Redação

Vida e morte em papel jornal

Redação
28/07/2019 20:28
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É estranho, muito estranho, saber da morte de um amigo. A situação é típica: assim que chega a notícia, brota feito água um sentimento de culpa – e de alívio, em segredo, “por não ter sido a gente dessa vez”. Uma “catarse”, como entendeu Freud. Na sequência, emerge a obrigação de viver pelo outro – já que teve a oportunidade abreviada – e de cultivar os dias com mais sabedoria, intenção, claro, logo abandonada. Somos uma sofisticada máquina de repetições (risos).
Passei por essa situação mais vezes do que gostaria – embora saiba que, com o correr dos anos, despedir-se de amigos vai se tornar mais e mais comum. Ou vice-versa, se me entendem. Tive um colega de “ginásio” e outro de “colegial” que se foram, ambos, aos 24 anos. Pela linguagem, o leitor deve ter deduzido que faz tempo. Um se foi em acidente de automóvel (e quem nesse país nunca perdeu alguém numa “batida”?). Outro, para o linfoma não Hodgkin – “o mesmo do Gianecchini”, como virou onda dizer.
Anos depois, foi a vez de um colega de faculdade, em decorrência da aids, episódio amargo que um dia espero ter palavras para relatar. Esta semana, recebi a notícia de mais um óbito. O nome do meu amigo era Valmor Pascoal Longo, tinha 57 anos e estudamos juntos do primeiro ano do ensino médio até o fim da faculdade de Filosofia. Morreu de câncer. À revelia da longa jornada, nos tornamos próximos tardiamente, por força da cumplicidade: éramos seminaristas, com votos, e ele se apaixonou por Márcia Kumakura – uma japonesa de Batatais, no interior de São Paulo. Fui seu confidente e apoiador. Deixou tudo por ela. Tenho notícias de que se fizeram felizes.
A morte – não raro trágica – tem essa bipolaridade de montanha-russa. Vai do previsível ao inesperado num estalo, daí funcionar como um rodopio que nos deixa tontos
Valmor era um homem
pequeno, de sorriso indisfarçável e nariz de águia. Seus olhos, dois faróis
verdes, não deixavam que passasse despercebido, apesar dos modos silenciosos. Pisava
leve. Nunca era o primeiro a falar. Tinha um senso de humor inocente, que caía
bem em qualquer ambiente. Imagino que nunca deixou de ser o bom guri vindo de
uma colônia italiana do Rio Grande do Sul. De suas muitas virtudes, lembro do
talento para a oratória. A voz levemente abafada, mas com todas as entonações dos
gaúchos, soava música: simples, conciso e direto, mostrou-se à vontade nos
púlpitos, êxito que deve ter repetido ao se tornar representante de uma marca
de vinhos, sua profissão depois que se secularizou.
***
Se me permitem um aparte, penso que meu gosto por assuntos fúnebres teve início em 1974, com a morte de minha bisavó. O velório durou um dia todo – e serviu-se sopa. O cortejo seguiu pelas ruas do Novo Mundo – tão popular era a “portuguesa da Rua João Stenzowski”. Escrevi crônica a respeito, para a finada coluna “Peteca”, da Gazeta do Povo. A morte – não raro trágica – tem essa bipolaridade de montanha-russa. Vai do previsível ao inesperado num estalo, daí funcionar como um rodopio que nos deixa tontos, pirados entre o riso e o choro e o transe. Nas lides de repórter, mais de uma vez entrevistei familiares anestesiados, como se experimentassem a irrealidade, estando a dois passos do caixão. Eu mesmo provei disso quando meu pai morreu: era como se aquilo não estivesse acontecendo, só que sim. Repeti as coisas engraçadas que ele dizia enquanto tocava sua mão gelada.
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As relações entre o jornalismo e a morte concorrem, em certa medida, com a medicina. Uma das primeiras tarefas dos novatos nas redações é bater ponto no IML – tarefa que tem igualdade de gênero: ninguém escapa. Em rodas de profissionais de imprensa, alguém sempre garganteia seu “primeiro presunto” – jargão politicamente incorreto para a visão de um corpo estendido no chão, em meio a uma cobertura policial ou tragédia de trânsito. No começo “dá um ruim”, mas a gente logo fica com a “casca grossa” ou com o “pelo duro”, como se diz. Não à toa, um dos personagens célebres de Nelson Rodrigues se chamava Amado Ribeiro (saído da vida real, e com esse nome mesmo) – um jornalista calculista, que tirava um sanduíche do bolso do paletó e o comia olhando para um corpo em decomposição.
