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José Fucs

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Justiça

Somos todos Filipe Martins

O ex-assessor especial da presidência da República, Filipe Martins. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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O caso do ex-assessor especial de Assuntos Internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins, que se tornou réu na ação penal que corre no STF (Supremo Tribunal Federal), por suposto envolvimento na tentativa de golpe de Estado que teria sido promovida pelo ex-presidente, é um exemplo emblemático do regime de exceção – sim, é isso mesmo, regime de exceção – que, na prática, está em vigor no Brasil.

Muita gente boa por aí, que se considera um “democrata” exemplar, ainda nega, contra todas as evidências, que o país se transformou numa típica republiqueta latino-americana, na qual o respeito à Constituição e aos códigos legais se tornou uma quimera.

Contagiada pela rejeição compulsiva a Bolsonaro e a seus aliados, e pela determinação de excluí-los da vida pública do jeito que for, uma parcela considerável dos brasileiros, incluindo muitos dos chamados “isentões”, passa pano para o arbítrio e procura desclassificar como “bolsonarista”, “extrema direita”, “nazista” e “fascista” quem quer que coloque em xeque a ideia de que vivemos hoje em “plena democracia”.

Mas, como mostra o caso de Filipe Martins, não é preciso ser um apoiador de Bolsonaro ou um admirador de Hitler e Mussolini para enxergar o processo de relativização da democracia que está em curso, com a perseguição a integrantes do grupo político ligado ao ex-presidente, o atropelo de ritos processuais e a restrição da liberdade de expressão e dos direitos individuais de forma geral. Qualquer observador independente, com um mínimo de senso crítico, que preze pela prevalência da letra fria da lei sobre as paixões políticas, pode constatar isso a olho nu.

Preso preventivamente em fevereiro de 2024 por determinação do ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos sobre a suposta trama golpista no STF, com base numa suposta viagem que teria feito aos Estados Unidos em dezembro de 2022 e que sugeriria uma tentativa de fuga do país, Martins ficou seis meses detido – uma semana dos quais em solitária, numa cela sem iluminação – mesmo depois de provar que não havia deixado o Brasil na ocasião.

Muita gente boa por aí, que se considera um “democrata” exemplar,
ainda nega, contra todas as evidências, que o país se transformou numa típica republiqueta latino-americana

Os documentos que Martins apresentou para sustentar sua defesa ainda deixaram no ar a suspeita, depois comprovada e reconhecida oficialmente pelo governo americano, de que a acusação que pesava contra ele havia se baseado num registro falso de sua entrada nos EUA, inserido de forma fraudulenta no sistema do Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP, na sigla em inglês).

O funcionário que alterou os registros no sistema de imigração americano já teria sido identificado, de acordo com o noticiário, mas ainda não se sabe se ele agiu por conta própria ou seguiu orientação de autoridades brasileiras ao cometer a fraude. Se as investigações confirmarem que houve envolvimento de autoridades do país na ação criminosa, o caso de Martins deverá gerar, provavelmente, novas sanções contra o Brasil, já atingido por um tarifaço do governo Trump sobre as exportações feitas para os EUA e por medidas punitivas impostas a ministros do STF, especialmente a Moraes, e a integrantes do Executivo e do Legislativo, por causa de abusos cometidos contra a democracia e a liberdade de expressão nos últimos anos.

Quando Martins finalmente foi solto, em agosto de 2024, Moraes ainda determinou uma série de medidas cautelares contra ele, mais uma vez por um suposto risco de fuga do país, sem que houvesse qualquer indício que justificasse a suspeita. Impôs o uso de tornozeleira eletrônica, o recolhimento domiciliar à noite e nos fins de semana, o impedimento de deixar o município de Ponta Grossa (PR), onde mora, e a “lei da mordaça”, ao proibi-lo de fazer posts em redes sociais e conceder entrevistas. Também o impediu de contar com Eduardo e Carlos Bolsonaro, filhos do ex-presidente, como testemunhas na ação penal de que é alvo no Supremo.

É certo que, ao longo de sua trajetória política, Filipe Martins foi uma das vozes mais controversas e estridentes do bolsonarismo nas redes sociais e fora delas, desde antes da eleição de Bolsonaro, e um dos mais aguerridos e articulados militantes da ala mais ideológica que apoia o ex-presidente.

Por sua visão “messiânica” sobre o papel representado pela ascensão de Bolsonaro na vida política do país, ele acabava gerando muita discórdia,
não só com adversários históricos do ex-presidente à esquerda, mas também com integrantes da chamada “direita limpinha”, que sempre mantiveram um distanciamento crítico do bolsonarismo raiz, e até com a ala militar e aliados do “capitão” que não se alinhavam às ideias do núcleo ideológico, do qual era uma espécie de guru.

