José Carlos Fernandes

A violência nos diz respeito

José Carlos Fernandes
04/03/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima

O nome dele era Amado Ribeiro. Repórter policial do mítico jornal Última Hora – veículo nascido em 1951, da genialidade de Samuel Wainer e da grana do governo Vargas –, não acumulava lendas em torno de si. Era a lenda. Impressiona o volume de pequenas histórias mirabolantes a seu respeito. Dizia-se à boca pequena que – como num dos melhores filmes do cinema noir – tirava um sanduíche do paletó e o saboreava diante do corpo dos assassinados, sem que as vísceras expostas lhe causassem engulhos. Um legítimo Dashiell Hammett com tinturas de Raymond Chandler.
Não espanta que tenha se tornado personagem de seu mais famoso colega de trabalho, Nelson Rodrigues. O Anjo Pornográfico não se deu ao luxo de arrumar outro nome para o jornalista que criou para a peça O beijo no asfalto. Chama-se Amado Ribeiro. O próprio não teria se importado com esse excesso de licença poética e esteve na estreia da montagem – cujo argumento é o estranho pedido de um homem atropelado a outro homem que o socorre na “hora fatal”: um beijo na boca. Sangue, erotismo, faits divers e a morte – a receita perfeita para um abre de página. A suposta história – nascida de episódio parecido, registrado pela crônica policial – virou notícia na dramaturgia, pois assim o seria na vida como ela é, lugar onde morava um cara como Amado, terno cinza puído, sapato preto engraxado, tédio e dado a garranchos num bloquinho de anotações.
Para quem não é do ramo, durante muito tempo os jornalistas policiais carregavam um apelido pejorativo: carrapichos. Nem um nem outro são mais populares quanto foram um dia. Na botânica, carrapichos são ervas daninhas, com uma maldita broca na ponta. Sua capacidade de grudar às barras das calças demanda um caminhão de paciência. Lembro de usar giletes para tirá-las das roupas, quase sempre em vão: carrapichos devem ser arrancados é na base da unha. Se o termo “jornalista policial” causa por si só desconforto – por ser equivalente a “advogado de porta de cadeia”, imaginem ser chamado de carrapicho.
Nos anos de redação, vi dois colegas quase trocarem tiros por causa do rótulo “carrapicho”. E não adiantou se desculpar dizendo que Antônio Maria – o compositor, boêmio e charmant – também tinha sido um, ofício com o qual pagava as contas do uísque honesto. “Não sou carrapicho. Eu cubro segurança pública”, respondeu o ofendido, mochila acomodada às pressas nas costas. Vazou, antes que não respondesse por seus atos e fosse ele mesmo parar nas lides de algum “espreme que sai sangue”, epíteto reservado ao jornalismo policial e nome de um livro excelente de Danilo Angrimani.
Quanto ao colega que ficou puto com o título sem nobreza que lhe deram, não mentia. Carrapicho não lhe cabia mais. Àquela altura dos anos 2000, a imprensa brasileira vivia uma espécie de Renascimento na cobertura da criminalidade e da violência. No lugar da linguagem repetitiva, chula e sensacionalista, o arroz-com-feijão dos tabloides, impunham-se os dados e as análises sobre tráfico e sistema prisional – para citar dois pontos desse imenso cardápio. Em vez de repórteres garimpando número de homicídios no balcão das delegacias, tendo de se tornar simpático dos oficiais para conseguir dados, agora gente ocupada em propor saídas para os impasses, por meio de políticas públicas e engajamento da população. Essa guerra – sabia-se àquela altura – não seria vencida por um exército de Brancaleone. Tampouco pela infantil repetição de frases como “onde estava a polícia nesta hora?”, “cadeia neles”, “bandido bom é bandido morto”, “se tivesse pena de morte isso não aconteceria” ou a infame “vão virar mocinha na penitenciária”.
Aos fatos. Dias atrás, um renomado jornalista – deixo seu nome para ser pronunciado nos alto-falantes do Juízo Final – desdenhou da quantidade de especialistas em violência surgidos para analisar a desastrada intervenção militar no Rio de Janeiro. São poucos mesmo, mas não brotaram do pé de couve, como sugeriu o colega ao, por vias indiretas, chamá-los de oportunistas. Os pesquisadores de violência se formaram na dureza, para colocar na nossa agenda um problema que adoramos jogar no colo de algum salvador da pátria. Que lorota. Melhor recomendá-lo ao Saci Pererê – as chances de sucesso seriam maiores.
