José Carlos Fernandes

Vitamina, uma fábula de Oz

José Carlos Fernandes
15/10/2017 19:02
Thumbnail

Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

O Brasil em curto-circuito – com uma pá de gente louquinha para mergulhar de touca na censura – tem afetado, digamos, até mesmo os espíritos mais elevados. Refiro-me ao Vitamina, nome de guerra do curitibano Henrique Paulo Schmidlin, 87 anos, pós-doutorado em alto-astral. Nada parecia abalar a disposição de suas longas pernas de montanhista nem sua boca cheia de dentes. Mas, como dizem os humoristas, “está difícil competir com a realidade”.
“Vita”, apelido do apelido – que significa “vida” e lhe cai tão bem –, está em luta corporal com a desilusão. Dispensa explicações. Sintoma? Deu de esbanjar nos palavrões. Tirem as crianças da sala. Diz um “puta merda” aqui, um “bosta” acolá. Fora os cabeludos. E informa que não é papo furado nem nada sua disposição de se mudar para uma praia nas cercanias de Lisboa. Claro – todos os que o conhecem, e não são poucos, hão de fazer uma corrente e impedir o voo de partir. Temos de avisar os patrícios que o Vitamina é nosso, sem margem de negociações.
Justiça seja feita, o motivo da mudança anunciada não é desagravo ao governo Temer, ainda que o trate com o devido desprezo. É paixão. Os arroubos lusitanos de Schmidlin vêm mais ou menos da época das caravelas (risos). Uma de suas muitas facetas sempre foi estudar e estudar, o que o levou a concluir a supremacia dos portugas, à revelia das piadinhas. Ainda que muitos teimem em reduzi-lo a um “guardião da montanha”, gastou tempo e dinheiro para formar uma biblioteca de 16 mil volumes. Legítimo gabinete de variedades, de colocar o resto no chinelo – o acervo mexe com nossos piores instintos: dá vontade de roubá-lo. Quem quiser fazê-lo terá de invadir os porões da Biblioteca Pública do Paraná: Vita acaba de doar seu tesouro.
“Doeu”, admite, diante dos estrados cobertos de livros, prontos a serem transportados da Rua Euclides Bandeira – onde mora, às margens do Rio Belém – para a Rua Cândido Lopes, sede da BPP. Foi metido nessa coleção que nutriu uma certeza que deve deixar nos cascos seus confrades germânicos, cuja genialidade é atestada no uso da bicicleta e no apetite pelos strudels: “Admiro a inteligência dos portugueses”, desata, com a devida fundamentação das teses, alimentada pelos muitos anos em que – depois de ralar os joelhos nas trilhas – lanhava os cotovelos sobre documentos históricos.
Se me permitem uma correção, antes de estudioso, Vita é um curioso sem tramelas. A idade só agrava. O que o move a ainda hoje subir o Marumbi – prática que repete por aproximadas oito décadas – tem a ver com o cuidado com a natureza, como não. Sua carreira de ambientalista soma 30 anos de serviços prestados ao setor de Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura. Mas o que o move sobretudo é a crença de que pode descobrir algo que não sabia. Vai ver que por isso costuma escalar em roupas de gala – a bordo da indefectível gravatinha borboleta, traje típico desde a época em que atuou como bancário, nos dourados anos 1950.
Vita, em miúdos, não faz passeios – faz expedições, nas quais pode encontrar planta, bicho, rios, mas também uma informação perdida no meio do mato, na voz de anônimos, na arquitetura de beira de estrada. É também em nome da curiosidade que se transforma num polvo, numa centopeia, sei lá. Impossível listar todas as iniciativas em que está metido, o azougue. Mais “esponja” que ele, chuto, só o arquiteto Key Imaguire Júnior, uma espécie de onipresença discreta, por mais absurdo que o termo pareça.
Pois não lhe faz inveja. Vitamina integra institutos históricos, confrarias de ciclistas veteranos, associações de montanhistas da chama eterna. Onde houver duas ou mais pessoas reunidas, arrisca de ele estar lá. No passado, integrou partidos de esquerda, o que lhe rendeu severas dores de cabeça e cadastro VIP nos porões da ditadura. Conhecia tanto a Mata Atlântica que os militares deram de bater os coturnos, em juras, de que Vita tinha arrumado um esconderijo para o “inimigo público n.º 1” do regime, o capitão Carlos Lamarca. É uma das muitas passagens da sua tonitruante biografia. Não foi escrita, mas anda nas bocas, repetida para espantar o tédio.
