
Ouça este conteúdo
Anos antes de se tornar o “posto Ipiranga” do ex-presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro da Economia Paulo Guedes costumava recorrer a um bordão impagável em seus comentários sobre os economistas que participaram dos governos FHC e se identificavam com as propostas de centro-esquerda do PSDB, fossem ou não filiados à legenda. “Esses sociais-democratas...”, dizia, com ironia, despertando risos de cumplicidade ou feições de embaraço em seus interlocutores, conforme a orientação ideológica de cada um.
A expressão usada por PG, como ele era chamado por Bolsonaro, referia-se a outro momento da vida nacional, quando o país lutava contra a hiperinflação, que consumia a economia popular em ritmo acelerado. Desde o Plano Cruzado, implementado em 1986, Guedes havia se tornado um crítico contundente dos planos heterodoxos de estabilização que tiveram a participação de representantes do grupo. Depois, apesar de ter apostado no sucesso do Plano Real, que eles também elaboraram, foi um de seus principais questionadores, principalmente pela falta de uma âncora fiscal nos primeiros anos do programa, o que levou os juros à estratosfera e turbinou a dívida pública.
Embora relacionado a outros tempos, o velho bordão de Paulo Guedes se aplica com perfeição ao Brasil atual e reflete a percepção negativa de muitos analistas em relação ao papel ambíguo desempenhado pelos sociais-democratas nos últimos anos. A atuação do grupo – em especial da ala de plumagem tucana e dos que orbitavam em torno do partido sem vínculos formais com a sigla – explica muito do quadro sinistro vivido hoje pelo país, não apenas na economia, mas também nas arenas política e institucional, ainda que isso raramente seja alvo de análises de cientistas políticos e de estudos acadêmicos.
Nos últimos anos, o PSDB encolheu nas urnas e praticamente evaporou do cenário político. Muitos de seus líderes, filiados e simpatizantes voaram para ninhos alheios, mesclando-se a outras espécies. Eles continuam, no entanto, ocupando um espaço relevante na mídia e no debate sobre os destinos da nação, agora como parte do tal “centro democrático” – um frentão que procura se mostrar como alternativa à polarização política e que defende o lançamento de uma candidatura própria da chamada “terceira via”, nas eleições presidenciais de 2026.
A questão é, apesar de se apresentar como uma opção independente à reeleição de Lula e ao candidato a ser apoiado por Bolsonaro – que se encontra inelegível e, ao que tudo indica, estará fora do páreo no próximo pleito – os sociais-democratas acabam sempre revelando seus pendores pela esquerda e abraçando o PT “na hora do vamos ver”.
Foi assim em 2018, quando boa parte dos sociais-democratas apoiou no 2º turno a candidatura de Fernando Haddad, o “poste” de Lula, quando o mesmo estava preso em Curitiba. Haddad é considerado pelo grupo como uma voz “moderada” dentro do PT.
Foi assim também em 2022, quando eles fizeram o L “pela democracia”, com o apoio de todos ou quase todos os economistas que participaram da elaboração e da implementação do Plano Real. Hoje, os autodenominados “liberais progressistas” descem a ripa na política econômica de Lula e já passaram quatro anos sabotando a agenda liberal de Paulo Guedes, junto com o PT e sua tropa de choque.
É certo que, em 2018, o ex-governador de São Paulo João Doria - então ave desgarrada no PSDB - apoiou a candidatura de Bolsonaro contra Haddad, uma postura que gerou fissuras profundas entre seus caciques, filiados e simpatizantes, das quais o partido jamais se recobrou. Logo em seguida, porém, durante a pandemia, Doria se tornou um opositor aguerrido do ex-presidente. Mais recentemente, chegou até a pedir “desculpas” para Lula, por ter dito que ele precisava ser tratado “como todos os outros presidiários” quando estava preso, em Curitiba, e que, na prisão, poderia “fazer o que nunca fez na vida: trabalhar”.
Embora se digam favoráveis à “pacificação” do Brasil, demonizam a direita como se fossem militantes do PT e do PSOL
Como o PSDB foi o grande adversário do PT durante os primeiros 30 anos que se seguiram à redemocratização, sendo “pintados” por Lula, pelos petistas e por seus aliados como uma corrente “de direita”, a vocação de centro-esquerda da legenda e de seus apoiadores ficou muito tempo camuflada. Além disso, como os sociais-democratas tucanos eram a única opção para derrotar o PT, eles acabavam “vestindo a carapuça”, para se beneficiar da narrativa petista, e deixavam o jogo correr.
