Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
José Pio Martins

José Pio Martins

Virtude

A compaixão como base da moralidade

A compaixão desinteressada não é apenas base da moralidade, mas é também parte da razão para viver (Foto: J W/Unsplash )

Ouça este conteúdo

Há três perguntas que, em algum momento, pega a todos nós como importante questão existencial. De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida? Quanto à busca pelo sentido da vida, trata-se da questão transcendental mais profunda que se coloca para o ser humano.

O sentido da vida é questão que pode ser vista sob a filosofia de três grupos de pensadores. Primeiro, os absolutistas, para os quais a vida tem sentido porque há Deus, há uma alma imortal e a vida continua após a morte, no plano espiritual.

O segundo grupo são os niilistas, para os quais não existe Deus, não existe alma e não há vida após a morte. Nihil, em latim, é palavra que significa “nada”. O terceiro grupo são os relativistas, para os quais a vida tem significado se você lhe der um.

Confrontado com essa questão, o filósofo Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) propunha que o ser humano pode construir um significado para sua vida por meio da prática de virtudes, que deveria começar pelo exercício de três amores: amor à verdade, amor à liberdade e amor à humanidade.

A compaixão desinteressada não é apenas base da moralidade, mas é também parte da razão para viver

A análise desse tema nos leva obrigatoriamente a Arthur Schopenhauer (1788-1860), o filósofo que tratou sobre o sentido da vida de forma mordaz e perturbadora. Ele propunha suspender a pergunta se Deus existe ou não para dizer que o significado da vida está nas ações humanas elevadas, como a música, o idealismo e a compaixão.

Tratemos então da questão específica contida no título deste artigo, que foi classificada por Schopenhauer como a compaixão sendo a base da moralidade. Com sua língua afiada e seu olhar ferino sobre a natureza humana, Schopenhauer diz que o animal humano não é depositário de uma montanha de virtudes e bondade, mas um campo eivado de egoísmo e vícios.

Schopenhauer alertou também que “todos somos escravos em nossa própria morada”, para dizer que nossos desejos, pensamentos, visão da vida e interpretação dos fatos não resultam de nossa genialidade racional, mas vêm de um impulso interior que nos domina e supera, inclusive, a razão.

Esse impulso que surge desde o interior do ser humano e o leva a agir por vezes contra sua própria formulação racional foi nominado por Schopenhauer de “vontade”, uma força interior irracional e incessante que nos domina e nos conduz.

Mas é nesse cipoal de sentimentos que o ser humano mantém um reservatório de amor e solidariedade, especialmente quando alguém se põe acima do individualismo e sente uma dor que não é sua, chora por alguém desconhecido e realiza ações nobres de ajuda desinteressada.

VEJA TAMBÉM:

Por que o ser humano age contra toda a lógica do egoísmo e da indiferença perante o sofrimento alheio? Talvez Schopenhauer tenha a resposta ao dizer que a vida oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio, e que é nessa perspectiva sombria que reside o mais nobre milagre ético: a compaixão.

Nesse pêndulo que se movimenta entre a virtude e o vício, o amor e o ódio, Schopenhauer anuncia, no livro Sobre o Fundamento da Moral, a gênese da única moral possível, com as seguintes palavras: “Toda verdadeira ação moral brota do reconhecimento do outro como igual, não em pensamento, mas na vivência imediata de sua dor como se fosse minha”.

Essa moral definida por Schopenhauer não resulta de regra imposta, mas de agir por dever. Nesse sentido, a moral verdadeira se realiza sem vantagens, sem plateia, sem aplauso e sem racionalização, mas se dá quando ninguém vê, quando ninguém exige. Para o filósofo, é ilusão crer que a razão é que guia nossas ações morais, quando de fato é o impulso de ajudar, mesmo quando é possível e mais prático ir embora.

Nessa situação, não é a razão que nos segura, mas algo mais profundo que brota em nosso coração no instante em que agimos sem esperar nada em troca, apenas impulsionados por uma solidariedade espontânea, inclusive porque a moral não é autêntica quando a ação se faz por interesse e por conveniência.

VEJA TAMBÉM:

A compaixão é uma espécie de turbilhão interior que supera as muralhas da indiferença e da insensibilidade e, por ser essencialmente humana, ela é rara em um mundo que se acostumou a ver com frieza e distanciamento a dor e o sofrimento de nossos semelhantes. 

A dureza da vida nos prepara e nos cobra para sermos bons cidadãos, mas não necessariamente para sermos bons humanos, solidários e compadecidos. A lâmina cortante das palavras de Schopenhauer vem para nos chamar de volta a consultar nossa bússola moral e, como recomendava Sócrates, examinar a vida a ser vivida.

A brutalidade do mundo não se revela apenas nos grandes horrores estampados pelos jornais, mas no modo como ignoramos, todos os dias, os sofrimentos sutis, silenciosos, que nos cercam como uma névoa densa a endurecer nosso coração.

A verdadeira tragédia não está na dor em si, mas na indiferença com que a tratamos. Schopenhauer não enxergava a compaixão como um luxo moral, mas como o último elo que ainda nos liga a qualquer ideia de humanidade e virtude.

VEJA TAMBÉM:

A filosofia de Schopenhauer não vem oferecer consolo, mas esfregar em nossa cara a dura realidade de que somos, em essência, criaturas frágeis tentando disfarçar nossa miséria, com máscaras de poder e sucesso. Em uma sociedade que premia o narcisismo, a compaixão é quase um ato revolucionário, conforme anteviu Schopenhauer com toda sua amargura profética.

O filósofo percebeu que a raiz de toda conduta ética não está na racionalização de um código moral, mas na capacidade de se condoer na dor alheia, mesmo que seja um estranho que nunca poderá nos devolver o favor. “A compaixão é a base de toda moralidade verdadeira”, ele diz com a convicção de quem não está fazendo demagogia, mas escavando as entranhas da condição humana.

A compaixão de Schopenhauer é, nesse sentido, um chamado à desobediência emocional, um rompimento com o cinismo, com a apatia e com a autoimagem que tanto nos esforçamos para manter sob prestígio social. 

Schopenhauer acreditava que esse tipo de impulso é o que nos salva da barbárie e da frieza, e não nos vêm da civilização ou da cultura, mas nos chega como uma fagulha de humanidade que insiste em sobreviver no meio da selva de pedra representada pelas cidades. A compaixão desinteressada não é apenas base da moralidade, mas é também parte da razão para viver.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.