Foi movido por essa imaginação ritalínica que Vita descobriu, tempos atrás, que o sobrenome Schmidlin não é alemão, como lhe juraram os antepassados, debaixo dos sagrados lustres do Clube Concórdia. É suíço. Da cidade de Schaffhausen. A informação mexe até com as bases mais profundas do lugar onde tudo começou, a germaníssima Joinville. “Uma confusão. Os suíços vinham com passaporte expedido na Alemanha”, explica, sem mais. Não passa de um fait divers. Não muda seu envolvimento umbilical com a comunidade alemã de Curitiba, da qual é embaixador informal.
A mãe de Vitamina, Lúcia, morta em 2016, aos 102 anos, era Barz. Com ela aprendeu a fazer longas caminhadas – em companhia de gente tradicional, como os Schaffer – e a comer frutas e verduras sem restrições de cores e quantidade. Nos acampamentos à Serra do Mar – nos quais se alistou quando ainda vestia calças curtas –, chamava atenção ao carregar um hortifrúti inteiro como guarnição. Daí veio o apelido. Foi também no seio da alemãozada, como ele diz, que conheceu o sentido trágico da vida.
O episódio é sabido. Em 1942, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra, um surto de germanofobia contaminou a capital. Jornais alemães, como o Der Kompass, foram pilhados. A superlativa Foto Progresso, na Rua São Francisco, virou poeira diante da fúria dos populares. Mais de uma vez Vita declarou que aqueles três anos de intolerância tiveram um efeito nefasto sobre a musical e esportiva sociedade germânica, que, exceto umas dezenas de doidivinas, nada tinha a ver com o pato. Por que lembrar disso agora?
No meio de tanto bafafá – fecha exposição, peça de teatro, caça aos pelados e tal – começa a se anunciar a perseguição aos livros. Favas contadas. A turma da patrulha teme o efeito brutal que os corpos nus causam à psique e à moral. Temem também pelas leituras, como se verificou, recente, nos impropérios a um jornalista que tinha em sua estante a excelente biografia de Carlos Marighella, de autoria de Mário Magalhães. Aconteceu outras vezes – inclusive com Tiradentes, acusado nos autos de ler o que não devia. Aconteceu com o Vitamina, quando menino. Bem lembra.
A casa onde morava, hoje o Solar do Barão, na Rua Carlos Cavalcanti, amanhecia pichada com palavras que não renderiam uma canção de ninar. Ir ao Colégio Santa Maria – sua escola – exigia nervos de aço. A gurizada queria pegá-lo na saída. Porrada. Numa ocasião, a polícia bateu no endereço, com a alegação de que Paulo Schmidlin, o pai, um comerciante bem-sucedido, mandava mensagens dali para submarinos alemães. A imaginação era tamanha que os próprios guris da comunidade foram detidos durante um passeio ao Litoral. Suspeitava-se que se comunicavam com os conterrâneos, dos altos da Serra. Fake news, como se vê, é a vovozinha.
De todas as cenas desse inventário, a mais brutal foi o sequestro dos livros das casas alemãs, a dos Schmidlin inclusive. Todas tinham uma biblioteca, a contar pelos relatos. As tropas do delegado Walfrido Pilotto, que comandava a devassa, chegavam de repente. Na correria, é provável que alguns volumes tenham sido escondidos nos sótãos, despensas, de modo a evitar o bibliocausto. Talvez o diário das moças. Diretórios de cânticos luteranos. Álbuns de fotos. Vita fala de caixas de livros enterradas – tal como no filme Balzac e a costureirinha chinesa. É história difícil de ser contada. Poucos descendentes ou testemunhas se dispõem falar no assunto, para não mexer na ferida.
Na pilha de livros doados por Vitamina à Biblioteca Pública pode estar algum título salvo, por uma alemãzinha ágil, da fogueira dos anos 1940. Seria um sonho expor essa coleção no museu – algo bem pedagógico, para não incomodar a Câmara de Vereadores, que anda tão assoberbada. A propósito, Vita é leitor do judeu Amós Oz, autor do libelo Contra o fanatismo. O autor alerta, com razão, que vão longe no tempo as guerras e as tiranias, a ponto de esquecermos o estrago que causam.
Oz, não por menos, escreve em parábolas. Um de seus personagens bem poderia ser um alemão-suíço que ama Portugal e escala o Marumbi de gravata borboleta. Um pernalonga que doou à biblioteca de sua cidade os livros, em resposta aos que lhe tiraram na infância. Mora num lugar distante, perto de um bosque com nome de papa. A fama é que, apesar dos pesares, soube se fazer um homem feliz.