Só que, com o renascimento da centro-direita e da direita organizadas no país, que haviam sido quase alijadas do jogo político após a redemocratização, em decorrência da associação com o regime militar, a máscara dos sociais-democratas caiu, especialmente a partir das manifestações de 2013 e em defesa do impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, em 2015 e 2016.
De repente, ficou claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que a disputa entre PT e PSDB, que marcou as eleições de 1994 a 2014 e era “vendida” como um confronto entre a esquerda e a direita, representava, na prática, um jogo de comadres. O apoio dado por boa parte dos sociais-democratas a Haddad, em 2018, e a Lula, em 2022, só reforçou a percepção de que, quando a esquerda teve de enfrentar a direita que ressurgiu no país, eles correram, sem titubear, para abraçar o PT.
Apesar das divergências existentes entre os dois partidos, principalmente em relação à economia e à política externa, eles têm muitos pontos em comum, como a defesa de ações redistributivas para promoção de justiça social a partir de programas implementados pelo Estado e de políticas de cotas na academia e nas empresas. Eles também têm uma visão semelhante na área dos costumes, como na defesa das agendas woke e ESG, rechaçadas pela direita e mesmo por muitos representantes da centro-direita.
Não dá para esquecer também de que, com a anulação das condenações feitas no âmbito da Lava Jato pelo Supremo, não foram só as lideranças do PT e as empresas envolvidas em atos de corrupção que se livraram de suas penas. Vários políticos do PSDB – e de outros partidos – conseguiram escapar do xilindró, graças ao apoio recebido de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) próximos a líderes da sigla.
Em 2026, por rejeitarem de forma compulsiva qualquer aliança com Bolsonaro ou com um candidato apoiado por ele, os sociais-democratas provavelmente vão acabar no colo do PT de novo, se o seu eventual representante nas eleições não decolar e não chegar ao 2ª turno, como tudo indica que vai acontecer mais uma vez, diante da falta de uma liderança popular e da escassez de votos do grupo.
Como afirma o cientista político Christopher Garman, diretor para as Américas da consultoria americana Eurasia, Bolsonaro ainda detém um capital político expressivo e permanece como o grande líder da oposição. “Ele tem uma base razoavelmente fiel e as pesquisas mostram que o índice de aprovação dele não caiu um triz desde a última eleição presidencial”, diz. “O grande protagonista que vai definir se a direita estará unificada ou não (em 2026) é o ex-presidente. Em inglês, a gente diria que ele é o kingmaker, o ‘fazedor de reis’, porque vai depender dele como será o jogo eleitoral.”
Outro dia, diante das evidências de que nenhum candidato de direita ou de centro-direita conseguirá os votos necessários para chegar ao segundo turno das eleições sem o apoio de Bolsonaro, um representante da turma veio a público defender a ideia de que o atual governador paulista, Tarcísio de Freitas, possível candidato do bloco em 2026, com o apoio de Bolsonaro e de seus aliados, deveria romper com o ex-presidente e se unir ao “centro democrático”, para ser candidato da “terceira via”.
No campo institucional, também não faltam indicações dos pendores esquerdistas dos sociais-democratas. Muitos representantes do grupo “passam pano” sem cerimônia para as ações arbitrárias promovidas pelo STF contra a direita e a oposição de forma geral, em parceria nada discreta com o governo Lula. Embora se digam favoráveis à “pacificação” do Brasil, demonizam a direita como se fossem militantes do PT e do PSOL e classificam qualquer um que se levante contra o arbítrio como “bolsonarista”, “golpista” e outros rótulos do gênero, para deslegitimar seus argumentos.
Como o consórcio Lula-STF, eles sustentam a narrativa de que houve de fato uma tentativa de golpe de Estado liderada por Bolsonaro, mesmo que um único tanque não tenha saído às ruas nem um único tiro tenha sido disparado, e mesmo que até agora os inquéritos em curso no Supremo não tenham conseguido reunir elementos para provar que um levante comandado pelo ex-presidente teria sido organizado no país, independentemente do que se pense sobre ele e sua atuação política.
Em artigo publicado na semana passada na imprensa, intitulado “Ditadura do Judiciário coisa nenhuma”, o cientista político Sergio Fausto, diretor-geral da Fundação FHC, autor do texto em parceria com o Oscar Vilhena, professor de Direito da FGV de São Paulo, reforçou tal posição ao dizer que a acusação de que o Brasil vive hoje - um “regime de exceção” comandado pelo STF - “é parte da estratégia voltada a promover a impunidade daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito”.