Para tristeza geral, a quantidade de brasileiros que reclamam da criminalidade é inversamente proporcional aos que se ocupam de combatê-la. Um pente-fino nas instituições – Estado, igrejas, universidades, terceiro setor – tende a mostrar a repulsa que o tema provoca. Parte disso vem da impotência, parte da cultura, parte da falta de semancol. Há muita grita para pouco cotovelo ralado. Faltam médicos, professores, advogados, urbanistas, empresários, líderes em geral, dispostos ao enfrentamento da criminalidade. Supõe-se que ninguém quer ser tomado por carrapicho nas suas respectivas áreas. Essa recusa também atinge a imprensa. Corte para a briga que vi na redação. Se carrapichos estão em extinção, jornalistas que migraram para a segurança pública também. Eis a parte que nos cabe neste latifúndio.
Poucos temas avançaram de forma tão rápida na imprensa brasileira quanto, digamos, a sociologia e a ciência do crime. O marco desta mudança de mentalidade foi o fechamento do jornal Notícias Populares, em 2001. Nos 38 anos em que o NP – como o chamávamos – circulou, não havia o consolo escapista das redes sociais. Havia o exemplar do dia, lido de assalto na porta das banquinhas, ou por baixo das carteiras das faculdades, nas quais fazia mais sucesso que Foucault. O NP – editado com maestria, deve-se reconhecer – parecia escrito para quem foi expulso e apartado da escola e trabalhasse na construção civil, mas contava com cultos e elegantes na sua horda de leitores. Liam-no, é bom dizer, como piada. As manchetes apelativas, surreais, representavam para a pequena burguesia uma varanda imaginária na qual observavam, de longe, a desgraça alheia.
Muitos disseram “ah” para o fechamento do NP, mas o tempo não deu ao jornal o mérito das lágrimas. Afora as sacadas memoráveis dos títulos – e o gosto pelas lendas urbanas, do naipe da Loira Fantasma e do Bebê Diabo –, o Notícias Populares, perdoem, já foi tarde. Ao usar sem economia os truques da linguagem policialesca, informou sobre o crime, mas não ajudou a combatê-lo. Reforçou estereótipos, soluções simplistas e cultivou a estranha estética do grotesco, emoldurando a nossa desgraça com “tiração de sarro”. Pior. Muitos jornais – inclusive os ditos sérios – replicavam os cacoetes do NP. Exemplo? Até o fim da década de 1970 era comum a editoria de polícia se referir a mulheres como “amásias”, “mundanas” ou “decaídas”. Isso tudo, claro, depois de fotografá-las com o olho roxo, descabeladas e com a saia rasgada. Sempre me pergunto se as feministas liam jornal.
Em miúdos, pós-NP a imprensa se redimiu. Alguém que se debruce sobre os impressos de então vai encontrar análises, estatísticas e, sobretudo, um receituário comunitário para enfrentar o crime. Em alguns, a informação de qualidade sobre o tema ultrapassava 40% do editorial. A pauta contemplava também a importância das relações de vizinhança, iluminação pública, mobilidade, empoderamento… Em vez de aplausos para a força bruta, o destaque para um país como a Colômbia, que fez das bibliotecas, da opção pelos jovens, da revitalização de parques e da implantação de ciclovias suas armas para combater algumas das maiores taxas de homicídios da história contemporânea.
Uma das discussões mais interessantes, então, era sobre os efeitos da violência. Chama-se medo. Enriquece as empresas de segurança privada, o gasto com alarmes e cerca elétrica, tira a população da rua, mata o que se entende por cidade. O “medo”, chegou a dizer o arquiteto e urbanista Paulo Mendes da Rocha, se tornou o novo fascismo. Em nome dele todas as atrocidades podem ser praticadas.
Quanto à imprensa, não tem segredo. Amarelou. A lógica de audiência substituiu o modelo de influência e matou de inanição o recém-nascido jornalismo de segurança pública. Custa caro, exige profissionais de primeira, mas em resposta nenhum leitor curte ou compartilha matérias que retratem criminalidade, suas raízes e soluções. Não quer se ver associado a questões que roubam o brilho das selfies. Que são Amado Ribeiro, protetor dos carrapichos, nos ilumine.