Com perdão ao clichê, nem tudo são flores. Jornalistas policiais (exceto os sanguinários, que lucram com a desgraça e envergonham a categoria) e obituaristas não são funções valorizadas nos bastidores da comunicação. No inspirado livro O beijo de Lamourette, o historiador ianque Robert Darnton relembra sua passagem como repórter do jornal The New York Times, na mocidade. O que conta é universal. Cita que profissionais em vias de serem demitidos eram remanejados para a editoria de obituários ou necrológios, para ali se dedicarem a levantar a cronologia de cidadãos expoentes – políticos, artistas, cientistas, ricaços – que podiam morrer a qualquer momento, por força da idade ou da doença.
Ou seja, essa turma que
sumia do noticiário não gozava mais do desafio de uma boa pauta. Pensem, no
Brasil, há quanto tempo estava pronto o texto da morte de Dercy Gonçalves e de
Oscar Niemeyer. Quem os escreveu? Um repórter anônimo, candidato a um mortífero
pé na bunda.
Mesmo envolto em sombras, o “obituarismo” produziu mitos, como o norte-americano Alden Whitman, conhecido como o “senhor Má Notícia”. Whitman atuou em meados do século passado, quando jornal era impresso a ferro, e mereceu um perfil assinado pelo mestre Gay Talese. Repórter astuto, garimpava entre as celebridades informações privilegiadas, que usaria depois, ao escrever seus obituários – sempre os melhores da praça. A função era chulé, mas tinha charme. No cinema, ninguém menos do que Jude Law vive um obituarista em Closer, de Mike Nichols. Tudo bem, o personagem não vale um dólar furado, mas é o Jude Law.
Pensem, no Brasil, há quanto tempo estava pronto o texto da morte de Dercy Gonçalves e de Oscar Niemeyer. Quem os escreveu? Um repórter anônimo
Com o advento da
internet, os obituaristas experimentaram seus 15 minutos de fama. De 1995 para
cá, as medições de audiência não raro mostram o “texto sobre os mortos” no topo
das matérias mais lidas. À revelia de serem narrativas franciscanas. O leitor
se vê no espelho ao acompanhar pequenas histórias de mulheres que faziam
deliciosos bolos de laranja e de homens que pintavam o muro como ninguém. Houve
investimentos em recursos humanos e – saravá – jornalistas coroados passaram a
assinar obituários vez em quando. O lugar solitário dos repórteres modestos foi
redescoberto. Recomendo a leitura de duas coletâneas do gênero – Um dia, uma vida e O livro das vidas, respectivamente com obituários publicados na Folha de S. Paulo e no Times. Tratam de pessoas comuns, vistas
pelas lentes do cotidiano, chão firme em que se manifesta o extraordinário.
Em termos de obituários, fui um privilegiado. Escrevi uns tantos, mas apenas de pessoas a quem conheci bem. Por um bom tempo pude acompanhar o trabalho da jornalista Aline Peres, ás no estilo e por anos titular da pasta na Gazeta do Povo. Empática, conseguia todos os dias uma história de morte que valia uma vida. Recolhia depoimentos em meio ao luto, o que é uma lenha. Juntos, chegamos a planejar uma publicação, com a lista de eufemismos usados pelos parentes para falar dos defeitos de quem se foi. Ninguém, por exemplo, era “chato”, mas “metódico”. Nem “deprimido”, mas “reservado”. Em vez de “doido”, “sistemático”. Se “mulherengo”, um “admirador do belo sexo”. Em vez de “conservador”... “gostava da coisa certa”, mas, cá para nós, o arquivo deste adjetivo foi corrompido. Deve-se usá-lo com desconfiança felina.
Em tempo, o melhor
necrológio que li, que ironia, não é um necrológio. Explico. Em meados da
década de 1990, com a morte anunciada por causa da infecção pelo HIV, o santo
cívico Herbert de Souza, o Betinho, lançou o livro A lista de Ailce (Companhia das Letras, 1996). Penso que esse texto
foi sua catarse. A Ailce do título era uma prima mineira de Betinho. Quando
catava os pedaços de sua existência, o sociólogo escreveu a ela, perguntando
quem tinha morrido na pequena Bocaiúva, onde nasceram. Veio a lista – tinham
morrido o Bento Carmélio, o Ranulfo Caldeira, a Geralda Pinto... Uma pá de
gente.
Betinho, então, escreve o que lembra sobre os mortos de Bocaiúva. Dá a entender que se vê, aos poucos, como parte da lista de Ailce. Que morre um entre tantos, sem que a vida pareça o Arquivo Confidencial do Faustão. É doce.
(Texto dedicado ao amigo Valmor Longo, com uma lágrima.)