Os sociais-democratas também fazem coro ao consórcio Lula-STF contra a anistia aos acusados e aos condenados e presos pela suposta tentativa de golpe e pelo quebra-quebra de 8 de janeiro nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, e silenciam diante das penas draconianas impostas a cidadãos comuns por delitos menores, como sentar na cadeira do ministro Alexandre de Moraes no STF e escrever “Perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça, localizada na frente do prédio da instituição.
Como se isso não bastasse, eles fizeram vistas grossas quando o STF passou a agir como partido político, derrubando iniciativas legítimas do Executivo no governo Bolsonaro, legislando no lugar do Congresso, perseguindo parlamentares e influenciadores da direita e censurando sites e publicações, como a revista Crusoé, em desrespeito à liberdade de expressão, à Constituição e aos códigos legais.
Algo semelhante aconteceu durante a campanha de 2022, com a gestão enviesada do processo eleitoral por Moraes, que acumulava, então, a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), francamente favorável a Lula. Moraes chegou até a determinar, entre outras medidas do gênero, a retirada do ar de peças da propaganda gratuita de Bolsonaro, como a que associava Lula aos ditadores de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua – um fato amplamente documentado, que foi tema, inclusive, de diversas reportagens dos jornalões do país – sem que tenham feito qualquer contestação à medida.
Nas eleições americanas de 2024, em mais uma demonstração dos reais pendores ideológicos dos sociais-democratas, eles voltaram a se unir ao PT e a seus satélites, ao torcer de forma escancarada contra o então candidato republicano, Donald Trump, e pela vitória da esquerda, representada pela candidata Kamala Harris, do Partido Democrata.
O programa de Kamala incluía propostas socializantes para a economia; a continuidade da agenda identitária impulsionada na gestão Obama e aprofundada no governo Biden; a manutenção da política de fronteiras abertas para a imigração ilegal; a ‘passada de pano” para a tomada dos campi das principais universidades dos Estados Unidos por grupos pró-Hamas e antissemitas; e a defesa da censura nas redes sociais. Tudo isso em meio ao aparelhamento do Estado e do Judiciário, também promovido por Obama e aprofundado por Biden, que Kamala provavelmente não iria reverter, embora, obviamente, não pudesse admitir isso em público.
Diante das sanções impostas por Trump a Moraes e a vários de seus colegas do STF, o governador gaúcho, Eduardo Leite, um ex-tucano que se bandeou para o PSD de Gilberto Kassab por interesse eleitoral, mas que encarna como poucos o espírito dos sociais-democratas tupiniquins, uniu-se ao PT e a seus aliados, ao “normalizar” as ações arbitrárias do STF e defender Alexandre de Moraes e a “soberania nacional”.
“Antes de mais nada, Alexandre de Moraes é um cidadão brasileiro (...). Trata-se de um ministro da nossa Suprema Corte, escolhido pelo Presidente da República, referendado pelo nosso Congresso e exercendo suas funções de acordo com as nossas leis, gostemos ou não delas”, afirmou Leite, em publicação no X. “O Ministro Moraes tem, a meu ver, acertos e erros, mas não podemos concordar que outro país tente interferir em nossas instituições impondo sanções aos seus membros.”
Agora, alguns representantes do grupo começaram, enfim, a fazer críticas às transgressões em série cometidas pelo STF à Constituição e aos códigos civil e criminal, ainda que muitas vezes o façam de forma envergonhada, quase pedindo desculpas aos ministros por colocá-los na berlinda. Mas não se engane: eles são cúmplices, em boa medida, de tudo isso que está aí e permitiram, voluntária ou involuntariamente, que a situação saísse de controle e chegasse ao ponto em que chegou.
Como se pode observar, trata-se de um retrospecto que não deixa margem a dúvidas sobre as reais motivações, a atuação e os pendores ideológicos dos sociais-democratas na hora em que a coisa aperta. Nem sobre sua contribuição para a deterioração do quadro político, econômico e institucional do país nos últimos anos, apesar de muitos de seus representantes se auto considerarem como uma espécie de “reserva moral” da nação.
Neste contexto, o bordão de Paulo Guedes, que expressava a sua visão crítica sobre a ação do grupo na economia, ganha amplitude e incômoda atualidade. Realmente, só mesmo recorrendo às suas sábias palavras, ditas em tom de repreensão e chacota, para resumir o sentimento que fica em relação ao papel que eles têm representado no país: “Esses sociais-democratas...”




