso apetite absurdo por tirania, censura, segregação. Também trata de humanidade. Sugiro a quem queira dar uma amolecida no coração de pedra assistir a Minhas tardes com Margueritte, de Jean Becker. A sequência em que Gisèle Casadesus lê A peste para um limítrofe e machucado Gérard Depardieu é um libelo ao poder da arte em nos fazer enxergar.
A propósito, ainda na década de 1960, quando o mundo parecia ter aprendido alguma coisa com as duas guerras que inventou, o discurso fácil desferido contra os pobres não recuou. Assim que as capitais viram surgir as imensas favelas, saíram dos ralos os velhos discursos confusos sobre limpeza, moralidade e demais obsessões da pequena burguesia. Ora bolas, quem nunca viu um rato desfilando, gabola, pela Praça Rui Barbosa deve ser bem distraído. O mesmo se diga quem não se apavorou com aquele ratinho que decidiu se instalar num canto dos nossos imensos quintais curitibanos. Com um pouquinho de esforço, dá para deduzir que a soma desses problemas desemboca em algum lugar. Bingo.
Em tempo – dados recolhidos junto ao Setor Epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde informam que os registros de leptospirose diminuem na capital. Foram 137 casos e 14 óbitos oficiais em 2015, passando para 110 casos e nove óbitos em 2016 e 34 casos e um óbito em 2017 (na Regional de Santa Felicidade). Entre os dias 11 a 18 de setembro, a Unidade de Vigilância em Zoonose fará uma ação nas vilas Torres, Pantanal e Parolin. Além de desratizar, a população será chamada às falas. Tomara a conversa faça eco em outros pontos da cidade.