Pupilo aplicado do pensador e escritor Olavo de Carvalho, morto em 2022, e próximo de Eduardo e de Carlos Bolsonaro, principalmente do primeiro, Martins encarava a ascensão do ex-presidente como uma “guerra santa”, cujo objetivo seria libertar a República do establishment e dos gentios da esquerda, que haviam assumido o poder após a redemocratização, nos anos 1980. Assim como o mestre, ele também era um combatente inflamado contra o “marxismo cultural” que, em sua visão, havia se infiltrado nas instituições do país, como deixou claro em diversas publicações realizadas nas redes sociais desde que aderiu ao bolsonarismo, em meados da década passada.

É certo que, ao longo de sua trajetória política, Filipe Martins foi uma das vozes mais controversas e estridentes do bolsonarismo nas redes sociais e fora delas

Devido à sua atuação agressiva nas redes e às suas posições políticas, consideradas como sectárias e radicais até por alguns apoiadores de Bolsonaro, Martins ganhou os apelidos de “revolucionário de Facebook” e “Robespirralho” – uma mistura de pirralho com Robespierre, o líder da fase mais violenta da Revolução Francesa. Também foi chamado de “Sorocabannon”, por ter nascido em Sorocaba, no interior paulista, e pontificar sobre a estratégia política e eleitoral de Bolsonaro no pleito de 2018, como uma versão tropical de Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Donald Trump em seu primeiro mandato e ex-chefe de sua campanha à Casa Branca em 2016.

Como o empresário Elon Musk, acusado por seus adversários de ter feito um gesto nazista ao levantar o braço direito na horizontal num comício de Trump durante a campanha presidencial de 2024, Filipe Martins se tornou alvo da acusação de racismo, por fazer um sinal que foi interpretado pelo Ministério Público Federal como sendo semelhante ao usado por grupos racistas americanos, em defesa da “supremacia branca”, numa sessão de que participava no Senado. Mesmo que a acusação, que ainda corre na Justiça, seja considerada infundada e motivada politicamente, ela acabou por turbinar as controvérsias que cercavam e cercam sua atuação política, prejudicando até o exercício de sua função como assessor de Bolsonaro na política externa na época.

Nada disso, porém, justifica as arbitrariedades cometidas contra Filipe Martins desde sua prisão preventiva. Independentemente do que se pense sobre ele e as suas ideias, Martins deve ter respeitado seu direito à liberdade de expressão e ao devido processo legal, como qualquer cidadão brasileiro. Como afirmou a articulista Mary Anastasia O’Grady em artigo publicado em 28 de julho na seção de opinião do The Wall Street Journal, “Filipe Martins deveria estar livre para montar a sua defesa”.

Numa democracia que seja digna do nome, não dá para admitir exceções em relação aos direitos individuais nem “interpretações criativas” da legislação. Os “democratas” que procuram normalizar o arbítrio, ironicamente em defesa da própria democracia, com certeza serão cobrados no futuro, espera-se que não muito distante, por terem contribuído para os abusos cometidos por Moraes, com o apoio de vários de seus colegas do STF.

Em janeiro de 2019, produzi um perfil de Martins para o Estadão, intitulado “Filipe Martins, o ‘jacobino’ que chegou ao Planalto”, o primeiro do gênero publicado na grande imprensa, no qual abordava de forma crítica as suas ideias polêmicas e o protagonismo que ele assumiu nas fileiras bolsonaristas, como representante da ala mais ideológica do grupo.

Produzi também, dois meses depois, a primeira reportagem sobre a rede digital de difamação bolsonarista, na qual ele era mencionado e pela qual sou acusado até hoje de ter alimentado os inquéritos ilegais e a sanha punitiva do STF contra o ex-presidente e seus aliados. Ainda que jamais tenha escrito, ao longo dos mais de 40 anos de minha atuação como jornalista, uma única linha em defesa da censura ou de inquéritos produzidos à margem da lei, e de ter apenas exercido o meu papel de informar o público, de forma independente de partidos e correntes políticas, sobre os acontecimentos e as grandes tendências em andamento no Brasil e no mundo.

Sempre acreditei, e continuo a acreditar, que a atual legislação já oferece instrumentos para quem se sentir atingido civil e criminalmente por postagens nas redes sociais recorrer à Justiça em busca de reparação.

Sinto-me à vontade, portanto, para falar em favor de Filipe Martins e dizer que ele se tornou um símbolo das arbitrariedades cometidas por Moraes e pelo STF contra Bolsonaro e seus aliados, que arranham a democracia no país, sem ser acusado de ser seu “parça” ou apoiador de seu grupo político.

Defender o direito de Filipe Martins de responder ao processo de que é alvo em liberdade, conforme prevê a legislação, é defender o fim dos inquéritos ilegais conduzidos por Moraes e o retorno do Brasil à normalidade democrática, dentro das quatro linhas da Constituição e do que rezam os códigos civil e criminal.

Defender sua liberdade de expressão, restringida pela proibição de ele conceder entrevistas e fazer publicações nas redes sociais, é defender o fim da censura que voltou a mostrar as suas garras sob a justificativa insustentável da proteção à democracia, a partir das ações empreendidas pelo consórcio Lula-STF que governa o país. É por isso que, hoje, talvez seja o caso de todos os que buscam o restabelecimento da ordem democrática plena no Brasil dizerem em coro: “Somos todos Filipe Martins”.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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